terça-feira, 27 de março de 2012

Sexo e vergonha (Contardo Calligaris)


Os que consideramos maníacos sexuais são apenas os que praticam mais sexo do que a gente

IMAGINE ALGUÉM que acaba sua noite com um sexo rápido e intenso, em pé, embaixo de uma ponte, e eis que, uma vez em casa, ele entra na internet e transa virtualmente com uma stripper de site on-line.
Não há gozo que lhe baste: sempre sobra a vontade de mais uma vez, mesmo que seja se masturbando com esforço. Outra noite, depois de ter brincado pesado com uma moça num bar, ele se pega com um cara no labirinto de uma boate gay: na procura por mais sexo, vale tudo.
Mas cada rosa tem seus espinhos. O disco rígido do nosso jovem está repleto de pornografia, até no computador do escritório -o que é arriscado. E, sobretudo, ele está aflito: a vergonha o leva a jogar fora (periodicamente) os apetrechos de sua sexualidade fantasiosa, e ele sente culpa de não conseguir ser o irmão, o amigo -e, quem sabe, o namorado- que ele talvez gostasse de ser.
Se esse alguém pedir ajuda a um terapeuta, alguns colegas tirarão da manga o "diagnóstico" de sexo-dependência ("sexual addiction") e proporão o programa em 12 passos (ensinado nas especializações em sexo-dependência), para que o indivíduo aprenda a se controlar e a renunciar, ao menos em parte, ao sexo, que teria se tornado, para ele, uma espécie de droga.
Mesmo sem acreditar nos 12 passos, outros colegas concordarão com o diagnóstico e simpatizarão com o "óbvio" sofrimento do "sexo-dependente" -afinal, eles imaginarão, essa prática endemoniada do sexo "deve", no mínimo, aviltar o indivíduo aos seus próprios olhos.
Outros colegas ainda (e eu com eles), ao receber o pedido de ajuda de um suposto sexo-dependente, reagiriam de maneira diferente: não se preocupariam nem com as fantasias, nem com as práticas sexuais do paciente, mas com a culpa e a vergonha que as acompanham.
Eu também anunciaria ao paciente que não sei (ninguém sabe) disciplinar o desejo sexual; só posso, se ele quiser, tentar disciplinar a culpa e a vergonha que azucrinam sua vida e estragam seus prazeres.
Quem viu "Shame" (vergonha), de Steve McQueen, percebeu que nosso paciente hipotético se parece com o protagonista do filme.
Em cartaz desde sexta passada, "Shame" é, ao mesmo tempo, ousado e careta. Ousado, pelo retrato da procura sexual do protagonista (muitos, sem dúvida, se reconhecerão), e careta, porque essa procura parece ser necessariamente doentia, culpada e vergonhosa.
Concordo com Cássio Starling ("Ilustrada" de 16/3): o filme é ótimo, mas discordo do destaque do artigo, segundo o qual "McQueen foge do moralismo ao abordar a compulsão por sexo". Quem enxerga o desejo sexual do outro como uma patologia é sempre moralista. Em matéria de sexo, patologizar é o jeito moderno de estigmatizar e policiar (conselho: fuja de parceiros que acham você "doente").
McQueen (na mesma "Ilustrada") declarou que o negócio dele é desafiar as pessoas. Ora, apresentar um obcecado por sexo como um doente que sofre de vergonha e culpa, isso não é desafio algum -ao contrário, é a confirmação de um lugar-comum.
Um lugar-comum confirmado por psiquiatria e psicologia? Nem isso.
Certo, desde o século retrasado, a psiquiatria e a psicologia são regularmente chamadas a substituir a religião, que (digamos assim) cansou de ser a grande ordenadora e controladora do comportamento humano. No caso, a ideia da "sexo-dependência" surgiu nos anos 1970 -provavelmente, como reação contra o interesse "excessivo" pelo sexo durante a dita liberação sexual dos anos 1960.
Mas, sentindo talvez o bafo do moralismo, muitos psiquiatras e a psicólogos receberam essa categoria diagnóstica com desconfiança. Quem a adotou e promoveu foram a imprensa e o grande público (e isso bastou para que surgisse uma pequena indústria de clínicas, programas universitários etc.). Mas por quê, então, esse sucesso popular da "sexo-dependência", na qual McQueen parece acreditar?
Apenas uma constatação: a associação de sexo com vergonha e culpa é um bordão cultural muito antigo, no qual somos convidados a acreditar por todo tipo de poder. A exigência de domesticar o desejo sexual parece ser, aos olhos de todos, um pré-requisito básico de qualquer ordem social.
Além disso, há a eterna inveja dos reprimidos: como dizia Alfred Kinsey, em regra, os que consideramos doentes e maníacos sexuais são apenas os que praticam mais sexo do que a gente.

Filho é para quem pode! (Monica Montone)


Eu, não posso! Apesar de ser biologicamente saudável.

Não posso porque desconheço o poço sem fundo das minhas vontades, porque às vezes sou meio dona da verdade e porque não acredito que um filho há de me resgatar daquilo que não entendo ou aceito em mim.

Acredito que a convivência é um exercício que nos eleva e nos torna melhores, mas, esperar que um filho reflita a imagem que sonhamos ter é no mínimo crueldade.

Não há garantias de amor eterno e o olhar de um filho não é um vestido de seda azul ou um terno com corte ideal. Gerar um fruto com o único intuito de ser perfumada por ele no futuro é praticamente assinar uma sentença de sal.

Filhos não são pílulas contra a monotonia, pílulas da salvação de uma vida vazia e sem sentido, pílula “trago seu marido de volta em 9 meses”.

Penso que antes de cogitar a hipótese de engravidar, toda mulher deveria se perguntar: eu sou capaz de aceitar que apesar de dar a luz a um ser ele não será um pedaço de mim e portanto não deverá ser igual a mim? Eu sou capaz de me fazer feliz sem que alguém esteja ao meu lado? Eu sou capaz de abrir mão de determinadas coisas em minha vida sem depois cobrar? Eu sou capaz de dizer “não”? Eu quero, mesmo, ter um filho, ou simplesmente aprendi que é para isso que nascemos: para constituir uma família?

Muitas das pessoas que conheço estão neurotizadas por conta de suas relações com as mães. Em geral, são mães carentes que exigem afeto e demonstração de amor integral para se sentirem bem e, quando não recebem, martirizam os filhos com chantagens, críticas e cobranças.

As mães podem ser um céu de brigadeiro ou um inferno de sal. Elas podem adoçar a vida dos filhos ou transformar essas vidas numa batalha diária cheia de lágrimas, culpas e opressões.

Eu, por exemplo, não consigo ser um céu de brigadeiro nem para mim mesma, quiçá para uma pessoinha que vai me tirar o juízo madrugadas adentro e, honestamente, acho injusto colocar uma criança no mundo já com essa missão no lombo: fazer a mamãe crescer.

Dar a luz a um bebê é fácil, difícil é ser mãe da própria vida e iluminar as próprias escuridões.

sábado, 24 de março de 2012

Burocrático (Gustavo Sandres)



O que torna a poesia inacessível,

Não é um poeta ruim,
Nem um português arcaico.
Não é o romantismo anacrônico,
Nem o rigor parnasiano.
Não é o desespero niilista,
Nem a falta de sentido concretista.
O que prende os livros nas prateleiras
É o maldito ICMS.
Desde quando poesia é mercadoria? 



sexta-feira, 23 de março de 2012

QUEM TE FAZ FELIZ? (autoria desconhecida)

·                 
"Durante um seminário para casais, perguntaram a uma das esposas: - 'Seu marido lhe faz feliz? Ele lhe faz feliz de verdade?' Neste momento, o marido levantou seu pescoço, demonstrando total segurança. Ele sabia que a sua esposa diria que sim, pois ela jamais havia reclamado de algo durante o casamento. Todavia, sua esposa respondeu a pergunta com um sonoro 'NÃO', daqueles bem redondos! - 'Não, o meu marido não me faz feliz'! (Neste momento o marido já procurava a porta de saída mais próxima). 'Meu marido nunca me fez feliz e não me faz feliz! Eu sou feliz'. E continuou: 'O fato de eu ser feliz ou não, não depende dele; e sim de mim. Eu sou a única pessoa da qual depende a minha felicidade. Eu determino ser feliz em cada situação e em cada momento da minha vida, pois se a minha felicidade dependesse de alguma pessoa, coisa ou circunstância sobre a face da Terra, eu estaria com sérios problemas. Tudo o que existe nesta vida muda constantemente: o ser humano, as riquezas, o meu corpo, o clima, o meu chefe, os prazeres, os amigos, minha saúde física e mental. E assim eu poderia citar uma lista interminável. Eu decido ser feliz! Se tenho hoje minha casa vazia ou cheia: sou feliz! Se vou sair acompanhada ou sozinha: sou feliz! Se meu emprego é bem remunerado ou não: eu sou feliz! Sou casada, mas era feliz quando estava solteira. Eu sou feliz por mim mesma. As demais coisas, pessoas, momentos ou situações eu chamo de 'experiências que podem ou não me proporcionar momentos de alegria e tristeza. Quando alguém que eu amo morre eu sou uma pessoa feliz num momento inevitável de tristeza. Aprendo com as experiências passageiras e vivo as que são eternas como amar, perdoar, ajudar, compreender, aceitar, consolar. Há pessoas que dizem: hoje não posso ser feliz porque estou doente, porque não tenho dinheiro, porque faz muito calor, porque alguém me insultou, porque alguém deixou de me amar, porque eu não soube me dar valor, porque meu marido não é como eu esperava, porque meus filhos não me fazem felizes, porque meus amigos não me fazem felizes, porque meu emprego é medíocre e por aí vai. Eu amo meu marido e me sinto amada por ele desde que nos casamos. Amo a vida que tenho, mas não porque minha vida é mais fácil do que a dos outros. É porque eu decidi ser feliz como indivíduo e me responsabilizo por minha felicidade. Quando eu tiro essa obrigação do meu marido e de qualquer outra pessoa, deixo-os livres do peso de me carregar nos ombros. A vida de todos fica muito mais leve. E é dessa forma que consegui um casamento bem sucedido ao longo de tantos anos. Nunca deixe nas mãos de ninguém uma responsabilidade tão grande quanto a de assumir e promover sua felicidade." 
*

quarta-feira, 21 de março de 2012

HITCHCOCKIANA - LUIS FERNANDO VERISSIMO


Ele gritou:

– Janela Indiscreta!

Ela:

– O quê?

– O filme que você está vendo. Posso ver a sua televisão daqui.

Os fundos dos dois apartamentos davam para o mesmo poço. Mesmo andar. Da área de serviço de um se via tudo do outro.

Ele:

– Adoro o Hitchcock.

Ela:

– Eu também.

Já tinham se visto no elevador. Ela morava com uma amiga que nunca aparecia.

– Qual é o seu Hitchcock favorito?

– Estou vendo Janela Indiscreta pela décima vez. Mas acho que meu favorito é Um Corpo que Cai. O seu?

– Os Pássaros.

Ela fez uma cara feia.

Dias depois se encontraram na loja de vídeos.

– Olha o que eu achei – disse ele.

Era Notorius. Aquele em que a Ingrid Bergman e o Cary Grant se encontram na Cinelândia e concordam que o Rio é muito chato. Ela mostrou o filme que tinha alugado. Os Pássaros. Ia rever para ver se desta vez gostava.

– Você não precisa gostar só porque eu gosto.

– É por boa vizinhança – disse ela, rindo.

Naquela noite conversaram, área de serviço a área de serviço. Ele disse que o Notorius tinha envelhecido um pouco. E ela, o que achara de Os Pássaros?

– Sei não... – disse ela.

– Vamos ter que vê-lo juntos.

Foi na noite seguinte. Apartamento dela. A amiga, diplomaticamente, no seu quarto. Os dois na sala. Os Pássaros, argumentou ele, é o filme metafísico do Hitchcock. O único filme de terror na história do cinema sem monstros e sem vilões. O vilão é o mundo, é a natureza reagindo ao homem, uma ordem pré-humana se...

Antes de ele terminar a frase já estavam se beijando. Nem chegaram a colocar o DVD.

Passaram a se encontrar quase todas as noites. Só viam Hitchcock. Às vezes discutiam, “Topázio é um Hitchcock menor!”. “O quê? O quê?!”. Passavam alguns dias sem se ver. Aí ele batia na porta dela com uma raridade (Sabotagem, por exemplo) e faziam as pazes. Até que um dia a amiga saiu do quarto e ele viu que se tratava de uma loira irresistivelmente hitchcockiana, e se apaixonou, apesar da loira dizer que seu filme favorito era Ghost. Ele tentou explicar sua traição (“Eu sou coerente! Eu sou coerente!”) mas não adiantou. Foi morto com uma tesourada, como em Disque M para Matar.

sábado, 17 de março de 2012

Saudades de Deus (LUIZ FELIPE PONDÉ)


O ateísmo me parece, entre todas as hipóteses sobre o universo, a mais fácil e simples

Tem coisa mais monótona do que discutir sobre a existência ou não de Deus? Ninguém crê em Deus "por razões lógicas". Isso é papo furado. Ninguém "decide" ter fé.
Tentar provar que Deus existe porque ele seria "uma necessidade da razão" me parece um engodo.
Primeiro porque a razão é risível em suas necessidades, como diria o cético Michel de Montaigne (século 16). A pergunta pela origem de tudo que existe (como numa espécie de aristotelismo aguado) não prova nada. Temos inúmeras necessidades que não são autoevidentes -por exemplo, que o bem deva vencer ao final das coisas.
Muitas vezes o mal vence e pronto. Quase sempre. Por outro lado, é interessante se pensar de onde veio a matéria que explodiu um dia e o lugar onde ela explodiu.
Mas isso nada prova acerca do Deus ocidental. O princípio pode ser uma mecânica estúpida.
Aliás, o chamado "argument from evil" (argumento a partir do mal) do ateísmo é famoso. Autores grandes como Dostoiévski e Kafka, entre outros, já o frequentaram de forma brilhante.
O argumento basicamente é o seguinte: se Deus é bom, por que o mundo é mau? Alguns já chegaram a supor que Deus seria mesmo mau, como o próprio Kafka.
Duas questões são importantes apontar nesse debate, uma com relação aos crentes, outra aos ateus.
Primeiro os crentes. Uma falácia comum por parte dos crentes é supor que seria impossível você ser uma pessoa razoavelmente moral sem alguma forma de religião. A história prova que ateus e crentes dividem o mesmo lote de miséria moral. Pouco importa ser ou não crente.
Pessoalmente, acho que o acaso decide: o temperamento (o acaso de você ter nascido "assim ou assado") é quase sempre o juiz do comportamento humano e não "valores" religiosos ou éticos seculares (não religiosos).
Portanto, a tentativa de afirmar que, se você é ateu você necessariamente não é "bom", é pura falácia. Tampouco penso que uma religião faça falta para todas as pessoas. Muita gente vive sem crise sem acreditar em coisa nenhuma "do outro mundo". Isso não significa que ela seja sempre feliz (tampouco os religiosos o são), a (in)felicidade depende de inúmeros fatores.
E mais: "crer ou não crer" não é algo que você escolhe, "acontece". Grandes teólogos como Santo Agostinho, Lutero e Calvino diziam que a "fé é uma graça" (simplificando a coisa), alguns receberam o dom e outros não (portanto, ela "acontece", como eu dizia acima, não é você quem escolhe ter ou não). Acho essa ideia bem mais elegante do que esse papo furado acerca das necessidades racionais, sociais, morais ou psíquicas da crença.
Quanto aos ateus, acho risível a ideia de que o ateísmo seja uma "conquista" da razão ou de alguma forma de rigor moral ou "coragem cosmológica".
Nada disso, como já disse antes, e repito, até golfinhos conseguem ser ateus em sua maravilhosa vida aquática. Fiquei ateu quando tinha oito anos.
O ateísmo me parece, entre todas as hipóteses sobre o universo, a mais fácil, simples, rápida e quase "fast food theory" (teoria fast food).
Não precisamos nos esforçar muito para perceber que podemos talvez um dia descobrir a causa
"natural" do universo, ou acabarmos como espécie antes de descobrir qualquer coisa. E "who cares" se sumirmos um dia?
E mais: é quase evidente que somos uma raça abandonada na face da Terra e a indiferença dos elementos naturais para conosco (sejam eles externos ou internos ao nosso corpo) salta aos olhos.
E mais: a possibilidade de estarmos sozinhos é sempre mais fácil do que acompanhados por um ser maravilhoso, dono do universo e que sabe cada fio do cabelo que você tem na cabeça.
Não há nenhuma evidencia definitiva de que Deus ou que qualquer outra entidade divina exista. O ônus da prova é de quem crê. Além do fato de que os japoneses, caras bem inteligentes, não creem em Jesus na maioria das vezes.
Acho Deus uma hipótese acerca da origem das coisas mais elegante do que a dos golfinhos. Mas, por outro lado, a ideia de que um dia o pó tomou consciência de si mesmo e constatou sua dolorosa solidão cósmica é bela como uma ópera.

segunda-feira, 12 de março de 2012

Fidelidade feminina (Martha Medeiros)

Peguei a conversa pela metade, mas não pude deixar de acompanhar até o final. Ninguém resiste a escutar uma mulher confidenciando um segredo a outra.

– Desde quando isso está acontecendo? – Ainda não está acontecendo, mas vai acontecer em breve.

É horrível ter que traí-lo, nunca me imaginei nessa situação. A gente sempre se deu tão bem. Mas sinto que chegou a hora do meu turning point. – Você conheceu outro?

– Uma colega me apresentou. Fiquei fascinada. Tão solto, tão moderno.

– Procura resistir, Marília ! Afinal, você construiu uma relação sólida de.. quanto tempo mesmo? ]

– Dezessete anos, acredita? E nunca olhei para o lado, sempre com ele, fiel como uma labradora.

Hoje é meu melhor amigo. Muito além do que qualquer outra coisa.

– E você vai arriscar perder essa cumplicidade por causa de uma tentação?

– Rê, chega uma hora em que é preciso mudar. Eu vou fazer 50 anos. Olho todos os dias para o espelho e enxergo a mesma cara, a mesma falta de brilho.

Estou envelhecendo sem arriscar nada, sem experimentar algo diferente, nunca. Me diz a verdade: você acha que ele irá suportar?

– Tá brincando! Você pretende contar a ele??? – Ele vai reparar, né? Lógico.

– Não precisa falar nada, mulher! Se você for discreta, ele não vai descobrir.

– Só se eu trocasse de cidade, Rê. Ele vai ficar sabendo no mesmo dia. Você sabe como as fofocas voam.

- Se você pretende fazer essa besteira mesmo, melhor pensar nas consequências. A não ser que ele seja muito bem resolvido.

- Quem é bem resolvido numa hora dessas? Ele vai querer me matar. Vai me chamar de traíra pra baixo. Vai se sentir um lixo de homem.

- ai Marília. Pra que inventar moda a essa altura do campeonato? Claro que às vezes também fico a fim de experimentar uma novidade, quem não fica? Mas, por outro lado, é tão bom não precisar mentir, não ter que criar desculpas...

Uma amiga minha fez essa bobagem e conseguiu ser perdoada porque garantiu que tinha acontecido uma vez só, e em Nova York! O cara engoliu, mas a relação está estremecida até hoje, nunca mais foi a mesma.

- eu sei, eu sei, só que não aguento mais usar o mesmo corte há 17 anos. Estou decidida, Rê. Vou trocar de cabeleireiro. Se me arrepender, assumo as consequências. Não suporto mais ficar refém de uma situação que é cômoda, mas que não me revitaliza.

- Então só posso te desejar boa sorte, amiga. Vou te confessar uma coisa, mas não espalha: eu adoraria trocar minha manicure por outra novinha que recém entrou no salão. Me diz se tem cabimento isso. Já troquei de marido três vezes, e não tenho coragem de deixar a Suely.

quinta-feira, 8 de março de 2012

Sociedade de mulheres viris (Martha Medeiros)

Existem pessoas frágeis, mas sexo frágil, esqueça. As mulheres nunca estiveram tão fortes, decididas, abusadas até. O que é saudável: quem não busca corajosamente sua independência acaba sobrando e vivendo de queixas. Uma sociedade de homens e mulheres que prezam sua liberdade e atingem seus objetivos é um lugar mais saudável para se viver. Realização provoca alegria. 

O que não impede que prestemos atenção no que essa metamorfose pode ter de prejudicial. As mulheres se masculinizaram, é fato. Não por fora, mas por dentro. As qualidades que lhes são atribuídas hoje, e as decorrentes conquistas dessa nova maneira de estar no mundo, eram atributos considerados apenas dos homens. Agora ninguém mais tem monopólio de atributo algum: nem eles de seu perfil batalhador, nem nós da nossa afetividade. Geração bivolt. Homens e mulheres funcionando em dupla voltagem, com todos os atributos em comum. Mas seguimos, sim, precisando uns dos outros – como nunca. 

Não são poucas as mulheres potentes que parecem conseguir tocar o barco sozinhas, sem alguém que as ajude com os remos. Mas é só impressão. Talvez não precisemos de quem reme conosco, mas há em todas nós uma necessidade ancestral de confirmar a fêmea que invariavelmente somos. 

E isso se dá através da maternidade, do amor e do sexo. Se não for possível ter tudo (ou não se quiser), ao menos alguma dessas práticas é preciso exercer na vida íntima, caso contrário, viraremos uns tratores. Muito competentes, mas com a identidade incompleta. 

Nossa virilização é interessante em muitos pontos, mas se tornará brutal se chegarmos ao exagero de declarar guerra aos nossos instintos. 

Ok, ser mãe não é obrigatório, ter um grande amor é sorte, e muitas fazem sexo apenas para disfarçar o desespero da solidão, mas seja qual for o contexto em que nos encontramos, é importante seguir buscando algo que nos conecte com o que nos restou de terno, aquela doçura que cada mulher sabe que ainda traz em si e que deve preservar, porque não se trata de uma fragilidade paralisante, e sim de uma característica intrínseca ao gênero, a parte de nós que se reconhece vulnerável e que não precisa se envergonhar disso. Se é igualdade que a gente quer, extra, extra: homens também são vulneráveis. 

“Cuida bem de mim”, dizia o refrão de uma antiga música do Dalto, e que Nando Reis regravou recentemente. Cafona? Ora, se a gente não se desfizer da nossa prepotência e não se permitir um tantinho de insegurança e delicadeza, a construção desta “nova mulher” terá se desviado para uma caricatura. A intenção não era a gente se transformar no estereótipo de um homem, era? 

Cuide-se bem, e permita que os outros lhe cuidem também. Viva o dia internacional dessa porção mulher que anda resguardada demais, mas que não deveria ficar assim tão escondida: não nos desmerece em nada.

segunda-feira, 5 de março de 2012

Conhece-te a ti mesmo Luiz Felipe Pondé)


Decidi mudar. Não serei mais aquela pessoa que acha que as pessoas não mudam e que não há história, mas sim um eterno retorno do mesmo. Nietzsche nunca mais, só Rousseau e seu estado de natureza angelical.
Acredito agora nas primaveras que cortam o mundo. Fui à livraria mais próxima, ou melhor, ao iPad mais próximo, e comprei um livro que me indicaram: "Dez passos para ser um novo Pondé", autoria de um certo sábio chinês que talvez seja um neto de coreano nascido na Califórnia de pais porto-riquenhos.
O primeiro passo é aprender a respirar. Sou dono da minha respiração agora. Em seguida, alimentação. Nunca mais carne vermelha. De início, ainda frango e peixe, mas em breve pretendo me tornar um amante das rúculas e alfaces, mas sempre pedindo perdão por precisar tirá-las de sua vida doce e promissora fazendo fotossíntese. Coca-Cola, nem pensar. Além do mais, é americana! Vinho, só natural.
Um segredo: continuarei a ir aos EUA porque um tênis lá custa cinco dólares! Irei escondido e voltarei com dez malas. Mas, temos ou não direito a ter tênis baratos? Acho uma falta de respeito proibir as pessoas de comprar tênis e jogos eletrônicos baratos em Miami.
Amarei a África. Abraçarei todas as ONGs do mundo. Direi às pessoas que elas são lindas e que o mundo faz parte de uma confederação cósmica. Os maias foram o povo mais avançado da história e decidi frequentar escolas aborígenes para aprender seu complexo modo de criar sociedades mais justas.
Religião: nunca mais essa coisa pesada de judaísmo e cristianismo, religiões que nos estragam com sua moral "imposta". Candomblé também não. Claro, como é religião africana, seria aprovada pelo meu novo eu, mas em alguns terreiros baixam pombagiras, e elas foram prostitutas e adúlteras, e não quero nem chegar perto disso! Aliás, decidi que essas coisas não existem.
Minha nova religião será uma forma de budismo light, aquele tipo que cultua a energia do universo. Sei que existem outros tipos, mas aqueles são autoritários. Toco as plantas com mais cuidado e percebi que elas são mais sábias do que Freud. Claro, comprei uma estatueta de um golfinho e joguei fora aquela esfinge do Édipo horrorosa que minha irmã me deu em Londres.
Nunca mais tragédia grega, agora só revistas que nos ensinam como o mundo pode ser melhor se arrumarmos nossos sofás de forma mais harmônica com as estrelas. Contratei uma mestra em decoração oriental. Ela é uma mulher supermagra e equilibrada. Imagine que curou um câncer em seu gato com reiki.
Direi para todo mundo que não gosto de dinheiro e que gosto das pessoas pelo que elas são e não pelo que elas têm. Perguntarei aos artistas com consciência social o que posso dizer e fazer.
Vendi meu horroroso carro inglês. Estou aprendendo a andar de bike (já sabia andar de bicicleta, mas bike é outra vibe). Ainda que tenha que atravessar as ladeiras das Perdizes para ir trabalhar (pena que ainda tenha que fazer parte desse mundo terrível de pessoas que trocam sua dignidade por dinheiro), já me explicaram que cada pedalada evita duas moléculas de gás carbônico, o que faz de mim uma pessoa com pegada de carbono sustentável.
Sexo, agora, só verde. Se provarem que esperma polui o mundo, evitarei o orgasmo, assim como na Idade Média dizem que mulheres santas evitavam gozar para serem puras aos olhos de Deus. Enfim, sinto-me leve com meu novo eu. Provavelmente, serei mais amado, e isso é que conta, não? Acredito, agora, num mundo melhor.
De repente, acordei. Sentei na cama. Ao lado, minha mulher dormia, com seu corpo de pecadora.
Fui até a biblioteca e vi os livros de Nietzsche, Freud, Pascal, Dostoiévski, Cioran, Bernanos, Roth, Camus, Nelson Rodrigues me olhando com olhos de profetas.
Os dedos indicadores em riste apontavam para mim.
Ao lado de minha estatueta da esfinge de Édipo, lia-se: "Conhece-te a ti mesmo". Voltara a ser eu mesmo. Esse miserável escravo das moiras, de felicidade complicada, doçura rara, boca seca e olhos vermelhos. Reconheci-me: sou o mesmo pecador de sempre, sem esperança.