sexta-feira, 14 de fevereiro de 2014

Falar (Martha Medeiros)

FALAR

Já fui de esconder o que sentia, e sofri com isso. Hoje não escondo nada do que sinto e penso, e às vezes também sofro com isso, mas ao menos não compactuo mais com um tipo de silêncio nocivo: o silêncio que tortura o outro, que confunde, o silêncio a fim de manter o poder num relacionamento.

Assisti ao filme Mentiras sinceras com uma pontinha de decepção – os comentários haviam sido ótimos, porém a contenção inglesa do filme me irritou um pouco. Nos momentos finais, no entanto, uma cena aparentemente simples redimiu minha frustração. Embaixo de um guarda-chuva, numa noite fria e molhada, um homem diz para uma mulher o que ela sempre precisou ouvir. E eu pensei: como é fácil libertar alguém de seus fantasmas e, libertando-o, abrir uma possibilidade de tê-lo de volta, mais inteiro.

Falar o que se sente é considerado uma fraqueza. Ao sermos absolutamente sinceros, a vulnerabilidade se instala. Perde-se o mistério que nos veste tão bem, ficamos nus. E não é esse tipo de nudez que nos atrai.

Se a verdade pode parecer perturbadora para quem fala, é extremamente libertadora para quem ouve. É como se uma mão gigantesca varresse num segundo todas as nossas dúvidas. Finalmente, se sabe.

Mas sabe-se o quê? O que todos nós, no fundo, queremos saber: se somos amados.

Tão banal, não?

E no entanto essa banalidade é fomentadora das maiores carências, de traumas que nos aleijam, nos paralisam e nos afastam das pessoas que nos são mais caras. Por que a dificuldade de dizer para alguém o quanto ela é – ou foi – importante? Dizer não como recurso de sedução, mas como um ato de generosidade, dizer sem esperar nada em troca. Dizer, simplesmente.

A maioria das relações – entre amantes, entre pais e filhos, e mesmo entre amigos – se ampara em mentiras parciais e verdades pela metade. Pode-se passar anos ao lado de alguém falando coisas inteligentes, citando poemas, esbanjando presença de espírito, sem ter a delicadeza de fazer a aguardada declaração que daria ao outro uma certeza e, com a certeza, a liberdade. Parece que só conseguimos manter as pessoas ao nosso lado se elas não souberem tudo. Ou, ao menos, se não souberem o essencial. E assim, através da manipulação, a relação passa a ficar doentia, inquieta, frágil. Em vez de uma vida a dois, passa-se a ter uma sobrevida a dois.

Deixar o outro inseguro é uma maneira de prendê-lo a nós – e este “a nós” inspira um providencial duplo sentido. Mesmo que ele tente se libertar, estará amarrado aos pontos de interrogação que colecionou. Somos sádicos e avaros ao economizar nossos “eu te perdôo”, “eu te compreendo”, “eu te aceito como és” e o nosso mais profundo “eu te amo” – não o “eu te amo” dito às pressas no final de uma ligação telefônica, por força do hábito, e sim o “eu te amo” que significa: “Seja feliz da maneira que você escolher, meu sentimento permanecerá o mesmo”.

Libertar uma pessoa pode levar menos de um minuto. Oprimi-la é trabalho para uma vida. Mais que as mentiras, o silêncio é que é a verdadeira arma letal das relações humanas.

terça-feira, 11 de fevereiro de 2014

Um Deus que Sorri (Martha Medeiros)


Eu acredito em Deus. Mas não sei se o Deus em que eu acredito é o mesmo Deus em que acredita o balconista, a professora, o porteiro. O Deus em que acredito não foi globalizado.
O Deus com quem converso não é uma pessoa, não é pai de ninguém. É uma idéia, uma energia, uma eminência. Não tem rosto, portanto não tem barba. Não caminha, portanto não carrega um cajado. Não está cansado, portanto não tem trono.
O Deus que me acompanha não é bíblico. Jamais se deixaria resumir por dez mandamentos, algumas parábolas e um pensamento que não se renova. O meu Deus é tão superior quanto o Deus dos outros, mas sua superioridade está na compreensão das diferenças, na aceitação das fraquezas e no estímulo à felicidade.
O Deus em que acredito me ensina a guerrear conforme as armas que tenho e detecta em mim a honestidade dos atos. Não distribui culpas a granel: as minhas são umas, as do vizinho são outras, e nossa penitência é a reflexão. Ave Maria, Pai Nosso, isso qualquer um decora sem saber o que está dizendo. Para o Deus em que acredito só vale o que se está sentindo.
O Deus em que acredito não condena o prazer. Se ele não tem controle sobre enchentes, guerrilhas e violência, se não tem controle sobre traficantes, corruptos e vigaristas, se não tem controle sobre a miséria, o câncer e as mágoas, então que Deus seria ele se ainda por cima condenasse o que nos resta: o lúdico, o sensorial, a libido que nasce com toda criança e se desenvolve livre, se assim o permitirem?
O Deus em que acredito não é tão bonzinho: me castiga e me deixa uns tempos sozinha. Não me abandona, mas me exige mais do que uma visita à igreja, uma flexão de joelhos e uma doação aos pobres: cobra caro pelos meus erros e não aceita promessas performáticas, como carregar uma cruz gigante nos ombros. A cruz pesa onde tem que pesar: dentro. É onde tudo acontece e tudo se resolve.
Este é o Deus que me acompanha. Um Deus simples. Deus que é Deus não precisa ser difícil e distante, sabe-tudo e vê-tudo. Meu Deus é discreto e otimista. Não se esconde, ao contrário, aparece principalmente nas horas boas para incentivar, para me fazer sentir o quanto vale um pequeno momento grandioso: um abraço numa amiga, uma música na hora certa, um silêncio. É onipresente, mas não onipotente. Meu Deus é humilde. Não posso imaginar um Deus repressor e um Deus que não sorri. Quem não te sorri não é cúmplice.

sábado, 8 de fevereiro de 2014

Conversa por dedução (Matha Medeiros)


Sabe a... a... aquela, você sabe... a loirinha... prima da... como é mesmo o nome... aquela que morava na rua atrás do clube... aquele clube que teu irmão jogava futebol com o... tsk, que futebol, o quê. Tênis, jogava tênis! Sabe?

Antes era só com minha mãe que eu conversava desse modo, tentando preencher os pontinhos deixados em branco. Mas hoje em dia tem sido com as amigas também. Entramos na fase da conversa por dedução. E dessa fase não sairemos mais. Não vivas.

Vocês já foram nesse restaurante novo que abriu? Esse que foi matéria ontem no... Vocês sabem, me ajudem, esse que foi superbem comentado pela... Ah, não importa, andam dizendo que é onde se come o melhor linguado ao molho de maracujá. Não: de manga. Linguado nada, eu quis dizer salmão. Salmão ao molho de manga. Isso. Já foram lá?

Completar uma frase tem sido tarefa de adivinhação. Não sei com você, mas eu não consigo mais lembrar o nome de artistas, de filmes, de lugares. Mal consigo dizer corretamente o nome das filhas, e são apenas duas. Quem tem três – e acerta – vira meu herói.

É sabido que nosso cérebro está com lotação esgotada. É informação demais para processar, não há como manter o estoque, é preciso jogar no lixo o que não serve mais. Aquela atriz... aquela bonitona... me escapa o nome agora. Pois bem, em sua biografia, ela comenta que quando esquecemos um nome, o melhor é deixar pra lá e seguir em frente, mais adiante a lembrança retorna espontaneamente. Muito bem. Assim tenho levado a vida, aguardando a volta de palavras que debandaram.

Sim, quero o CPF na nota. É 439136... não, 37... esquece, esse é meu RG. O CPF é 30055082... calma, acabei de te dar o telefone do meu escritório.

Aguardo a volta dos números também.

Caduquice de velha? Olha: não é. Tenho visto muita criança de 30 anos que também está custando para levar uma frase até o final sem se perder nos “como é mesmo?”. A questão é que estamos sobrecarregados de tal forma que esquecer passou a ser mais comum do que lembrar. E os bate-papos agora são assim, um tentando adivinhar o que o outro está querendo dizer.

Estou indo para Ibiraquera, aluguei uma casa. Falei Ibiraquera? Perequê, Perequê! Fica ali pertinho de... de... Porto Belo, obrigada. Só voltaremos depois do Natal. Depois do carnaval, isso. Muito tempo, né? Estou levando quatro livros... Esse novo da Fernanda Montenegro... Hein? Torres. Fernanda Torres. Um de um australiano, canadense, uma coisa assim. Um sobre a vida da Jane Fonda. E outro daquele cara que tu gosta, o Stephen... Philip Roth, esse aí. E um monte de palavras cruzadas, prescrição médica.

Jane Fonda, claro. Como é que pude esquecer?

quarta-feira, 5 de fevereiro de 2014

Acima de mim (Francisco Daudt)


O Superego continua sendo o ideal de perfeição "Acima de nós" com poderes de nos ameaçar com a vergonha
Superego, conceito de Freud, é tradução latina do alemão corrente (das überich; le surmoi) e tem uma história evolutiva fascinante. Qualquer mamífero, em graus variados de complexidade, tem um programa mental para detectar perigo e oportunidades. Nasce com eles, nasce conosco, faz parte dos programas herdados nos genes.
Somos capazes de entrar em contato com suas origens primitivas se encontramos uma cobra no caminho. "Algo", mais forte do que nós, aciona um pânico imediato.
Observo o Flap (cão da minha filha) e vejo seu programa perigo-oportunidade funcionando de maneira complexa. Ele bajula, se submete, pede atenção --na parte da oportunidade-- e se enfia debaixo da cama à simples menção de "banho" (perigo).
Mas nada se compara ao nosso programa de base e à sofisticação que ele desenvolveu.
Pelo fato de sermos bichos capazes de consciência e reflexão, além de absorvermos ensinamentos como nenhum outro, o nosso Superego vai se tornando mais e mais complexo pela vida afora.
Para evitar o perigo, ele desenvolve busca de controle. Para controlar, ele passa a buscar sentido em tudo, a procurar entender e dominar o funcionamento do mundo.
Um dos primeiros exemplos disso é também a primeira mostra de consciência em nossa espécie: nossos ancestrais perceberam que, assim como seus pares, eles também iriam morrer, logo, era preciso controlar a morte. Aí começaram os ritos fúnebres e as mitologias de vida após a morte, comum em todas as religiões desde então.
Já se vê que o medo pediu controle, o controle inventou uma história que explicasse o perigo, a história ganhou status de crença inabalável. Estava inventado o dogma: algo "Acima de mim" que não aceita questionamentos.
Como eu justamente estou questionando o dogma, por contar sua história, prevejo rancores levantados nos que o defendem. Lembro então que, mesmo para os religiosos, a teologia anda no fio da navalha entre a fé e a heresia.
Mas a evolução não parou por aí. Agora o programa é algo "Acima de mim", descolado do Eu, que olha para ele com reverência e temor.
Não por acaso muitos religiosos se proclamam "tementes a Deus" (têm medo dele e o reverenciam no mesmo termo).
Outra atribuição dada ao Superego é seu caráter de perfeição ideal e pureza absoluta, diante da qual estamos sempre em falta, sempre abaixo.
Platão, o filósofo grego de há 2400 anos, formalizou uma teoria antecessora do Superego, ao dizer que o mundo da matéria (nós) vive atolado numa caverna obscura que, do luminoso e perfeito mundo das ideias que lá fora vive, só pode enxergar as sombras projetadas no fosso.
Tudo o que conseguimos não passa de cópias inferiores do Ideal. Todos os deuses criados pelo homem à sua imagem e semelhança tiveram essa característica de Ideal.
O Superego, em sua versão atual, continua sendo o ideal de perfeição "Acima de nós", com poderes de nos ameaçar com a vergonha, a culpa, a perda do amor das pessoas queridas, a "sifudência", de nos criticar, julgar e condenar.
Se a consciência é uma graça, essa é sua desgraça.

terça-feira, 4 de fevereiro de 2014

Profissionais e amadores (João Pereira Coutinho)


Como o corpo não é bicho confiável, haverá sempre qualquer dissonância na orquestra para os perturbar
Uma amiga minha, mãe solteira, fez-me um pedido dramático: se ela não sobreviver a um linfoma, estarei disposto a cuidar do filho de oito anos? Caí do céu: pela doença e pela responsabilidade do pedido.
Mas primeiro concentrei-me na doença: que dizem os médicos? Que tratamentos existem? Que perspectivas de cura?
Ela respondeu-me que ainda não sabia. Mas os sintomas --gânglios linfáticos inchados, fadiga extrema, febre persistente etc.-- apontavam para o pior. Ela própria, furando noites e noites de insônias, lera a respeito na internet e até conversara com vários doentes nos fóruns respectivos. Gente com os mesmos sintomas, a mesma doença, os mesmos terrores futuros.
Voltei a cair do céu. E, antes de aconselhar ajuda psiquiátrica, perguntei com medo: e que tal esquecer a internet e consultar um médico verdadeiro? Um daqueles personagens que fazem exames e avaliam resultados com base na "ciência" e na "experiência"?
E foi assim que o linfoma se transformou num caso tratável de mononucleose infecciosa. E foi assim que a promessa de quimioterapia, ou radioterapia, ou ambas, se transformou em simples repouso. E foi assim que eu conheci os "cibercondríacos", uma nova forma de hipocondria que a internet promoveu e disseminou.
Quando li pela primeira vez a respeito, confesso que não comprei o diagnóstico: os "cibercondríacos" são hipocondríacos que usam a internet para pesquisarem todas as doenças que existem no cardápio?
Estranho. Sei do que falo. Sou um hipocondríaco profissional há 37 anos. E qualquer hipocondríaco profissional sabe que só existe uma coisa pior do que as doenças; é a informação sobre elas.
Porque um hipocondríaco profissional é um camaleão natural: se ele ler literatura médica com regularidade, ele pode ter câncer à segunda-feira, esclerose à terça, insuficiência renal à quarta e princípios de Alzheimer à quinta. Ou talvez à sexta, já não sei bem.
É a ignorância que protege o hipocondríaco profissional, não o conhecimento. Qualquer hipocondríaco profissional, quando compra um novo remédio, sabe que a primeira coisa a jogar fora é a bula do medicamento. Cometer a imprudência de a ler é começar a sentir todos os efeitos adversos --da simples coceira às crises psicóticas-- o que por vezes agrava a doença real que se procura tratar.
Os "cibercondríacos" não passam de amadores que só dão mau nome ao fascinante mundo da hipocondria. Mas o pior é que o futuro será deles.
A revista "The Economist" dedicou uma matéria extensa aos futuros "gadgets" que prometem revolucionar a medicina. Falo de brinquedos para usar no pulso, no peito, até nos olhos e que servem para medir a pressão sanguínea, o batimento cardíaco, os níveis de glicose nas lágrimas. De preferência, várias vezes ao dia, como quem toma um cafezinho ou fuma cigarro na pausa do trabalho.
Depois, os dados são enviados para o celular e o celular encaminha os ditos cujos para o médico especialista.
Os Estados Unidos estão na vanguarda do investimento e a "Economist", aplaudindo os avanços, pergunta se eles não irão soterrar os profissionais de saúde com quantidades avassaladoras de informação. Não apenas de doentes comprovados, mas de hipocondríacos amadores.
A revista não precisa sequer perguntar. Com o declínio das religiões tradicionais no Ocidente e o fim de qualquer possibilidade de transcendência, tudo que resta aos homens modernos é a tirania da imanência: os seus corpos, as suas patéticas carcaças --e o medo permanente de que a Deusa Saúde, a única que resistiu no Panteão, os possa atraiçoar a qualquer momento.
Por isso imagino esses hipocondríacos amadores, com brinquedos no pulso, no peito ou nos olhos, em vigilância permanente, medindo o comportamento do corpo com paranoica obsessão.
Qualquer sinal de alarme será uma nova preocupação, um novo temor, um novo terror. E como o corpo não é bicho confiável, haverá sempre qualquer dissonância na orquestra para os perturbar, entristecer, angustiar.
Nós, os hipocondríacos profissionais, renunciamos a esses brinquedos como um ex-alcoólatra recusa a mais inocente das cervejas.
Mas o futuro é dos amadores: gente tão preocupada em ser saudável que passará pela vida na perpétua condição de doentes.