terça-feira, 30 de agosto de 2011

Os velhos clichês e a guerra de sexos (Mirian Goldenberg)



Como se fossem de uma espécie superior, elas se acham únicas e dizem que os homens são todos iguais


"homem só quer sexo, mulher quer amor." "Todo homem é galinha, machista e infiel." "Homem tem medo de mulher independente."
"Homens ficam inseguros quando o salário da mulher é maior." "Homens são infantis, bobos e imaturos."
"Eles odeiam discutir a relação."
"Homem não sofre por amor." "Eles se separam e logo arranjam outra." "Eles detestam mulher inteligente."
Esses e outros clichês são crenças frequentes entre as mulheres brasileiras.
Elas repetem esses velhos chavões como se só elas, e não eles, tivessem mudado nas últimas décadas.
Não encontro entre os homens os mesmos clichês.
Eles dizem que se sentem atraídos pelas inteligentes e que admiram as fortes, poderosas, independentes.
A maioria quer sexo, sim, mas com a mulher amada. Um economista de 55 anos declarou: "Para as mulheres, todo homem é galinha. Sempre fui fiel à minha mulher. Não quero ter outra. Quero que ela seja também a minha amante. Não quero trair a minha melhor amiga".
Os dados do IBGE mostram crescimento no número de homens que se casam com mulheres mais velhas. Eles desejam uma mulher bonita, é verdade, mas desde que ela seja interessante (inteligente, bem-humorada, independente).
Como me disse um arquiteto de 47 anos: "Essa coisa de homem trocar uma mulher de 40 por duas de 20 é o maior clichê que as mulheres inventaram. Quero uma mulher interessante, uma companheira. E que mulher de 20 anos pode me ensinar alguma coisa? Não quero uma filha para ser dominada ou um troféu para ser exibido. Mas as mulheres insistem em rotular os homens".
Ou ainda, conforme um jornalista de 39 anos: "É até engraçado! As mulheres se consideram únicas, especiais, diferentes. Já nós, os homens, somos todos iguais. É como se elas fossem de uma espécie mais civilizada, superior, e nós os primitivos, seres inferiores".
Elas continuam repetindo ideias que não combinam mais com grande parte dos homens brasileiros.
Acabam, assim, reforçando os estereótipos de gênero, os mesmos que elas dizem querer destruir.
É óbvio que as brasileiras estão mais livres.
Mas parece existir uma cegueira feminina na hora de aceitar as transformações dos comportamentos masculinos e os novos modelos de ser homem.
Para conquistar uma verdadeira igualdade entre os gêneros, não seria a hora de parar de enxergar todos os homens pela mesma lente dos velhos clichês?

MIRIAN GOLDENBERG é antropóloga, professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro e autora de "De Perto Ninguém é Normal" (Ed.BestBolso)

domingo, 28 de agosto de 2011

A palavra (Martha Medeiros)



Falar e escrever sem necessidade de tradução ou legenda: eis um dom que é preciso desenvolver todos os dias

Freud costumava dizer que poetas e escritores precederam os psicanalistas na descoberta do inconsciente. Tudo porque literatura e psicanálise possuem um profundo elo em comum: a palavra.

Já me perguntei algumas vezes como é que uma pessoa que tem dificuldade com a palavra consegue externar suas fantasias e carências durante uma terapia. Consultas são um refinado exercício de comunicação. Se relacionamentos amorosos fracassam por falhas na comunicação, creio que a relação terapêutica também naufragará diante da impossibilidade de se fazer entender.

Estou lendo um belo livro de uma autora que, além de poeta, é psicanalista, Sandra Niskier Flander. E o livro chama-se justamente a pa-lavra, assim, em minúsculas e salientando o verbo contido no substantivo. Lavrar: revolver e sulcar a terra, prepará-la para o cultivo.

Se eu tenho um Deus, e tenho alguns, a palavra é certamente um deles. Um Deus feminino, porém não menos dominador. Ela, a palavra, foi determinante na minha trajetória não só profissional, mas existencial. Só cheguei a algum lugar nessa vida por me expressar com clareza, algo que muitos consideram fácil, mas fácil é escrever com afetação.

A clareza exige simplicidade, foco, precisão e generosidade. A pessoa que nos ouve e que nos lê não é obrigada a ter uma bola de cristal para descobrir o que queremos dizer. Falar e escrever sem necessidade de tradução ou legenda: eis um dom que é preciso desenvolver todos os dias por aqueles que apreciam viver num mundo com menos obstáculos.


A palavra, que ferramenta.

É pena que haja tamanha displicência em relação ao seu uso. Poucos se dão conta de que ela é a chave que abre as portas mais emperradas, que ela facilita negociações, encurta caminhos, cria laços, aproxima as pessoas.

Tanta gente nasce e morre sem dialogar com a vida. Contam coisas, falam por falar, mas não conversam, não usam a palavra como elemento de troca. Encantam-se pelo som da própria voz e, nessa onda narcísica, qualquer palavra lhes serve.

Mas não. Não serve qualquer uma.

A palavra exata é uma pequeno diamante. Embeleza tudo: o convívio, o poema, o amor. Quando a palavra não tem serventia alguma, o silêncio mantém-se no posto daquele que melhor fala por nós. Em terapia – voltemos ao assunto inicial –, temos que nos apresentar sem defesas, relatar impressões do passado, tornar públicas nossas aflições mais secretas, perder o pudor diante das nossas fraquezas, ser honestos de uma forma quase violenta, tudo em busca de uma “absolvição” que nos permita viver sem arrastar tantas correntes.

Como atingir o ponto nevrálgico das nossas dores sem o bisturi certeiro da palavra? É através dela que a gente se cura.

quinta-feira, 25 de agosto de 2011

Quando o rato quer o gato - Fernando Reinach



Nada como o desejo sexual para diminuir a aversão ao risco. Mas quando um rato se sente atraído por um gato, acaba comido. Literalmente. Ruim para o rato, bom para o gato e para o parasita que, instalado no cérebro do rato, faz com que o roedor se apaixone pelo inimigo.

Em 1999, foi descoberto que ratos infectados com o parasita Toxoplasma gondii apresentavam um comportamento estranho. Enquanto um rato normal fica totalmente paralisado e tenta se esconder ao sentir o cheiro de um gato, ratos infectados pelo Toxoplasma pareciam ficar curiosos e começavam a explorar o ambiente. E, óbvio, encontravam-se com o gato e eram devorados. Mas como explicar esse comportamento quase suicida, aparentemente causado pela presença do parasita?

O Toxoplasma infecta diversos animais, até mesmo seres humanos, alojando-se no cérebro, onde forma minúsculos cistos. Mas o Toxoplasma só se reproduz sexualmente no intestino de um gato. É lá que ele se divide e acaba contaminando as fezes do bichano.

Nós e os ratos somos contaminados quando entramos em contato com fezes de gatos contaminados. Uma vez no rato, o grande desafio do Toxoplasma é voltar para o seu hospedeiro primário, o gato, a fim de se multiplicar. Para isso é necessário que o gato coma o rato - e, infelizmente para o Toxoplasma, não é sempre que o gato consegue capturar o rato (vide Tom & Jerry).

Na época em que esse comportamento foi descoberto em ratos infectados, os cientistas sugeriram que, ao longo da evolução, o Toxoplasma teria adquirido a capacidade de se alojar em um local do cérebro dos ratos, alterando o comportamento do roedor, o que facilitaria sua captura pelos gatos. Essa hipótese, digna de um filme de ficção científica, agora foi confirmada.

Experiência. O experimento é simples. Dezoito ratos foram infectados com Toxoplasma e 18 ratos saudáveis serviram como controle. Nove ratos infectados e 9 ratos saudáveis foram colocados em gaiolas contendo um pedaço de tecido umedecido com urina de gato. A outra metade, 9 ratos saudáveis e 9 infectados, foi colocada em uma gaiola, na qual podiam sentir o cheiro de uma fêmea no cio colocada na gaiola ao lado.

O estímulo durou 20 minutos. Uma hora e meia após o término do estímulo, os ratos foram sacrificados e seus cérebros, preservados, fatiados e examinados ao microscópio. O objetivo era determinar qual área do cérebro havia sido estimulada durante a exposição à urina de gato ou ao cheiro das atrativas fêmeas no cio. Isso é possível porque, quando um neurônio fica ativo por muito tempo, ele sintetiza uma proteína chamada c-Fos, que pode ser detectada nas fatias de cérebro. Se os neurônios possuem c-Fos, isso indica que eles estavam ativos antes da morte do animal. As áreas do cérebro envolvidas no desejo sexual e nas reações de medo foram examinadas cuidadosamente nos quatro grupos de animais.

Nos ratos normais estimulados pela presença da fêmea, somente a região envolvida no desejo sexual havia sido ativada. Também como esperado, os ratos normais submetidos ao cheiro de urina de gato apresentavam a área relacionada ao medo ativada e a região relacionada ao estímulo sexual desativada. O interessante é o que foi observado nos ratos infectados com Toxoplasma. Nos ratos submetidos ao cheiro das fêmeas, somente a área sexual era ativada. Mas nos ratos infectados submetidos ao cheiro de urina de gato, tanto a área relacionada ao medo quanto a área relacionada ao desejo sexual haviam sido ativadas. Em outras palavras, os ratos infectados pelos parasitas, ao sentir o cheiro de urina de gato, ficavam com medo (como esperado), mas ao mesmo tempo ficavam atraídos sexualmente pelo cheiro. Como a atração sexual é mais forte que o medo, eles se aventuram a procurar a origem do cheiro de urina. Acabam encontrando o gato, são devorados, e o parasita pode colonizar o gato.

Esse resultado demonstra que a infecção pelo parasita não suprime o medo que os ratos sentem dos gatos, mas estimula de tal forma o desejo sexual que este supera o medo. Parece-me que esse tipo de reação, o desejo superando o medo, não é estranho aos seres humanos. Seria curioso investigar se pessoas infectadas pelo Toxoplasma são mais propensas à infidelidade.

quarta-feira, 24 de agosto de 2011

Outra arte (MARCELO COELHO)




Estamos sempre perdendo, o mais difícil é levar as coisas para o lado pessoal na arte de agradecer



Chaves, celulares, óculos; não importa. Perca uma coisa por dia, recomenda Elizabeth Bishop (1911-1979) num poema famoso. Existe, diz ela, a "arte de perder", cujo aprendizado não é difícil.
Estamos sempre perdendo. Já perdi uns três celulares, sem contar o carregadorzinho que acompanha cada um, e que é sempre diferente. Nem falo das máquinas fotográficas digitais, dos seus carregadores e dos fios que servem para ligá-las ao computador. Se não as perco, logo se quebram. Como não adianta mandar para o conserto, estão perdidas de qualquer jeito.
As próprias fotos, transferidas para o computador, nem por isso estão guardadas. Perderam-se em alguma pasta de arquivos; se não tenho paciência para procurá-las, perdidas ficarão.
Isso no que se refere à arte de perder. Existe outra arte, todavia, um pouco mais difícil, e outro poeta, um pouco menos direto, se ocupou dela.
É a arte de agradecer. Acho que William Wordsworth (1770-1850) se referia a isso quando escreveu, depois de um passeio campestre: "Tudo o que contemplamos está cheio de bendições".
Claro, quando se tem 28 anos (a idade de Wordsworth quando escreveu "Tintern Abbey") e se está diante de uma paisagem verdejante, não é injustificado reconhecer, com a calma intensidade do poeta, que "all which we behold is full of blessings".
Mas ele sabia do que estava falando. Não ignora, no mesmo poema, "o peso moroso e duro de todo este inexplicável mundo", nem tudo o que já tinha perdido desde sua infância, livre e selvagem, naqueles mesmos campos da Inglaterra.
Ainda assim, ele quer agradecer -e esse aprendizado tem um bocado de religioso. A coisa toda está acima das minhas forças, mas não custa treinar de vez em quando.
No trânsito, na fumaça e na chateação de São Paulo, tenho topado com não sei que tipo de árvore, floridíssima, numa cor clara de rosa quase branca. Não basta, acho, pensar: "Olha aí, bonita essa árvore".
Ajuda imaginar que é um presente. Se não de Deus, que seja da prefeitura, não importa. É bom levar as coisas para o lado pessoal, como fazemos tão facilmente diante de infelicidades diversas. "Essa árvore está aí para mim." Agradeço.
Convém não exagerar. Li outro dia que um cidadão paulistano, acordando feliz para ver a bela figueira centenária que tinha diante da janela do apartamento, teve a ingrata surpresa de vê-la derrubada.
Era cupim; era o vento; até aí, nada de mais, mas o chato é que seu carro tinha ficado embaixo. Por esse tipo de coisa, conheço um colega carioca que, todos os dias, quando acorda, dá graças ao destino por não ter nascido paulista.
Eu estava dizendo que já perdi três celulares, mas (para entrar enfim no tema deste artigo) eis aí uma perda que não lamento. Na verdade, o que desejo agradecer aqui é o fato de não precisar de celular.
Entendo que um médico, um advogado criminal ou um corretor de imóveis não possam viver sem celular. Já pensei em abandonar até o telefone fixo, que me sobressalta a cada chamada (por que não mandaram um e-mail?). Enquanto isso não acontece, o celular fica bem desligadinho, lá onde não sei onde ficou.
Não nego as vantagens do aparelho. Você pode usá-lo em todo lugar. Você também se torna onipresente. É, assim, um multiplicador de espaço.
O telefone móvel, como o automóvel e qualquer outra coisa que termine em "móvel" serve para isso mesmo. Livra-nos da casa, dos fios, das tomadas, do lugar, do terreno, até do computador.
E o próprio computador, observo de passagem, já se livra de si mesmo graças à computação "em nuvem" -seus arquivos e programas vão literalmente para o espaço, ou melhor, para a ausência de lugar, para um espaço invisível, abstrato, nenhum.
Chego então ao paradoxo. Com a onipresença conquistada, com a multiplicação de um lugar em todos os lugares possíveis, com a mobilidade geral de tudo, é o tempo que se reduz.
Cada celular é um roedor de tempo, e o cidadão, para estar acessível e ser acessado em todos os lugares, paga o preço de viver espremido, sem ar, numa cela minúscula de poucos minutos por vez.
Seria o caso, então, de aprender com as árvores, que têm muito tempo para crescer e florir, por estarem fixas no espaço, presas às suas raízes. A menos, claro, que desabem de repente.

Elisabeth Bishop: A arte de Perder



“A arte de perder não é nenhum mistério;
Tantas coisas contêm em si o acidente
De perdê-las, que perder não é nada sério.
Perca um pouquinho a cada dia. Aceite, austero,
A chave perdida, a hora gasta bestamente.
A arte de perder não é nenhum mistério.
Depois perca mais rápido, com mais critério:
Lugares, nomes, a escala subseqüente
Da viagem não feita. Nada disso é sério.
Perdi o relógio de mamãe. Ah! E nem quero
Lembrar a perda de três casas excelentes.
A arte de perder não é nenhum mistério.
Perdi duas cidades lindas. E um império
Que era meu, dois rios, e mais um continente.
Tenho saudade deles. Mas não é nada sério.
– Mesmo perder você (a voz, o riso etéreo que eu amo) não muda nada. Pois é evidente
que a arte de perder não chega a ser mistério por muito que pareça (Escreve!) muito sério. “

terça-feira, 23 de agosto de 2011

O que quer uma mulher? (Martha Medeiros)




Uma mulher quer que suas unhas não quebrem nem descasquem. Uma mulher quer se sentir atraente com o peso que tem. Uma mulher quer ver seu trabalho valorizado. E quer ganhar dinheiro com ele. Uma mulher quer ser amada. Quer viver apaixonada. E quer se divertir.

Poderíamos encerrar a questão neste primeiro parágrafo, mas como a página necessita ser preenchida, avante.

Uma mulher quer ter filhos. Ou já quis um dia. Uma mulher com filhos quer ter mais tempo para si mesma. E uma mulher com tempo de sobra quer uma rotina mais agitada. Uma mulher só não quer o tédio.

Uma mulher quer um cabelo que não precise ser constantemente pintado, arrumado, escovado. Uma mulher quer conversar.

Uma mulher quer ficar em silêncio. Uma mulher quer que lhe telefonem de surpresa e lhe digam coisas que a façam ficar sem palavras. Uma mulher quer deixar um homem maluco. E ter, ela mesma, o direito de enlouquecer.

Uma mulher quer aprender a ser mais egoísta. Quer, ao menos uma vez na vida, pensar só nela e em mais ninguém.

Uma mulher quer inspirar um poema. Quer ser musa. Mas não quer ser confundida com essas mulheres que não controlam a própria vaidade, perdem a noção e pagam mico nas páginas das revistas.

Uma mulher quer colocar comida na mesa e que as crianças raspem o prato, uma mulher quer seus filhos saudáveis e felizes, uma mulher quer que eles durmam a noite toda, de preferência em casa.

Uma mulher quer desligar a tevê. Uma mulher quer sexo. Uma mulher quer devorar um pão de meio quilo sem culpa. Uma mulher quer sair bonita na foto. Uma mulher quer dormir mais cedo. Uma mulher quer ser reparada na festa. Uma mulher quer que seu carro não a deixe na mão. Uma mulher quer ser escutada. E quer escutar os homens, que pouco se abrem.

Uma mulher quer fazer algo pela sociedade. Quer ajudar quem precisa. Quer ser útil. Em troca, quer que a ajudem com as sacolas. E que a amparem na dor.

Uma mulher quer ter o gostinho de dizer não para os cafajestes. Por mais que ela queira dizer sim.

Uma mulher quer morrer de rir. Uma mulher quer que não a levem tão a sério. Quer batalhar por seus ideais sem se embrutecer. Uma mulher quer de vez em quando demonstrar seus dotes de atriz. Uma mulher quer brilhar no escuro.

Uma mulher quer paz. Uma mulher quer ler mais, viajar mais, conhecer mais. Uma mulher quer flores. Quer beijos. Quer se sentir viva. E quer viver pra sempre, enquanto for bom. Está respondido, doutor Freud. Não somos assim tão complicadas.

segunda-feira, 22 de agosto de 2011

Gente (nada) fina



Diferentes experimentos mostram que humanos 'normais' mentem com frequência, podem ser enganados pelas aparências e, quando estimulados, são capazes até de torturar

HÉLIO SCHWARTSMAN
ARTICULISTA DA FOLHA
O homem é bom ou mau? A pergunta, que mobilizou legiões de filósofos e teólogos, é traiçoeira e induz uma resposta categórica.
Somos capazes de fazer coisas boas e más. O balanço depende das nossas disposições naturais como da situação em que estamos.
Esta página traz sete experimentos que pintam um quadro pouco lisonjeiro da natureza humana. Se tomados pelo valor de face, concluiremos que somos torturadores, mentirosos e incapazes de ver o óbvio. Mas para um quadro completo, vale lembrar que também somos altruístas e capazes de gestos de amor desinteressado.

1
Poder e abuso
O que importa é o caráter, certo? Talvez não. Em 1971, o psicólogo Philip Zimbardo queria descobrir se traços de personalidade de prisioneiros e guardas explicavam situações abusivas nas cadeias. Ele criou um simulacro de xadrez com 24 voluntários. Parte do grupo ficou com o papel de guarda, e o restante, com o de prisioneiro. Rapidamente as coisas saíram de controle e os guardas mostraram-se cada vez mais cruéis. Ou seja: o comportamento dos participantes foi ditado pela situação em que estavam.

2
Psicólogos insanos
Conseguimos distinguir a sanidade da insanidade? Num experimento de 1973, o psicólogo David Rosenham e sete associados foram a hospitais psiquiátricos queixando-se de ouvir vozes. Sete deles foram internados com diagnóstico de esquizofrenia. O oitavo, segundo os médicos, sofria do que hoje é chamado de transtorno bipolar. Eles passaram então a agir normalmente, dizendo que as vozes tinham sumido. Mas sair foi mais difícil: a média de estadia foi de 19 dias. "Não conseguimos distinguir os sãos dos insanos", concluiu o pesquisador.

3
O gorila invisível
Nosso cérebro também prega peças. Um experimento de 1999 traduz isso com bom humor. Psicólogos fizeram um vídeo no qual seis pessoas (três com camisetas brancas, e três, pretas) trocam passes com bolas de basquete. Participantes da pesquisa são instruídos a contar os passes do pessoal de branco ao ver o vídeo. A uma altura, um sujeito fantasiado de gorila entra em cena por noves segundos. Metade das cobaias não veem o símio.

4
Professor Fox
O importante é ter conteúdo. Outra balela: aparências são mais importantes. Em meados dos anos 70, psicólogos da Universidade da Califórnia criaram o Dr. Myron L. Fox. Ele era uma fraude. Para representá-lo, contrataram um ator charmoso que deu uma aula sobre "teoria dos jogos matemática aplicada à educação física". A aula não passava de um amontoado de bobagens sem sentido, com frases de duplo sentido e contradições. A plateia, composta por psiquiatras, psicólogos e assistentes sociais, adorou. Ao avaliá-lo, deu-lhe notas muito positivas.

5
Tortura estimulada
Quando a situação o exige, pessoas normais são capazes de coisas terríveis. Em 1963, Stanley Milgram, da Universidade Yale, descreveu experimentos nos quais voluntários são convidados a aplicar choques elétricos num ator como punição por respostas errada num teste de memória. O voluntário não sabe que o homem é um ator e que a máquina de choque é falsa. Quando instados pelo pesquisador a aumentar a voltagem dos choques, 65% obedeceram até chegar à carga máxima, apesar dos gritos do ator.

6
Política 'emocional'
Ao decidir o voto, colocamos a razão a serviço de nossos interesses. Esqueça. O psicólogo Drew Westen colocou 15 eleitores do Partido Republicano e 15 do Partido Democrata num aparelho que monitorava a atividade de seus cérebros enquanto seus candidatos do coração apareciam em situações fictícias desfavoráveis. Ele viu que os circuitos envolvidos no raciocínio lógico quase não foram ativados durante o experimento e os participantes relativizaram as situações negativas dos candidatos.

7
Pegos na mentira
A honestidade, pelo menos, continua sendo um valor. Será? O psicólogo Robert Feldman gravou secretamente várias conversações entre duas pessoas em ambientes como lojas e universidade. Depois, as convidou a revisar o vídeo, apontando as "inexatidões" em que haviam incorrido. Os participantes não sabiam que o pesquisador estava interessado em mentiras. A conclusão de Feldman é que, em uma conversa de dez minutos em que dois adultos se apresentam, eles mentem uma média de três vezes cada, podendo chegar a 12 nos casos extravagantes.

sábado, 20 de agosto de 2011

A arte da manutenção (Martha Medeiros)



Bem que eu gostaria de dizer que esta crônica foi inspirada em Zen e a Arte da Manutenção de Motocicletas, livro de Robert M. Pirsig que, encantada, comecei a ler aos 24 anos e que nunca terminei. Estava adorando e, de repente, cadê o livro? Emprestei, me roubaram ou esqueci no ônibus. Só sei que o perdi. Um dia retomarei essa leitura, não de onde parei, óbvio, e sim desde o início – minha memória não dá pra mais nada, só reciclando.

Então, como ia dizendo, não me inspirei nesse clássico da filosofia moderna, o que me conferiria certo charme, e sim em fuleiras notinhas de rodapé que se repetem sem que ninguém dê a mínima: cinco feridos em carrinho de montanha-russa, casal despenca da roda-gigante, adolescente atingida por um brinquedo que se desprendeu. Os parques de diversões não estão pra brincadeira.

A responsabilidade é de quem? De quem deveria zelar pela manutenção, mas ninguém está nem aí. Inaugura-se o parque, o tempo passa, tudo enferruja, o equipamento se corrói e salve-se quem puder.

Não resisto à tentação de comparar. Você me conhece. Vou comparar. É ou não é o retrato da maioria das relações?

No começo, tudo parque de diversão. Frio na barriga, vertigem, gritinhos. Depois, acostuma-se, o medo passa, a excitação também. Ninguém mais vê graça na coisa, mas, sabe como é, acostumamos, vira hábito, todo sábado à tarde, toda quarta à noite, os amigos estimulam, vamos lá, vamos lá, até que um se esborracha no chão.


Entre dolorida, surpresa e indignada, a vítima se pergunta: o que é que aconteceu? Os responsáveis pelo parque não zelaram pela segurança, apenas isso, e, como alertei, não estou falando apenas de parques, mas também de casamentos, paixões, amizades, o prazer maior da vida. Era pra ser divertido pra sempre, empolgante pra sempre, inspirador pra sempre, mas a maioria acredita que a longevidade dos amores é atribuição do destino, ele é que tem que tomar conta.

Nenhum encantamento se mantém sem uma boa supervisão. Não basta dar corda e depois cruzar os braços. Não dá pra apertar o botão e depois sair para tomar um lanche. Não se pode confiar na sorte. A engrenagem não se autolubrifica sozinha, os movimentos não se renovam no automático e o tempo não faz mágica. Diversão, como tudo na vida, também exige cuidado.

Mas quem é que tem paciência para o zelo, de onde tirar disposição para renovar o suspiro mil vezes reprisado? Começa maravilhoso, depois fica legal, aí legalzinho, até o “larguei de mão, cansei”.

Manutenção. Talvez eu tenha extraído aqui, por resquícios indeléveis da memória, alguns substratos do emblemático livro de Robert M. Pirsig, mas o assunto ainda é parque de diversões (os reais e os metafóricos), e o perigo que os ronda quando decaem.


quinta-feira, 18 de agosto de 2011

Mudança (Antonio Prata)




Do que é feita a vida senão dos andaimes que usamos para construirmo-nos? Eles nos sobreviverão


DO FUNDO da gaveta, numa foto de 1991, minha primeira namorada me sorri. No verso, em tinta rosa, diz que me ama "pra sempre!!!". Eu também a amei para sempre e com muitas exclamações, por seis meses e alguns amassos, na distante oitava série -até um recreio em que, não lembro exatamente por qual motivo, resolvemos "dar um tempo", num canto da quadra poliesportiva. O tempo dura até hoje. (Alguém me disse, outro dia, que ela é procuradora do Estado. Duvido que ainda use canetinhas cor-de-rosa.)
De uma pasta, surge uma prova de história sobre o feudalismo, o cartão-postal de um amigo, de Amsterdã, uma agenda de 92. Dia 23 de maio: "Niver da Ju B.!!! Não vai esquecer, hein?!". Por onde andará aquele amigo? Quem era mesmo a Ju B., hein?
Numa caixa de charuto, papéis e guardanapos cheios de projetos da última década e meia. "Revista de jornalismo literário. Arte: Ciça. Textos: Antonio, Chico, Nirla, Fred, Paulo." "Ideia de romance: paulista toma pé na bunda e cai no carnaval do Rio". "Sitcom: bar frequentado por artistas que não emplacam, tendo que sobreviver de atividades paralelas".
Cercado por aqueles achados arqueológicos, escavados de diferentes camadas sedimentares do meu apartamento, reflito sobre o que levar para a casa nova, o que jogar no saco de lixo azul. Um lado, nostálgico, agarra-se ao conteúdo das gavetas: é minha vida, meu passado, é preciso guardá-lo. Outro lado, o prático, provoca: "guardá-lo por quê? Em que situação você desenterrará as cartas de ex-namoradas, cartões-postais de quem já não vê há 20 anos, projetos que não concretizou, nem concretizará?"
Não interessa a utilidade desses fósseis, digo à minha sanha sanitarista: é dos momentos representados por eles que somos feitos. "Pois o feito, feito está", retruca o pragmático: "todo o conteúdo dessas gavetas não são mais que andaimes de teu edifício. Para que preservá-los?"
Ora -defendo-me-, e do que é feita a vida senão dos andaimes que usamos para construirmo-nos? Aliás, eles nos sobreviverão. Vão-se os dedos, ficam os anéis, eis a triste verdade. O utilitarista insiste, agora com arroubos de sarcasmo: "Exato!
E se mesmo você uma hora será descartado, de que valerão todos esses bricabraques?".
Ah, inclemente faxineiro! Não percebe?! É justamente a certeza de que nos vamos que obriga a nos agarrarmos ao que fomos! "Você está se repetindo", diz o chato. "Já escreveu isso em outra crônica, dia desses." Pouco me importa. A repetição não é necessariamente um defeito. Veja Woody Allen. Nelson Rodrigues. Vonnegut. Rubem Braga.
Só temos duas ou três coisas a dizer sobre a vida e as vamos reconfigurando, polindo, tentando clareá-las ao longo do tempo. Para isso, aliás, servem esses andaimes, cacarecos recolhidos nas andanças: pontuam o caminho, amenizam a falta de sentido da linha de chegada.
Decido: levarei tudo comigo. De madrugada, o caminhão de lixo mastigará apenas os canhotos dos talões de cheque, velhas contas de luz e declarações do imposto de renda. Amores eternos, mesmo os mais fugazes, amigos que perdemos e os sonhos antigos devem permanecer sempre conosco: senão no fundo do coração, ao menos no fundo de uma gaveta.

domingo, 14 de agosto de 2011

Aquele que cativas (Marta Medeiros)



Me concedo o direito de não me sentir responsável por aquele que cativo. Me sinto grata, mas responsável é demais

Devia ter uns 14 anos. Estava na sala de aula, olhar compenetrado no quadro-negro, quando de mão em mão chegou até mim um bilhete de uma colega que costumava ser esnobada pela turma e com quem conversara algumas poucas vezes na hora do recreio. Ela me convidava para ir a sua casa à tarde. E concluía com uma sentença: És eternamente responsável por aquele que cativas.

Eu não tinha a menor intimidade com aquela colega e não estava a fim de ir a sua casa. Mas ela havia recorrido a Saint Exupéry. Me impressionou.

Fui à casa dela, conversamos, emprestei uns cadernos, mas nunca ficamos íntimas e nunca mais ouvi falar da garota. Hoje deve ser uma ótima advogada, já que desde menina conhecia as manhas para se convencer alguém.

O que ficou daquela tarde foi o argumento. “És responsável por aquele que cativas.” Acabei rezando por essa cartilha por um longo tempo. Bastava a pessoa simpatizar comigo e eu me sentia na obrigação de ser atenciosa a ponto de fazer coisas que não queria. Até que um dia dei um basta nesse trelelé.

Com todo o respeito ao autor de O Pequeno Príncipe, a terceira obra mais publicada e traduzida no mundo, presença constante nas listas dos mais vendidos mesmo 68 anos depois de ter sido lançado, me concedo o direito de não me sentir responsável por aquele que cativo. Me sinto grata e envaidecida, mas responsável é um tantinho demais.

A frase, que não deixa de ser um bonito verso, ganhou ares de reprimenda e punição. Cuidado: se alguém gostar muito de você, se passar a depender de você, danou-se, será obrigatório adotá-lo. O que era pra ser espontâneo virou um dever.


Reconheço as melhores intenções do livro, que é belo e merece continuar sendo lido por muitas gerações. Mas a frase, quando usada como ameaça, cria um mal-estar entre cativantes e cativados. Será mesmo que você é responsável por quem se encantou por você?

Sei que há pessoas de má-fé que seduzem os outros por diversão e depois desaparecem, deixando o seduzido chorando abraçado às suas ilusões. Maldade. Não se deve brincar com os sentimentos de ninguém, aprendemos isso antes mesmo de aprender a ler. Mas nos casos em que a sedução se deu de forma não proposital, ninguém deve sentir-se amarrado.

E mesmo quando houve sedução intencional e essa foi retribuída, virando um relacionamento, quem desama primeiro não precisa se sentir culpado se resolver ir embora. Que seja educado, gentil, amável com aquele que tanto o preza ainda, mas está liberado para tocar sua vida de outra forma e à distância. Quem fica deve aprender a fazer o mesmo. Não é fácil ser rejeitado, mas transferir a responsabilidade do seu bem-estar para outra pessoa tampouco é uma atitude cativante.

Nada pessoal, pequeno príncipe. Apenas um contra-argumento. 

quarta-feira, 10 de agosto de 2011

Twitter, Facebook e o Apocalipse (Antonio Prata)




Vamos admitir: desde que inventaram o Facebook e o Twitter que ninguém mais trabalha, só finge

AS COISAS não vão nada bem no hemisfério Norte. A Grécia foi pra cucuia, Portugal e Espanha estão no vinagre, e, na Irlanda, os únicos habitantes que fizeram alguns caraminguás em 2011 foram os quatro integrantes do U2. Até os EUA, quem diria, ameaçaram dar um calote global, o que levou a agência Standard & Poor's a divulgar que a grande potência está mais pra "poor" do que pra "standard".
Diante dos abalos econômicos e da ameaça de recessão mundial, acusam-se os suspeitos de sempre: a esquerda vê o fim do capitalismo, a direita vocifera contra a ineficiência do Estado. Eu, contudo, cronista independente, sem outro compromisso senão com a verdade -e com minha pequena, claro-, sei que a culpa não é dos negociantes nem dos políticos: a culpa, meus caros, é das mídias sociais.
Vamos admitir: desde que inventaram o Facebook e o Twitter que ninguém mais trabalha, só finge -uma hora, ia dar problema. Se o hemisfério Norte quebrou antes de nós é porque se enredou primeiro nessas arapucas do Demônio, mas não demorará para nos estrumbicarmos também: afinal, o dia-padrão de um trabalhador brasileiro não é tão diferente do de um americano ou europeu.
Vejamos: você chega ao trabalho, senta-se diante do computador e, antes de começar suas tarefas, resolve dar uma checada rápida na "homepage". A "home" traz uma fofoca sobre o comportamento sexual de uma cantora pop, e você imediatamente pensa numa bobagem para tuitar. Abre o Twitter, escreve.
Passa então a clicar, de dez em dez segundos, no "your tweets retweeted" -como um ratinho de laboratório, acionando a barra de glicose-, pra ver se gostaram da sua piada. Infelizmente, em 15 minutos, só um retuíte. Você decide preencher a carência que subitamente lhe bateu indo até o Facebook: vai que alguém lhe deixou um recado, na madrugada? Nada, ninguém quis lhe dizer coisa alguma nas últimas 12 horas.
Você descobre, contudo, que a Juliana Pereira, sua ex-colega de ginásio, postou as fotos do feriado, na praia.
Você se lembra dessa Juliana, era bonita, e quando dá por si está há uns três minutos vasculhando as imagens da moça, na esperança algo adolescente, algo senil, de vê-la de biquíni. Não achando nada além de filhinhos sorridentes e uma ou outra foto artística de conchas, com efeitos gráficos do iPhone, decreta que é, enfim, hora de começar a trabalhar. Mas, já que ficou tanto tempo no Facebook, por que não dar só uma passadinha no Twitter, ver se, nesse meio tempo, alguém te retuitou, ou comentou seu tuíte? Nada, ainda, mas um amigo colocou um link para uma propaganda belga de cerveja, muito engraçada. Quando vai ver, já está na hora do almoço, e o dia nem começou.
Agora, caro leitor, some todo o tempo que você tem perdido nessas inúteis perambulações virtuais ao tempo de todos os outros milhões de internautas, calcule o prejuízo em dólares, euros ou reais, e o resultado é uma bela recessão global. Reajamos enquanto é tempo: ou a gente acaba com as mídias sociais, ou as mídias sociais acabam com a gente!
PS- Meu amor, a história da Juliana Pereira é meramente ilustrativa, real apenas no terreno da ficção. Espero que compreenda.

segunda-feira, 8 de agosto de 2011

Assombro (Cristina Guerra)

O amor assusta porque ao nascer já anuncia: posso acabar. Pior: o amor do outro pode acabar. Ou nada disso: pode a vida e o dia e as horas serem mais fortes que qualquer impulso, e o que era um-mais-um torna-se um a um. E o que resta é cada um levando como pode o que pulsa em si.


O amor é ter a perder.

Ou não ter nada. É tudo e todo o medo e todos os perigos. Ou nada e paz. Ou nada.

O amor que nasce é assustadoramente amor. O amor que segue sozinho é assustadoramente só. Não há meio-termo porque o que o amor quer é coragem, o amor quer entrega, o amor sempre quer. Nem sempre é harmonia, nem sempre delicadeza. Mas sempre amor. Até não mais. E isso demora.

É maior que nós, o amor. Faz sombra e assusta. Até que se veja dele o seu verdadeiro tamanho. A sombra do amor assusta. Até que se entenda que ela é sombra e só.

O amor nos pede a escolha: ser do tamanho do medo ou da coragem.

sábado, 6 de agosto de 2011

Vingança (Martha Medeiros)

Muitas frases espirituosas já foram escritas a respeito de vingança. Gosto de uma que diz: “Contra quem lhe tomou sua esposa, não existe vingança melhor do que o infeliz ficar com ela pra sempre”. Vale para ambos os sexos, acrescento.

A vingança é uma atitude de mau humor, e o mau humor pode ser risível. Eu, ao menos, acho engraçado que alguém perca tempo se dedicando a se vingar do que quer que seja, deixando claro o quanto se sentiu ofendido. Há vingança melhor do que não dar a mínima?

Mas, para a maioria das pessoas, é difícil ficar indiferente diante de uma situação que, a priori, causou prejuízo. Até o Velho Testamento cita o “olho por olho” como forma de sanar o dano causado. Toma lá, dá cá. Aqui se faz, aqui se paga. Ok, mas me parece um desperdício de energia.

Não chego ao cúmulo de oferecer a outra face, que isso é coisa pra santo. Perdoo, mas me blindo. Se aprontou uma vez, aprontará outra. Fico na minha, me fortaleço e trato de viver cada dia melhor – nada irrita mais nossos inimigos.

Pesquisas indicam que as mulheres são mais vingativas do que os homens, o que nos faz descer alguns degraus, sustentando a teoria do sexo frágil. Transar com outro, sem estar a fim, só porque fomos traídas? Roubar o namorado da amiga porque ela ficou com nosso emprego? Espalhar boatos pela internet porque alguém foi desleal? É a confirmação da nossa pequeneza, que passa a se igualar à pequeneza de quem falhou conosco.

A iraniana Ameneh Bahrami, que no último domingo perdoou o homem que lhe jogou ácido no rosto, cegando-a, declarou que a clemência lhe fez bem. Ela o salvou minutos antes de ele próprio ter os olhos corroídos por ácido num hospital de Teerã. O médico já estava com o material na mão para consumar a vingança (autorizada pelas leis islâmicas). O agressor estava de joelhos, aos prantos, aguardando o pior, quando chegou o telefonema com o perdão da vítima.

Por que Ameneh desistiu de pagar na mesma moeda? Sei lá, talvez porque não foi um filho dela que o maluco cegou (mexam com nossas crias e bye bye superioridade), mas o mais provável é que o mal nunca tenha feito parte da sua natureza. Ela não quis ser como ele.

Dizem que se vingar dá uma sensação agradável, que a vingança é doce, traz consolo, segurança, que há até um componente erótico em sua consumação. Estão aí os defensores da pena de morte para confirmar o júbilo que a vingança provoca. Eu sigo achando que lutar por justiça é um dever, mas se vingar é tosco. Só é aceitável quando o destino é que se vinga por nós, sem que a gente suje as mãos. Há que se confiar na providência divina.

Já a vingança arquitetada é a infantilidade usando salto alto e batom, fingindo-se de gente grande.

"We Are the World" (Fernando de Barros e Silva)

<b>FOME:</b> Menino desnutrido em hospital de Mogadício, na Somália


 "Bolsas desabam e cresce medo de recessão mundial"; "Dilma tira Jobim da Defesa e põe o ex-chanceler Amorim". Eram esses os destaques da Primeira Página da Folha ontem, um dia cheio de notícias. Mas nada rivalizava com a foto da criança somali desnutrida.
O olhar aflito, de dor e pânico; a boca escancarada, em desespero; os cabelos ralos, os sulcos no rosto e a pele enrugada, como se o corpo tivesse 90 anos; os pés retorcidos, as mãos e a cabeça desproporcionais, a deformidade do conjunto -tudo choca naquela figura que definha a caminho da morte.
Estima-se que 29 mil crianças com menos de cinco anos morreram de fome na Somália nos últimos três meses (média de 10 mil por mês). Haveria, segundo a ONU, 640 mil crianças desnutridas no país.
As estatísticas dão a dimensão da tragédia, ao mesmo tempo em que a desumanizam. Seriam 10 milhões de pessoas passando fome, literalmente e em graus variados, em função da pior seca em décadas na região onde estão Etiópia, Quênia, Djibuti e Somália, o mais atingido.
No Brasil, Somália virou apelido de alguns jogadores de futebol, pretos e esguios. Na África, é um lugar tão miserável e caótico que está fora do ranking de IDH da ONU -no qual a Etiópia ocupa o 157º lugar, num total de 169 nações.
No final dos anos 1960, durante a Guerra da Biafra, na Nigéria, a TV flagrou pela primeira vez imagens de mortes em massa provocadas pela fome. Mas foi nos anos 1980, com a crise na Etiópia, que a nata do mundo artístico se mobilizou e quis dar dimensão global à tragédia -época do "We Are the World".
E hoje? A Somália é um território sem governo central há 20 anos, controlado por milícias e grupos islâmicos extremistas, devastado pela miséria e pela anomia social. Um lugar em que Bolsas, recessão, ministros, governo e notícias de jornal não significam nada. Mas o que significa para nós a imagem da criança agonizante? Nós somos o mundo, mas a Somália está fora dele.

quinta-feira, 4 de agosto de 2011

Quem nunca sentiu inveja? (MIRIAN GOLDENBERG)

 


Mulheres têm mais facilidade para admitir o sentimento do que homens entrevistados em pesquisa


Na minha pesquisa com moradores do Rio de Janeiro, perguntei para as mulheres o que elas mais invejam em outras mulheres.
Elas responderam, em primeiro lugar, o corpo e a beleza. Em seguida, detalharam: cabelos, seios, bunda, barriga, pele, dentes... E ainda autoconfiança, autoestima, leveza, sensualidade, inteligência, capacidade de conciliar emprego e família, entre outras incontáveis invejas.
Também perguntei para as mulheres o que elas invejam nos homens.
A resposta mais citada foi liberdade, seguida de "fazer xixi em pé". 
Elas também invejam neles a independência, a liderança, o salário, o sucesso, o dinheiro, a racionalidade, a frieza, a objetividade, a segurança, o egoísmo, a força, o humor, a simplicidade, a capacidade de não se envolver emocionalmente, de separar sexo de amor, de não sofrer por amor... Também sentem inveja do homem por ele não menstruar, não ter cólica, não ter TPM, não ter menopausa, não se depilar, não ter celulite, não ter estrias etc. 
Perguntei para os homens o que eles invejam em outros homens. 
Eles disseram que invejam inteligência, poder, dinheiro, sucesso, status, o corpo, força física, altura, cabelo, abdômen sarado, pênis grande, ser bom de cama e, por fim, "a mulher dele"!
Quando perguntei para os homens o que eles invejam nas mulheres, quase todos responderam: nada!
Alguns disseram que invejam a sensibilidade, a sensualidade e a maternidade.
Pode-se pensar que os homens respondem que não invejam "nada" nas mulheres por medo de serem acusados de não serem homens de verdade.
Isso pode ser comprovado em respostas como: "Não invejo nada, sou espada", "Inveja de mulher? Não sou boiola" ou "Como assim? Eu sou homem, não sou gay".
É interessante perceber como as mulheres são mais invejosas, ou ao menos admitem com mais facilidade que sentem inveja. 
Uma das pesquisadas, uma atriz de 41 anos, disse: "Invejo as pessoas que estão realmente felizes com suas vidas, que não se comparam com os outros, que não querem ser algo que não são, que valorizam aquilo que têm e não o que lhes falta, que estão satisfeitas com suas escolhas. Sou uma pessoa permanentemente insatisfeita, quero sempre mais".
Tomo emprestada uma frase da Madonna para falar da inveja de uma das mulheres mais invejadas do mundo: "Tenho inveja das pessoas que não têm inveja de nada".
Será que existe alguém que não tem inveja de nada?

MIRIAN GOLDENBERG, antropóloga e professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro, é autora de "De Perto Ninguém É Normal" (Ed. BestBolso) 

terça-feira, 2 de agosto de 2011

Liberdade, oh, liberdade (Danuza Leão)




Ah, que maravilha: vai aonde quer, volta na hora que bem entende, sem ninguém para reclamar


TODO MUNDO quer ser livre; a liberdade é o bem mais precioso, almejado por homens e mulheres de todas as idades, e a luta para conquistá-la começa bem cedo. Desde os primeiros meses de idade só se pensa em uma coisa: fazer apenas o que quer, na hora que quer, do jeito que quer.
Crianças de meses rejeitam a mamadeira de três em três horas, mas choram quando têm fome (só querem comer quando têm fome, o que é muito justo) e quando um pouco mais grandinhas, brigam para não vestir a roupa que a mãe escolheu.
Ficam loucas para ir sozinhas para o colégio, e quando chegam em casa além do horário previsto, ai de quem perguntar onde elas estiveram. "Por aí", é o que respondem, quando respondem -e as mães que enlouqueçam.
Quando adolescentes, as coisas pioram: querem a chave da casa (e a do carro), e quando começam a sair à noite e os pais tentam estabelecer uma hora para chegar, é guerra na certa, com as devidas consequências: quarto trancado, onde ninguém pode entrar nem para fazer uma arrumação básica.
Naquele território ninguém entra, pois é o único do qual ele se sente dono -portanto, livre. A partir dos 12 anos, o sonho de todos os adolescentes é morar num apart -sozinhos, claro.
Mas o tempo passa, vem um namoro mais sério, e quem ama não é -nem quer ser- livre (para que o outro também não seja). Dá para quem está namorando sumir por três dias? Claro que não. Se for passar o fim de semana na casa da avó, em outra cidade, vai ter que dar o número do telefone, e isso lá é liberdade? Os celulares permitem, pelo menos, que eles não atendam, já que sabem quem está ligando.
Aí um dia você começa a achar que para ser livre mesmo é preciso ser só; começa a se afastar de tudo e cancela o amor em sua vida, entre outras coisas. Ah, que maravilha: vai aonde quer, volta na hora que bem entende, resolve se o almoço vai ser um sanduíche ou nada, sem ninguém para reclamar da geladeira vazia, trocar o canal de televisão ou reclamar do fumacê no quarto. Ah, viver em total liberdade é a melhor coisa do mundo.
Mas a vida não é simples, e um dia você acorda pensando em mudar de casa; fica horas pesando os prós e contras, mas não consegue decidir se deve ou não. Pensa em refrescar a cabeça e ir ao cinema, mas fica na dúvida -enfrentar a fila, vale a pena? Vê a foto de uma modelo na revista e tem vontade de cortar o cabelo igual, mas será que deve?
Acaba não fazendo nada, e depois de tantos anos sem precisar dar satisfação da vida a ninguém, começa a sentir uma estranha nostalgia.
Como seria bom se tivesse alguém para dizer que é loucura fazer uma tatuagem; que aconselhasse a não trocar de carro agora -pra que, se o seu está tão bom?
Que mostrasse o quanto foi injusta com aquela amiga e precipitada quando largou o marido, o quanto foi rude com a faxineira por bobagem. Que falasse coisas que iam te irritar, desse conselhos que você ia seguir ou não, alguém com quem você pudesse brigar, que te atormentasse o juízo às vezes, para poder reclamar bastante. Alguém que dissesse o que deve ou não fazer, o que pode e o que não pode, e até mesmo te proibisse de alguma coisa.
E que às vezes notasse suas olheiras e falasse, de maneira firme, que você está muito magra e talvez exagerando na dieta; alguém que percebesse que faltando dez dias para o final do mês você só tem R$ 50 na carteira e perguntasse se você não está precisando de alguma coisa. E que dissesse sempre, em qualquer circunstância, "vai dar tudo certo".
Que falta faz um pai.