domingo, 30 de setembro de 2012

FERREIRA GULLAR Tapar o sol



O julgamento do STF realiza-se à vista de milhões de telespectadores. Não é uma conspiração
GOSTARIA DE deixar claro que não tenho nada de pessoal contra o ex-presidente Lula, nem nenhum compromisso partidário, eleitoral ou ideológico com ninguém. Digo isso porque, nesta coluna, tenho emitido, com alguma frequência, opiniões críticas sobre a atuação do referido político, o que poderia levar o leitor àquela suposição.
Não resta dúvida de que tenho sérias restrições ao seu comportamento e especificamente a certas declarações que emite, sem qualquer compromisso com a verdade dos fatos. E, se o faço, é porque o tenho como um líder político importante, capaz de influir no destino do país. Noutras palavras, o que ele diz e faz, pela influência de que desfruta, importa a todos nós.
E a propósito disso é que me surpreende a facilidade com que faz afirmações que só atendem a sua conveniência, mas sem qualquer compromisso com a verdade. É certo que o faz sabendo que não enganará as pessoas bem informadas, mas sim aquelas que creem cegamente no que ele diga, seja o que for.
Exemplo disso foi a entrevista que deu a um repórter do "New York Times", quando voltou a afirmar que o mensalão é apenas uma invenção de seus adversários políticos. E vejam bem, ele fez tal afirmação quando o Supremo Tribunal Federal já julgava os acusados nesse processo e já havia condenado vários deles. Afirmar o que afirmou em tais circunstâncias mostra o seu total descompromisso com a verdade e total desrespeito com às instituições do Estado brasileiro.
Pode alguém admitir que a mais alta corte de Justiça do país aceitaria, como procedentes, acusações que fossem meras invenções de políticos e jornalistas irresponsáveis?
E mais: os ministros do STF passaram sete anos analisando os autos desse processo, tempo mais que suficiente para avaliá-lo. Afirmar, como faz Lula, que tudo aquilo é mera invenção equivale a dizer, implicitamente, que os ministros do STF são coniventes com uma grande farsa.
Mas o descompromisso de Lula com os fatos parece não ter limites. Para levar o entrevistador do "NYT" a crer na sua versão, disse que não precisava comprar votos, pois, ao assumir a Presidência, contava com a maioria dos deputados federais.
Não contava. Os verdadeiros dados são os seguintes: o PT elegera 91 deputados; o PSB, 24,; o PL, 26, o PC do B, 12, num total de 153 deputados. Mesmo com os eleitos por partidos menores, cuja adesão negociava, não alcançava a metade mais um dos membros da Câmara Federal.
Cabe observar que ele não disse ao jornalista norte-americano que não comprou os deputados porque seria indigno fazê-lo. Disse que não os comprou porque tinha maioria, ou seja, não necessitava comprá-los. Pode-se deduzir, então, que, como na verdade necessitava, os comprou. Não há que se surpreender, Lula é isso mesmo. Sempre o foi, desde sua militância no sindicato. Para ele, não há valores: vale o que o levar ao poder ou o mantiver nele.
Sucede que, apesar do que diga, ninguém mais duvida de que houve o mensalão. Pior ainda, corre por aí que o Marcos Valério está disposto a pôr a boca no mundo e contar que o verdadeiro chefe da patranha era o Lula mesmo, como, aliás, sempre esteve evidente. E já o procurador-geral da República declarou que, se os dados se confirmarem, o processará. É nessas horas que o Lula falastrão se cala e desaparece. Às vezes, chama Dilma para defendê-lo.
Desta vez, chamou o Rui Falcão, presidente do PT, para articular o apoio dos líderes da base política do governo. Disso resultou um documento desastroso, que chega ao ponto de acusar o Supremo de perpetrar um golpe de Estado contra a democracia, equivalente aos golpes que derrubaram Vargas e João Goulart. Pode? Vargas e Goulart, como se sabe, foram depostos pela extrema direita com o apoio de militares golpistas.
O julgamento do STF realiza-se às claras, à vista de milhões de telespectadores. Não é uma conspiração. Ele desempenha as funções que a Constituição lhe atribui. E que golpe é esse contra um político que não está no poder?
O tal manifesto só causou constrangimento. O governador Eduardo Campos, de Pernambuco, deu a entender que foi forçado a assiná-lo, após rejeitar três versões dele. Enfim, mais um vexame. Só que Lula, nessas horas, não aparece. Manda alguém fazer por ele, seja um manifesto, seja um mensalão.

sábado, 29 de setembro de 2012

A mentira necessária: Um ensaio sobre a promessa de amor eterno na sociedade contemporânea (Pedro Calabrez Furtado)

Este ensaio tem por objeto o amor na sociedade contemporânea. Buscamos identificar primeiramente, como o sentimento está inserido na realidade social de uma modernidade líquida, onde nada permanece estático e sólido por períodos longos de tempo, para então responder ao seguinte problema: há lugar, na sociedade de consumo, para o discurso de amor eterno? Concluímos que, como discurso, o amor eterno funciona como um mecanismo de auto engano para a preservação da potencia de agir dos agentes sociais e só assim convive com o dinamismo da contemporaneidade.

http://www.contemporanea.uerj.br/pdf/ed_10/contemporanea_n10_pedro_calabrez.pdf

quarta-feira, 26 de setembro de 2012

A primeira vez de Catarina - MARTHA MEDEIROS



Não li o badalado Cinquenta Tons de Cinza, que está fazendo vir à tona fantasias eróticas pouco ortodoxas do público feminino, mas para não dizer que estou totalmente fora do mundo, venho acompanhando outra questão envolvendo sexo que traz componentes que parecem ficção, mas consta que a história é verdadeira. Um cineasta australiano, Justin Sisely, está pré-produzindo um documentário chamado Virgens Wanted. Pretende realizar uma espécie de reality show com jovens virgens, cuja pureza está sendo leiloada na internet a fim de que, depois de submetidos à sua primeira relação sexual, possam ter suas transformações físicas e emocionais avaliadas por nós, espectadores. A conferir.

Catarina, uma jovem brasileira de 20 anos, bonita e entediada com sua vida de estudante de Educação Física, inscreveu-se e foi aceita. O lance por ela já alcançou US$ 100 mil, mas as apostas continuam abertas, vão até o dia 15 de outubro. Segundo ela, é a chance de ganhar um belo dinheiro, participar de um filme e sair da rotina. E os riscos são nulos, segundo os idealizadores. O candidato que der o lance mais alto terá que apresentar exames médicos, ficha policial e está proibido de se inspirar em Christian Grey: nada de fetiches, acessórios, nem mesmo beijo na boca. Farão um provável papai e mamãe – mas ele receberá certificado de consumação ao fim do intercurso, como o mundo dos negócios exige.

Falando em mamãe, a dela está dando todo o apoio. Que sorte, a dessa menina.

É isso aí, Catarina, divirta-se. Prostituta por um dia, celebridade por três meses (mais do que a Luiza do Canadá) e grana para se sustentar uns bons anos sem precisar voltar para a faculdade. Li sobre você: gosta de filosofia, dos livros de Dostoievski e Albert Camus, escuta jazz e música clássica, adora Edith Piaf. Vamos torcer para que seu pretendente mantenha esse nível, ainda que isso pouco importe, claro. Você não está procurando um namorado, e sim um patrocinador. Se, apesar de sua beleza, juventude e consistente formação cultural, é a virgindade que você tem como produto de troca nesse grande Baú da Felicidade que se tornou o planeta, realize a permuta e deixe para amar depois. Se é que amar não é uma grande besteira. Deve ser. Ando tão desatualizada.

Teu corpo te pertence, Catarina. E você pertence a esse mundo, é fruto dessa sociedade, não há nada fora do lugar, nenhum motivo para choque, é a vida como ela é hoje, roteirizada para oferecer ao público um show quente, com muita luz projetada sobre os protagonistas e sem sentimentalismos, que isso entrou em desuso junto com a inocência. Está tudo certo. Tudo normal. Se é que essa história de normal não virou outra grande besteira. 

sábado, 22 de setembro de 2012

Não parecia eu - MARTHA MEDEIROS



Já deve ter acontecido com você. Diante de uma situação inusitada, você reage de uma forma que nunca imaginou, e ao fim do conflito se pega pensando: que estranho, não parecia eu. Você, tão cordata, esbravejou. Você, tão explosivo, contemporizou. Você, tão seja-lá-o-que-for, adotou uma nova postura. Percebeu-se de outro modo. Virou momentaneamente outra pessoa.

No filme Neblinas e Sombras (não queria dizer que é do Woody Allen pra não parecer uma obcecada, mas é, e sou) o personagem de Mia Farrow refugia-se num bordel e aceita prestar um serviço sexual em troca de dinheiro, ela que nunca imaginou passar por uma situação dessas.

No dia seguinte, admite a um amigo que, para sua surpresa, teve uma noite maravilhosa, apesar de se sentir muito diferente de si mesma. O amigo a questiona: “Será que você não foi você mesma pela primeira vez?”

São nauseantes, porém decisivas e libertadoras essas perguntas que nos fazem os psicoterapeutas e também nossos melhores amigos, não nos permitindo rota de fuga. E aí? Quem é você de verdade?

Viver é um processo. Nosso “personagem” nunca está terminado, ele vai sendo construído conforme as vivências e também conforme nossas preferências – selecionamos uma série de qualidades que consideramos correto possuir e que funcionam como um cartão de visitas.

Eu defendo o verde, eu protejo os animais, eu luto pelos pobres, eu só me relaciono por amor, eu respeito meus pais, eu não conto mentiras, eu acredito em positivismo, eu acho graça da vida. Nossa, mas você é sensacional, hein!

Temos muitas opiniões, repetimos muitas palavras de ordem, mas saber quem somos realmente é do departamento das coisas vividas. A maioria de nós optou pela boa conduta, e divulga isso em conversas, discursos, blogs e demais recursos de autopromoção, mas o que somos, de fato, revela-se nas atitudes, principalmente nas inesperadas. Como você reage vendo alguém sendo assaltado, foge ou ajuda? Como você se comporta diante da declaração de amor de uma pessoa do mesmo sexo, respeita ou debocha?

O que você faria se soubesse que sua avó tem uma doença terminal, contaria a verdade ou a deixaria viver o resto dos dias sem essa perturbação? Qual sua reação diante da mão estendida de uma pessoa que você muito despreza, aperta por educação ou faz que não viu? Não são coisas que aconteçam diariamente, e pela falta de prática, talvez você tenha uma ideia vaga de como se comportaria, mas saber mesmo, só na hora. E pode ser que se surpreenda: “não parecia eu”.

Mas é você. É sempre 100% você. Um você que não constava da cartilha que você decorou. Um você que não estava previsto no seu manual de boas maneiras. Um você que não havia dado as caras antes. Um você que talvez lhe assombre por ser você mesmo pela primeira vez.


quinta-feira, 20 de setembro de 2012

CONTARDO CALLIGARIS A saca de sal



Antes de viver juntos, seria bom consumir uma saca de sal. Para o quê? Para se conhecer melhor?
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COMEÇOU COM um e-mail bizarro me avisando que o restauro da Fontana del Sale (a fonte do sal, em Novi Ligure, Itália) estava terminado (bizarro porque o restauro foi terminado um ano atrás). Imediatamente, a mensagem evocou em mim um momento esquecido.
Novi Ligure (leia-se "lígure") é uma cidade de menos de 30 mil habitantes; apesar de seu nome, ela não está na Liguria, mas no Piemonte. Num domingo de inverno do fim dos anos 70, eu atravessava a Piazza Mariano delle Piane, em Novi, com minha avó Elena.
Sei que era domingo porque ela tinha pedido que parássemos (íamos de Rapallo a Casale Monferrato, visitar amigos) para que ela escutasse a missa. E sei que era inverno porque ela estava com um sobretudo longo de cachemira um tanto surrada, mas especialmente mórbida, com um colarinho do mesmo astracã cinza de seu chapéu "clochê".
Também ela tinha enfiado a mão, numa luva escura, debaixo do meu braço, mais pelo calor e pela intimidade do gesto do que por necessidade de apoio ao caminhar.
Eu estava lhe contando que acabava de me juntar com uma mulher, na cidade onde eu morava, que era Paris. Ela parou diante da Fontana del Sale, que está no meio da Piazza.
"Fonte do sal" não é um apelido. No passado, o sal era crucial para preservar os alimentos (pense no bacalhau), era vendido em sacas, e era precioso. Em 1814, os noveses defenderam sua reserva de sal contra franceses e ingleses. Para celebrar o esforço, foi construída a fonte, no meio da qual surge uma figura, que aperta contra o peito uma saca, que se parece com uma daquelas almofadas que as crianças querem sempre consigo e sem as quais elas não conseguem dormir (uma foto da fonte:http://migre.me/aKii8).
Minha avó, olhando para a estátua, disse: "Prima di vivere insieme, bisogna consumare un sacco de sale" -antes de viver juntos, é preciso consumir uma saca de sal. Minha avó era religiosa, mas sábia demais para se opor ao fato de eu me juntar sem me casar. Sua preocupação era com a precipitação.
Eu, nascido em tempos de geladeira, não sabia quanto tempo duraria uma saca de sal. Mas o recado era claro: antes de se juntar, um longo namoro é oportuno.
Há uma constatação que eu faço com frequência: não sei quem começou, se fomos nós ou se foram a literatura e o cinema, mas, em geral, no início das relações, a gente idealiza tanto o parceiro quanto o novo envolvimento afetivo ou sexual (as dificuldades da etapa seguinte ficam para a comédia, se não para a farsa). Consequência: o exórdio das relações aparece como um momento glorioso, cujo espírito se perderá, inelutavelmente, ao longo do tempo, consumido pela trivialidade do dia a dia e da convivência.
Uma leitora, Ester Costa, comenta: "Eu acho que, na verdade, começa mal e vai piorando. É ruim e errado desde o começo, e a gente sabe, mas, por decreto decide que vai continuar. Ninguém esconde do outro o que é, a gente é que não quer enxergar". Ou seja, "o germe da destruição" das relações está no seu começo, "o ovo da serpente está aí".
Outra leitora, Mariana Seixas, vai na mesma direção; ela acha que, quando encontramos alguém "com quem no futuro dividiremos uma vida e quatro paredes, (...), não conhecemos bem a pessoa", e o futuro nos apresentará "uma pessoa diferente daquela dos primeiros meses de namoro".
Em outras palavras, a degradação das relações está num defeito de fábrica, numa pressa ou num descuido do encontro inicial, em que, paradoxalmente, falamos demais e não nos mostramos o suficiente.
Minhas leitoras têm razão. O momento do encontro é enganoso, por um viés de otimismo: valorizamos tanto o grande amor definitivo que acabamos enxergando sua miragem no horizonte, mesmo quando não há por quê. Você lê os três primeiros números sorteados da Mega-Sena, são os que você jogou, o coração já dispara -embora até lá você não tenha ganho absolutamente nada, nem a consolação de uma quadra.
Seria bom, em suma, segundo minhas leitoras, que os futuros consortes se conhecessem melhor.
Em tese, eu concordaria. Mas, naquele domingo dos anos 70, eu completei a frase de minha avó perguntando-lhe, justamente, se o tempo da saca de sal era para o casal se conhecer melhor. Ela fez o gesto de quem descarta uma estupidez e disse: "Ma vá un po', non per conoscersi; per abituarsi", deixa de bobagens, é preciso de tempo não para se conhecer, mas para se acostumar.

quarta-feira, 19 de setembro de 2012

MARTHA MEDEIROS - Nós


Poucas pessoas gostam de viajar sozinhas. O que é compreensível: a melhor modalidade é a dois, também acho. Mas, na ausência momentânea de parceria, por que desconsiderar uma lua de mel consigo mesmo?

Uma amiga psicanalista me disse que não é por medo que as pessoas não viajam sozinhas, e sim por vergonha. Faz sentido: numa sociedade que condena a solidão como se fosse uma doença, é natural que as pessoas se sintam desconfortáveis ao circularem desacompanhadas, dando a impressão de serem portadoras de algum vírus contagioso. Pena. Tão preocupadas com sua autoimagem, perdem de se conhecer mais profundamente e de se divertir com elas próprias.

Vivi recentemente essa experiência. Tirei 10 dias de férias, e não diga que não reparou, ou morrerei de desgosto. Estive em lugares que já conhecia para não me sentir obrigada a conferir as atrações turísticas _ o “aproveitar” não precisa necessariamente ser dinâmico, podemos aproveitar o sossego também.

Minha intenção era apenas flanar, ler, rever amigos que moram longe e observar a vida acontecendo ao redor, sem pressa, sem mapas, sem guias. Dormir até mais tarde e almoçar na hora em que batesse a fome, se batesse. Estar disponível para conversar com estranhos, perceber o entorno de forma mais aguçada, circular de bicicleta por cidades estrangeiras. Ave, bicicleta! Diante do incremento de turistas no mundo, não raro impossibilitando a contemplação de certos pontos, alugar uma bike às 7h30min foi a solução para curtir ruas vazias e silenciosas.

Solitários, somos todos, faz parte da nossa essência. Não é um defeito de fabricação ou prova de nossa inadequação ao mundo, ao contrário: muitas vezes, a solidão confirma nossa dignidade quando não se está a fim de negociar nossos desejos em troca de companhia temporária. E a propósito: quem disse que, sozinho, não se está igualmente comprometido?

Numa praça em Roma, um casal de brasileiros se aproximou. Começamos a conversar. Lá pelas tantas, perguntei de onde eles eram. “De São Paulo, e você?” Respondi: “Nós, de Porto Alegre”. Nós!!! Quanta risada rendeu esse ato falho. Eu e eu. Dupla imbatível, amor eterno, afinidade total.

Se você não se atura, melhor não viajar em sua própria companhia. Mas se está tudo bem entre “vocês”, saiam por aí e descubram como é bom sentar num café num dia de sol, pedir algo para beber enquanto lê um bom livro, subir até terraços para apreciar vistas deslumbrantes, entrar em lojas e ficar lá dentro o tempo que desejar, entrar num museu e sair dali quando bem entender, caminhar sem trajeto definido nem hora pra voltar, pedalar ao longo de um rio ouvindo suas músicas preferidas no iPod, em conexão com seus pensamentos e sentimentos, nada mais.

Vergonha? Senti poucas vezes na vida, quando não me reconheci dentro da própria pele. Mas estando em mim, sob qualquer circunstância, jamais estarei só.

Uma deliciosa quarta-feira pra você. Ainda que com chuva que teima em continuar neste Porto e que por isso não está nada alegre...

segunda-feira, 17 de setembro de 2012

JOÃO PEREIRA COUTINHO Nós, os inúteis



A nova economia emergente está pronta para o triunfo da sensibilidade feminina

Posso oferecer uma sugestão de leitura? "The Revolt of Man" (a revolta do homem), de Walter Besant (1836-1901). O leitor não conhece? Acredito. Sir Walter foi um respeitável cavalheiro vitoriano que a história da literatura inglesa acabou por esquecer.
Injusto. O livro, uma novela distópica brilhantemente escrita, é um exemplo de misoginia que diverte as almas saudáveis.
Enredo: na Inglaterra do futuro, o mundo é governado pelas mulheres. Elas controlam tudo: política, economia, cultura, trabalho. E os homens? Os homens, pobre raça, são reduzidos a bestas de carga e escravos sexuais das triunfantes donzelas.
Fatalmente, essa vaginocracia começa a sair dos eixos: a sociedade a empobrecer, o caos a reinar, as instituições a colapsar -e as mulheres, em desespero de causa, apelam aos homens para salvar a honra do convento.
São eles que regressam das catacumbas para repor a ordem e a felicidade universal.
Besant viveu no século 19. Mas o que diria ele do nosso século 21?
Olho em volta. E concluo que só tenho amigas solteiras ou divorciadas. Casamento é artigo raro e breve por estas bandas.
A situação, confesso, seria a ideal para um rapaz disponível como eu, com hábitos de higiene adquiridos e uma sanidade mental, digamos, satisfatória. O problema é que os homens deixaram de ser ideais para elas.
As solteiras encontraram no trabalho a independência econômica que as mães e avós não tinham. Os homens, quando muito, servem para necessidades ocasionais que esta Folha, um jornal de família, me impede de mencionar.
As divorciadas já passaram pela experiência e não gostaram. Depois da paixão e do idílio dos primeiros anos (ou meses), descobriram com espanto que o príncipe, afinal, sempre foi um sapo. A barriga do infeliz cresceu. A comunicação desapareceu. E o sexo passou a ser, nas imortais palavras de Nelson Rodrigues, "uma mijada". Conclusão?
Depois de o amor virar farsa, elas pegaram nos respectivos girinos e jogaram-nos no charco da inutilidade.
Homem só atrapalha. E nem para filhos serve mais: ser mãe é como fazer inscrição na academia. Basta escolher o banco certo e a questão, nove meses depois, está resolvida.
Um livro recente, aliás, enfrenta o problema. Foi escrito por Hanna Rosin, intitula-se apocalipticamente "The End of Men: And the Rise of Women" (o fim do homem: e a ascensão da mulher) e, segundo resenha da "Economist", tem números que podem interessar aos brasileiros: 1/3 das mulheres do país já ganham mais do que os seus companheiros. Existe até um grupo de apoio para esses homens infelizes, sintomaticamente intitulado "Homens de Lágrimas". Será verdade, leitor? Não minta, não minta.
O Brasil não é caso único. Na Coreia do Sul, o excesso de mulheres na carreira diplomática obrigou o governo a instituir as fatídicas cotas para homens.
Moral da história? Os homens começam a ser bichos em vias de extinção. Sem a importância econômica, reprodutiva ou até social de outros tempos, os pobres coitados ainda tiveram uma suprema humilhação com a crise financeira de 2008: conta a mesma "Economist" que 3/4 dos empregos destruídos pela hecatombe -nas finanças, nas fábricas, na construção civil- eram tradicionalmente masculinos.
Pelo contrário: a nova economia emergente, baseada cada vez mais em qualidades como "comunicação" e "adaptação", está pronta para o triunfo da sensibilidade feminina.
Se Edward Besant viajasse do século 19 para o século 21, imagino que a sua distopia seria outra: sim, o mundo estaria nas mãos das mulheres. Mas, dessa vez, os homens já não existiriam para o salvar.
Estariam demasiado ocupados, de bermudão e cerveja, com os amigos no botequim.
Porque essa talvez seja a verdade mais dolorosa de todas, que a "Economist" refere sem desenvolver o tema competentemente: não foi a economia ou a libertação sexual feminina que fez dos homens seres inúteis.
Os homens deixaram de ser úteis quando deixaram de ser homens -na atitude, nos comportamentos, nos "hobbies", até no vestuário e nas "tendências" (horrenda palavra).
Nenhuma mulher gosta de ter em casa dois adolescentes retardados: o filho e o pai.

quinta-feira, 13 de setembro de 2012

Vai passar (Fabrício Carpinejar)


Ao fazer meu check-in no terminal do aeroporto, empaco e crio fila. Não superava a etapa: qual o contato de emergência? Nome? Telefone?

Não digitava nada. Quem colocar? Quem vai velar por mim depois que você foi embora?

Sobrevivo assim a maior parte do tempo.

Quando ando pela rua, reviso os bolsos, fraquejo com a memória, me assusto com as coincidências. Saio de casa com a impressão de que deixei a cafeteira ligada, a porta destrancada.

Qualquer atitude esconde sua ausência. Todo lugar que já estivemos me rebobina. Olho, e me perturbo. Se avisto um twingo, corro para ler a placa. Se percorro Ipanema, vejo sua sorveteria predileta e minha boca procura reaver o cheiro de pistache. Quando atravesso a faculdade, recordo o quanto desejava ter um leão de pedra no pátio de sua casa. São observações aleatórias, coisas que diríamos.

De tanto antecipá-la em pensamento, hoje minhas palavras me atrasam.

Nem dormindo não tenho paz. Eu me acordo cinco vezes por noite. Consulto o relógio a cada duas horas até amanhecer. Despertar é uma vitória, como uma festa ruim que dependemos de carona.

Antes explicava para as pessoas que estava separado. Agora cansei. Se me perguntam de sua presença, respondo: — Tudo bem! E terminou o assunto. Explicar constrange.

O que mais me atormenta é que os amigos e familiares usam o mesmo bordão para me acalmar:

— Vai passar.

Não é um conselho alegre. Não me tranquiliza saber que terminaremos.

É uma advertência que me desespera. Não gostaria que passasse.

Eles não entendem que não sofro porque o amor acabou, sofro para não acabar o amor.

Sou contrário ao término, me oponho à nossa extinção.

Sou o único que resiste contra o fim de nossa história.

Eu não quero que passe. Mas sei que vai passar.

Sei que o amor vai morrer desidratado, faminto, por absoluta falta de cuidado.

Vai passar, infelizmente.

Tudo o que a gente construiu junto vai passar.

Tudo o que a gente idealizou, inventou e armou vai passar.

O lugar no peito que recebia seu rosto para dormir vai passar.

Nossos apelidos, nossos chamados, nossas piadas vão passar.

Por mais que acredite que seja impossível, irei namorar de novo, me apaixonar, casar e rir docemente sem culpa.

Vai passar.

Não superamos os medos, sucumbimos na segunda crise, desistimos de insistir.

Somos fracos, somos influenciáveis, somos tolos.

Foi muita incompetência de nossa parte.

Não seremos inesquecíveis.

Vai passar.

quarta-feira, 12 de setembro de 2012

Uma questão de honestidade (HÉLIO SCHWARTSMAN)


 "A opinião que nosso inimigo tem de nós está mais perto da verdade do que a nossa própria." A frase, de François de La Rochefoucauld (1613-1680), é cruel, mas verdadeira. Cai como uma luva sobre a troca de farpas entre os ex-presidentes Fernando Henrique Cardoso, Luiz Inácio Lula da Silva e a atual mandatária, Dilma Rousseff.

Se você quer uma apreciação objetiva dos anos FHC ou da era Lula, recomendo que procure a análise de um jornalista ou acadêmico que não tenha nenhum tipo de relação pessoal ou política com os antigos presidentes nem com seus partidos. Mas, se isso for impossível (imaginemos um mundo onde todos fossem necessariamente petistas ou tucanos), fique com a avaliação do inimigo.

Alguém que preza muito FHC dificilmente mencionaria a compra de votos pela reeleição ou o apagão sem se valer de eufemismos e outros contorcionismos verbais. De modo análogo, um companheiro leal tenderia a dizer que o mensalão jamais passou de uma maquinação das elites. E um exame de ambos os governos que não trate honestamente desses eventos não valeria muita coisa.

O interessante aqui é que a ciência levou 300 anos para chegar a explicações razoáveis para o "insight" de La Rochefoucauld. Uma delas é a hipótese dos marcadores somáticos proposta pelo neurologista António Damásio. Para ele, a cognição, isto é, a parte racional de nossos cérebros, não consegue operar quando a carga de informações é muito grande. Por isso, tende a ficar paralisada quando temos de fazer uma escolha complexa que envolva elementos contraditórios. A mente resolve essa dificuldade recorrendo a elementos afetivos (emoções), que vão oferecer um contexto fisiológico no qual a decisão será tomada.

Desde Platão, imaginava-se que as emoções se opunham à razão e a faziam falhar. O que Damásio sugere é que elas a auxiliam. Quem quer honestidade, deve procurar os inimigos.

segunda-feira, 3 de setembro de 2012

LUIZ FELIPE PONDÉ - Marketing social



Esse papo furado contemporâneo vende mentiras como verdades e serve a agendas ideológicas

1. Ser gay está na moda. 2. Ter filha solteira é legal. Mulher não precisa de homem. 3. Não dou valor a dinheiro. 4. Não tenho preconceito. 5. Os homens hoje lidam bem com mulheres que ganham mais do que eles. 6. Minha tia é muito bem resolvida. 7. Vivemos uma crise de valores. Meus valores não são materiais. 8. Existem pessoas que não se vendem. 9. Meu pai me ensinou a ser digno. 10. Não tenho religião, tenho espiritualidade.
Eis alguns exemplos de papo-furado contemporâneo. Trata-se de marketing social. Filho do politicamente correto, grande exercício de lixo cultural.
O marketing social vende mentiras como verdades porque serve a agendas ideológicas de quem as produz. As outras pessoas apenas as repetem para aliviar seus fracassos pessoais ou para vender uma boa imagem social de si mesmas.
Como sempre, a mentira rege o mundo. Não somos mais pecadores, mas continuamos mentirosos. Eliminou-se da agenda moral a consciência do mal como parte de nós mesmos, ficou apenas o hábito contumaz da mentira.
Eis dez teses contra o marketing social:
1. Ser gay não está na moda. A maioria esmagadora do mundo é indiferente ao tema. Isso não significa nada "contra". Se não fosse o fato de grande parte das pessoas que trabalha com cultura (mídia, arte, universidade) ser gay, ninguém daria bola para o assunto. A própria "teoria de gênero" que afirma que você pode ser sexualmente o que quiser é uma invenção de militantes gays e feministas.
Além, é claro, da grana que grande parte da população gay tem por ser constituída de profissionais altamente qualificados que não têm filhos, até "ontem". Agora, ficarão pobres como os héteros.
2. Mãe solteira é péssimo. E, sim, mulher precisa de homem. Sem homem, a maioria revira no vazio da cama. E vice-versa. Mãe solteira é opção para quem não tem mais opção afetiva ou é coisa de gente altamente narcisista. E para a criança é péssimo. Gente que abraça o marketing social, além de mentirosa, é muito egoísta. O mundo inteligentinho está cheio de gente ressentida que prega essa bobagem.
3. Todo mundo dá valor a dinheiro, principalmente quando não tem. Quem mais diz que não dá valor a dinheiro, é justamente quem mais dá. Dizer "não dou valor a dinheiro" prepara o terreno para se pedir dinheiro emprestado ou justificar dívidas não pagas.
4. Todo mundo tem preconceito. Quem diz que não tem, normalmente acha meninas virgens doentes, mulheres que cuidam dos filhos umas idiotas, religiosos burros, os EUA uma nação do mal e Obama um santo. A maioria continua tendo preconceito contra gay, mulher que transa muito e homem chorão. Eu, por exemplo, tenho preconceito contra gente bem resolvida e que diz que não tem preconceito.
5. Nenhum homem lida bem com mulheres que ganham mais do que ele. A menos que ele tenha problema de caráter. É sempre um sofrimento que se enfrenta dia a dia, sonhando com seu fim. Nem as mulheres bem-sucedidas lidam bem com homens fracassados. Muitas "rezam" para que seus maridos falidos ganhem mais ou, pelo menos, o mesmo que elas.
6. Ninguém é bem resolvido, somente os mentirosos, principalmente tias solitárias que fingem ser donas de seus afetos.
7. Valores são sempre materiais, ligados a poder, patrimônio, sucesso, reconhecimento. Não existe "crise de valores" porque nunca existiram valores sólidos, a moral pública sempre foi fundada na hipocrisia e na superficialidade de julgamento do comportamento alheio.
8. Todo mundo tem um preço, sempre menor do que se imagina. Às vezes as pessoas se vendem por muito menos do que dinheiro, se vendem por afetos baratos, promessas falsas e deuses vagabundos.
9. Aprende-se muito pouco com os pais, na maior parte do tempo, o que nos define é o temperamento e as circunstâncias da vida. Aristóteles mesmo dizia que ética é uma ciência imprecisa dominada pela contingência. Quem elogia demais os pais, está ocultando suas vergonhas.
10. Esse negócio de "espiritualidade" é religião sem compromisso. Produto de butique. Pessoas "espiritualizadas" são normalmente as piores e mais indiferentes.