segunda-feira, 9 de maio de 2011

Poesia oculta (Martha Medeiros)



           Não, hoje não vou trabalhar. Acordei tão cedo que consegui
ver os primeiros raios solares refletidos nos vidros dos edifícios e
dando a eles uma coloração rósea que deixou a cidade com uma cara
diferente da que ela costuma ter nas horas mais adiantadas do dia.
Havia ali, naquele instante, 6h47 da manhã, poesia. Uma poesia com a
qual nossos olhos desacostumaram. Hoje não vou trabalhar, preciso
procurar por ela, essa poesia oculta.
           E sei que vou encontrá-la em todo lugar, bastando pra isso
a minha intenção. Começou. Já consigo vê-la na lombada dos livros que
estão dispostos na estante, vários, um ao lado do outro, compondo um
mosaico de cores e possibilidades. E na xícara de cafezinho, de louça
branca, ao lado do jornal aberto, em cima da mesa, e um copo d´água,
os três em colóquio matinal, clássicos do cotidiano. Ali: a poesia da
caixa de fósforos quietinha na cozinha. Da mulher passando o batom na
frente do espelho fingindo que não está vendo que seu marido a espia
escondido, ele próprio também fingindo que já não se deslumbra com a
cena.
           A letra caprichada da criança na primeira folha do
caderno. A fila de táxi no ponto em frente ao parque, enquanto os
motoristas conversam e fumam aguardando os passageiros. O carrinho de
supermercado abandonado no meio do estacionamento depois que todos se
foram, esquecido na noite. Os cachos ruivos que estão no chão de um
salão de beleza mixuruca, onde alguém cortou o cabelo e
se arrependeu. A poesia oculta não é tão oculta assim.
           Um varal com roupas puídas, penduradas numa janela de um
edifício antigo. A torcida de um estádio explodindo ao ver entrar em
campo o seu time. Duas adolescentes de cabelos longos cochichando e
rindo à saída do cursinho. O olhar perdido da mulher dentro do ônibus.
Um guarda-chuva preto.
           Sua amiga que piscou o olho pra você lá do outro lado da
festa, o afeto atravessando o salão e desviando dos convidados que
separam vocês duas. A chama da vela que balança porque você está
gargalhando. O casal que caminha na noite escura na beira da praia,
agasalhados e agarrados, achando que ninguém os vê. Um resto de bolo
dentro da geladeira.
           O canhoto do cartão de embarque no fundo da bolsa. A
almofada que caiu do sofá da varanda por causa do vento. O vapor que
embaçou o espelho do banheiro depois do banho. A mochila em cima da
cama da sua filha. Seu filho dormindo.
                  A poesia é uma fatalidade do olhar. Basta um frame
de segundo e ela se revela, para então se esconder novamente atrás da
pressa, do tédio, do desencanto, do hábito, do medo do ridículo que
paralisa todos nós. Eu hoje não vim aqui para trabalhar, vim estimular
o mistério.

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