domingo, 29 de abril de 2012

Entendendo o outro (Danuza Leão)



Nada melhor do que não ter nenhuma responsabilidade pessoal e ter a quem culpar por tudo que ocorre de ruim

Depois que a psicanálise ficou ao alcance de todos, os filhos deitaram e rolaram nos divãs para falar mal do pai e da mãe; sempre com razão, aliás, e sem o menor resultado, aliás também.
Quem são os culpados dos sucessivos casamentos que não deram certo? Os pais, é claro. Ou porque não tiveram a coragem de se separar, mesmo vivendo mal, ou porque se separaram, o que pode ter sido visto como modelo a ser seguido.
Se a mãe foi uma mulher resignada, dominada pelo marido, que não lutou por sua independência nem procurou o seu caminho, a filha pode se tornar uma adulta igual ou virar o oposto: uma vadia que troca de homem como se troca de camisa. Se essas filhas tiveram um pai que era um marido exemplar, podem passar a vida perseguindo a imagem paterna ou, ao contrário, um grande cafajeste, para serem diferentes da mãe. Culpa de quem? Nem é preciso dizer.
Já se o pai foi um derrotado que passou a vida infeliz no mesmo emprego medíocre para dar segurança à família, os filhos podem no futuro ser ou exatamente iguais ou fazer qualquer coisa para ganhar um dinheiro fácil, e terminar até na cadeia. Em qualquer dos casos a culpa foi, é e será, sempre, dos pais.
Já virou clichê o filho que passa a vida se lamuriando porque a mãe não contava histórias na hora de dormir, e cujo pai nunca perguntava pelas notas do colégio quando chegava do trabalho, e ai daqueles que saíam para uma festa quando os filhos tinham uma febrinha. Esses passam a vida sofrendo, e sem razão, pois nada melhor do que não ter nenhuma responsabilidade pessoal e ter a quem culpar por tudo que acontece de ruim. Mas nunca nenhum deles parou para pensar como foi a vida desses pais quando crianças. Como foi a infância deles? Feliz, traumática, triste, infeliz? Terão eles recebido carinho dos seus próprios pais? Os analistas não costumam abordar o assunto.
Houve um tempo -algumas gerações atrás- em que as crianças, quando faziam uma coisa errada, apanhavam. Quando pequenas levavam palmadas; já maiores, surra de cinto. Hoje, ai dos pais que perdem a cabeça e cobram boas notas do colégio ou levantam a voz. O caminho é só um: arranjar um psicólogo que as crianças frequentarão três vezes por semana, além da reunião de família semanal, com o pai, a mãe, a atual mulher do pai e o atual marido da mãe. Reuniões desse tipo não costumam acabar bem, claro.
As crianças modernas não estão interessadas em entender as razões que levaram suas mães e seus pais a serem menos amorosos ou carinhosos; elas nunca pensaram que a mãe, com 30 anos, mesmo adorando os filhos, às vezes sufocava quando via um homem atraente, e que quando assistia a um filme romântico voltava para casa querendo mandar tudo para o espaço e ir para algum lugar no mundo onde encontrasse um homem que a olhasse como uma mulher ainda desejada. Essa mãe não conseguia nem ao menos entender o que se passava dentro dela; ficava tudo muito confuso, e naqueles tempos não havia analistas para explicar o que estava acontecendo (e se já existissem e explicassem, também não resolveria). E qual o pai que um dia, mesmo amando apaixonadamente seus filhos, não pensou que talvez ainda fosse muito jovem para tantas responsabilidades, e que teria sido melhor se tivesse se casado um pouco mais tarde?
Ninguém quer compreender as razões do outro, e ninguém está interessado em saber se seus pais tiveram, dos seus pais e mães, o que gostariam de ter tido.
Porque os pais e mães de nossos pais e mães também tiveram as suas razões, e o mundo foi, é e será assim para todo o sempre -e amém.

sexta-feira, 27 de abril de 2012

Presidenta por decreto (Ruy Castro)




RIO DE JANEIRO - Amigos me alertam para um decreto-lei recém-publicado no "Diário Oficial da União": "A Presidenta da República faço saber que o Congresso Nacional decreta e eu sanciono a seguinte lei: Art. 1º. As instituições de ensino públicas e privadas expedirão diplomas e certificados com a flexão de gênero correspondente ao sexo da pessoa diplomada, ao designar a profissão e o grau obtido. [...]
Art. 3º. Esta lei entra em vigor na data de sua publicação. Brasília, 3 de abril de 2012. Dilma Rousseff. Aloizio Mercadante. Eleonora Menicucci de Oliveira".
Tal lei serve apenas à teimosa vontade da presidente Dilma de ser chamada de presidenta, na ilusão de, com isso, estar valorizando as mulheres. E não adianta dizer-lhe que não é assim que a língua funciona. O problema é que, com a medida, ela obriga a que se parem as máquinas e se corrijam a jato todos os dicionários da língua portuguesa.
Porque, se Dilma agora é presidenta por decreto, também quero ser chamado de jornalisto, articulisto, colunisto ou cronisto.
Idem, os calistas, juristas, dentistas, arquivistas, criminalistas, ortopedistas, ginecologistas e médicos-legistas do sexo masculino, todos podem requerer diplomas de calistos, dentistos, arquivistos, criminalistos, ortopedistos, ginecologistos e médicos-legistos. O próprio Aloizio Mercadante, ministro da Educação e cúmplice da presidenta nessa emboscada contra a língua, deve exigir ser chamado de congressisto quando voltar ao Senado.
Pela novilíngua da presidenta, o sindicalista Lula teria sido um sindicalisto. Luiz Carlos Prestes, um comunisto. Millôr Fernandes, um humoristo. Luizinho Eça, um pianisto. Guimarães Rosa, um romancisto. O cego Aderaldo, um repentisto. Ayrton Senna, um automobilisto.
Dilma acha pouco ser presidenta. Quer ser também linguista.

terça-feira, 24 de abril de 2012

A inveja das moscas (Luis Felipe Pondé)



Apenas quem perdeu qualquer esperança de ser virtuoso deveria falar sobre moral

SOU UMA personalidade atormentada e dada a arroubos. Noites insones me levam a terras distantes onde nossos ancestrais vagam arrancando a vida e seu sentido das pedras. Com o passar dos anos, cada vez mais me encanta a luta desses nossos patriarcas perseguidos pelos elementos naturais, por seus próprios demônios e por deuses de olhos vermelhos cheios de sangue e dentes afiados.
Construímos sonhos de autorrealização profissional, afetiva e material. A expectativa com nossa própria grandeza ocupa grande parte de nossos devaneios.
O sentimento da fragilidade do mundo sempre me perseguiu desde a infância. Se os psicanalistas estiverem certos, e tudo que é primitivo é indelével, esse sentimento constitui minha substância mais íntima. Que inveja eu tenho das moscas!
Livres, voando pelo mundo, sem saber de si mesmas.
Li nas últimas férias a coletânea de ensaios "The Best American Essays of the Century", editada por Joyce Carol Oates e Robert Atwan, Houghton Mifflin Company, Boston.
Destaco dois ensaios: "The Crack-Up" (a rachadura), de F. Scott Fitzgerald, de 1936 e "The Old Stone House" (a velha casa de pedra) de Edmund Wilson, de 1933.
Edmund Wilson foi, segundo Paulo Francis, o último grande crítico literário de uma tradição na qual o crítico não se escondia atrás de algum teórico, tipo Blanchot ou Derrida, para repetir o que todo mundo diz e com isso não correr riscos. Wilson enfrentava o autor cara a cara, dizendo o que pensava dele, sem se preocupar com o que a "indústria da crítica acadêmica" diria. A coragem nunca foi um valor na academia, Francis tinha razão.
Nesse ensaio, Wilson fala de uma casa de pedra na qual sua família viveu por muitos anos. Sua família era do tipo de família que aqui chamaríamos de quatrocentona falida. Mãe fria, pai, homem letrado e melancólico, ele, Wilson, parecido com seu pai, e também um bêbado.
Estou convencido de que pessoas sem algum vício terrível permanecem em alguma forma de infância moral. Apenas quem perdeu qualquer esperança de ser virtuoso deveria falar sobre moral. Pessoas sem vícios falando sobre moral é como virgens dando aula de sexo.
Wilson, entre outros parentes, fala de uma tia, infeliz no casamento, obrigada a ser uma mulher normal quando na realidade era uma filósofa schopenhauriana amadora. Segundo ele, ela enfrentou virtuosamente seu fardo criando um sistema filosófico pessoal pessimista e, quando ficou viúva, se mudou para Nova York e gastou seus últimos dias indo a livrarias e vendo teatro. Quando ainda casada, sua tia lia à noite, sobre o fogão, sozinha, em seu único momento de paz.
F. Scott Fitzgerald, autor de "O Grande Gatsby", nesse ensaio descreve a sua maior crise existencial (a rachadura que dá título ao ensaio), que o acometeu por volta dos 50 anos. Escritor famoso, Fitzgerald afirma: "Identifiquei-me com meus próprios objetos de horror e compaixão" e "passei a ter uma atitude trágica em relação à tragédia e melancólica em relação à melancolia". Em síntese, foi inundado por seus próprios objetos literários e se tornou, ele mesmo, um deles. O efeito foi devastador e libertador.
Na abertura, ele define o que entende por uma pessoa inteligente: conseguir viver com duas ideias opostas sobre a vida e não desistir de nenhuma delas.
E exemplifica: saber que não há esperança para nós e ainda assim viver buscando provar o contrário. O resultado seria uma vida combativa em nome da esperança. Uma vida pautada pelo controle de si mesmo e do mundo a sua volta.
Ao final do ensaio, ele volta a definir, agora, o que é, após sua rachadura, o estado natural de um adulto que tem consciência e sensibilidade: infelicidade qualificada (e não banal).
Uma condição com a qual convivemos, mas que ao assumi-la, uma espécie de libertação acontece: em suas palavras, não mais desejar ser um homem bom, não mais ser simpático com o marido de sua prima, nem responder a cartas de escritores jovens medíocres que não deveriam aborrecer os outros. Ser apenas um escritor e não querer agradar a ninguém, nem a si mesmo.

Mulheres...

sábado, 21 de abril de 2012

Deu uma olhada na água? (Antonio Prata)







Faz parte da condição masculina enfrentar os perigos de cabeça erguida e olhos fechados



EU E ela voltávamos de nossa primeira viagem juntos, um fim de semana em Ubatuba. Vínhamos saindo havia dois meses, mas o jogo nem de perto estava ganho: a moça era dura na queda e, apesar de dar alguns sinais de interesse, ainda não parecia convencida de que eu fosse um bom investimento a longo prazo.

Paramos para abastecer e resolvi calibrar pessoalmente os pneus -menos por necessidade do que pelo gesto, que a meu ver envolvia certo charme viril. Acho que não preciso dizer, mas um cara que vê na calibragem dos pneus uma atitude máscula está mais para um Woody Allen do que, digamos, para um John Wayne. Agachado ali, contudo, sentia-me um cowboy a ajustar as ferraduras de meu cavalo e quase mascava um fumo imaginário. Minha panca, infelizmente, foi pra cucuia assim que, temeroso, ouvi a garota perguntando: "Você não quer dar uma olhada na água?".

Veja: eu não poderia jamais "dar uma olhada na água", pois não tinha a menor ideia de onde ficava a água, para que servia a água e, mesmo que a encontrasse, seria incapaz de avaliar se o nível estava alto, baixo, certo ou errado. A pergunta, no entanto, trouxe-me a incômoda suspeita de que ela estivesse acostumada a sair com caras que sabiam "dar uma olhada na água". Marlon Brandons em "Um Bonde Chamado Desejo", de calça jeans e camiseta justa, que voltavam pro carro limpando as mãos num pedaço de estopa e acendendo fósforos na sola da bota. De modo que só me restou fazer uma cara de profissional e responder, resoluto, "claro!", já abrindo o capô.

Depois de angustiantes segundos perscrutando o labirinto do motor em busca de alguma pista, finalmente encontrei algo que parecia auspicioso: uma tampinha sobre um pequeno galão, com um desenho que se assemelhava a um regador de jardim. Do bico da figura, um líquido gotejava. Ora, o que seria aquilo senão água? Como ao lado da bomba de gasolina havia um regador, muito semelhante ao do desenho, fiz a óbvia conexão mental, enchi o troço até a boca, desrosqueei a tampinha e entornei uns cinco litros pelo orifício.
Só na estrada, já subindo a serra, é que a brotoeja da dúvida começou a coçar. E se aquele galão não fosse o lugar da água? Mal a questão surgiu e descobri aterrorizado a resposta, na forma de um pequeno luminoso no painel: o mesmo regadorzinho do motor, mas, dessa vez, com legenda: óleo.

E aí? Assumir o erro era impensável. Não queria, de forma alguma, que minhas últimas palavras para aquela bela moça fossem "Desculpa, reguei o motor. Acho melhor chamarmos um guincho". O jeito era seguir em frente. E foi o que eu fiz, até que, duas horas depois, graças a Deus -e aos engenheiros da Ford, a quem mando aqui meus sinceros cumprimentos-, chegamos a São Paulo.

Imagino que tenha corrido o risco de ficar pelo acostamento, quem sabe até de fundir meu carro, mas não me arrependo: faz parte da condição masculina enfrentar os perigos de cabeça erguida e olhos fechados. Mesmo aqueles perigos que nós mesmos, por conta de nossa obtusa hombridade, nos metemos. E, convenhamos, valeu a pena: hoje a moça mora comigo e somos felizes -ou pelo menos éramos, até a publicação desta crônica.

terça-feira, 17 de abril de 2012

O surpreendente Deserto de Atacama

Quando minha filha Luciana convidou-me para uma viagem ao Deserto de Atacama no Chile, torci o nariz porque não era um roteiro que estava nos meus planos, mas, alguém em sã consciência consegue recusar um convite de um filho? Pois bem, embarcamos para uma aventura de 11 dias no deserto mais árido do mundo e também na Bolívia, para conhecer o Salar de Uyuni, a maior planície salgada do planeta com uma área de 12.000 km quadrados, situada a uma altitude de 3.650 metros. Pois não é que o passeio revelou-se uma fantástica surpresa? Não imaginava o deserto assim tão surpreendente e cheio de contrastes! Os oásis contrastando com a aridez do solo, os picos nevados das montanhas, o extremo frio nos geiseres, o calor abrasivo dos salares, as exuberantes lagoas altiplánicas e o magestoso vulcão Licancabur, enfim, paisagens indescritíveis! O Salar de Uyni então é magnífico. Estar no meio daquela imensidão branca, de onde não se enxerga o horizonte, e o céu se confunde com o chão pelo reflexo dos cristais de sal molhado, fez-me lembrar dos versos de Fernando Pessoa que diz: "Deus ao mar o perigo e o abismo deu, mas nele que espelhou o céu".
Havia pensado em fazer um relato da viagem para postar aqui no blog, quando me deparei com a crônica abaixo, da minha escritora favorita, que coincidentemente esteve alí no mesmo período, que desceve o deserto de  maneira muitíssimo mais interessante do que certamente eu o faria. Só lamento não haver cruzado com ela nas ruas ou em um dos acolhedores restaurantes de San Pedro de Atacama.
Salar de Uyuni
Salar de Uyuni



Pinceladas sobre o deserto (Martha Medeiros)


De uns tempos para cá, tenho viajado por alguns roteiros, digamos, mais exóticos. Depois de Machu Picchu, foi a vez de conhecer o deserto do Atacama, no Chile, de onde regressei semana passada.

Costumo me informar bastante sobre os lugares que vou visitar. Acredito que conhecimento prévio adiciona, não subtrai. Claro, corre-se o risco de a expectativa não se confirmar, mas o Atacama entrega o que promete. Todas as imagens triunfantes que vemos nas revistas e livros são exatamente daquela forma, daquela cor – só o impacto é que é maior ao vivo.

Aterrissar em Calama, vilarejo instalado no meio do deserto e cercado pela cordilheira dos Andes, é como imagino a chegada à Lua. Dali, inicia-se o percurso de cem quilômetros que leva do aeroporto a San Pedro de Atacama, quartel-general de onde saem todos os passeios pela região.

Instantaneamente, muda-se o olhar, muda-se de pele. A terra penetra no corpo e a aridez consolida nosso primitivismo como se fosse um carimbo de entrada. Muita água, muita manteiga de cacau, hidratantes a toda hora: paliativos. Já se está impregnado de secura e arrebatamento. Tenho tomado dois banhos por dia e o Atacama não sai de mim.

Faltará espaço, aqui, para contar detalhes sobre o hotel (um oásis de frente para o vulcão Licancabur) e sobre os passeios – trekking em meio a cáctus gigantes, as imensas lagunas altiplânicas, os cristais de sal, as revoadas dos flamingos, as cavalgadas e tours de bicicleta por uma vastidão que já não se vê neste mundo apertado entre prédios, e o Valle de la Luna, que permite, em meio aos desfiladeiros, vislumbrar um céu de um azul que eu não sabia que existia.

De tudo isso, o que cabe destacar agora é a feliz constatação de que o turismo profissional pode coexistir em perfeita harmonia com a natureza, sem profaná-la. No deserto, o meio ambiente é tão mais soberano que o homem, que ninguém se atreve a violar o aspecto selvagem do local. Só a natureza se exibe, só ela se impõe, nós somos humilde plateia.

A anatomia singular das montanhas, a luminosidade mutável, o entardecer aristocrático, o silêncio como pano de fundo, a profusão de estrelas no céu, o contraste entre a dureza mineral do solo e a leveza do ambiente, tudo nos condiciona a imaginar que estamos num museu impressionista a céu aberto. É uma viagem pictórica, antes de tudo.

Para geólogos, fotógrafos, pintores, atletas e aventureiros, é destino obrigatório. Para os entediados com os hot spots turísticos de sempre, uma opção a considerar com seriedade. Para quem precisa se esconder, não imagino alternativa melhor. Para quem quer fazer compras, manter as unhas intactas e estrear o vestido novo, acredite: mais vale continuar admirando o Atacama pelos cartazes das agências de viagens instaladas nos shoppings.

quarta-feira, 11 de abril de 2012

Abril, maio, junho (Antonio Prata)



Abril? Maio? Junho? Nada começa ou finda aqui. Pelo que se anseia nesta planície? Qual clímax se vislumbra?


ABRIL, LOGO mais é maio, depois junho -e essa banal constatação me deixa um pouco desanimado. A passos largos, nos afastamos dos confetes de fevereiro, ainda não se veem no horizonte os rojões de dezembro, é como se estivéssemos presos numa longa terça-feira, incrustada na barriga do ano.
Em janeiro, há sol e sal, projetos, expectativas no ar. De fevereiro e do Carnaval, nem se fala. (Se o mundo entrasse em guerra pelos meses do ano, eu pegaria em armas para ajudar nosso país a conquistar fevereiro.) Março é um janeiro redivivo -agora vai! São lançados livros, filmes, discos e programas de TV; a gente trabalha com vontade, se matricula numa natação, olha em volta, curioso para saber o que o presente nos reserva. Julho é o meio do caminho, o auge do inverno -verão no hemisfério Norte-, férias escolares. A cidade fica vazia. Época de Copa, Olimpíada e de assistir televisão debaixo dos cobertores. Em agosto, há uma sensação de missão cumprida pelo fim do primeiro semestre e um leve anseio, bom anseio, em relação ao segundo. Em setembro, outubro e novembro, se nos colocarmos nas pontas dos pés e forçarmos a vista, já dá pra enxergar o fim do ano, ali adiante. É uma longa quinta-feira, prenhe de calma euforia. (Uma tarde, um e-mail nos pega de surpresa: um amigo diz que tá organizando o Réveillon, pensa em alugar uma casa na praia tal, busca interessados -e o cheiro de mar subitamente invade o escritório.) Dezembro é aquela correria de xixi no formigueiro: todo mundo com um olho no Windows e outro na janela, é um tal de marcar café, almoço, jantar, chope; come-se e bebe-se como se estivéssemos no século 20, num episódio de "Mad Men" -como se fosse o mundo, não o ano, que estivesse pra acabar.
Mas abril? Maio? Junho? Nada começa ou finda aqui. Espírito-Santo-hall-de-elevador-tofu-Phill-Collins. Pelo que se anseia nesta insossa planície? Qual clímax se vislumbra neste tedioso começo de segundo ato?
Eu sei, eu sei que não deveria me incomodar. Tenho a vida que pedi a Deus -ou que pediria, caso acreditasse nele e me achasse importante o suficiente para lhe fazer demandas. Nasci numa família legal, trabalho com o que gosto, tenho saúde, amigos, dei a sorte inacreditável de me apaixonar por uma mulher que também foi com a minha cara. Mas, sei lá. Talvez nós -ou eu?- só saibamos ser felizes na expectativa, nunca na realização. Eis porque fevereiro e dezembro são meus meses preferidos. Meses feitos da esperança -melancólica, é verdade, mas não o é toda esperança, afinal de contas?- de que no ano que vem, de que no bloco tal, depois de pular as ondinhas, enquanto pulamos na avenida, a vida parecerá, enfim, uma propaganda de Campari.
Já abril, maio e junho estão mais pra um daqueles encartes de supermercado que vêm no meio do jornal: a foto de uma costelinha de porco crua sobre uma pálida folha de alface, umas latas de cerveja barata, um azeite ou detergente em promoção. A vida como ela é, em velocidade de cruzeiro e sem efeitos especiais.
Eu sou uma besta de ficar reclamando, eu sei, mas, poxa: abril, maio, junho, dá um desânimo...

segunda-feira, 9 de abril de 2012

Ah, ser somente o presente (Ferreira Gullar)


Confesso que sofrer não é a minha vocação, embora nem sempre consiga escapar do sofrimento

Muito embora alguns de meus poemas falem do passado, viver no passado ou tê-lo presente no meu dia a dia não me agrada. Na verdade, todos nós somos o que vivemos e, de certo modo, o passado constitui também o nosso presente, quer o lembremos ou não. Mas, precisamente porque somos o que vivemos, trazemos conosco lembranças muitas vezes dolorosas, que de repente emergem no presente. Disso, creio que ninguém gosta, à exceção dos masoquistas.
Para falar com franqueza, confesso que sofrer não é a minha vocação, embora nem sempre consiga escapar do sofrimento. Se puder, escapo. Creio mesmo que a vocação do ser humano (de todo ser vivo?) é a felicidade.
Isso é o que todos buscamos, na comida que saboreamos, na bebida que sorvemos, nos momentos de amor, no carinho, na amizade e na alegria de fazer o outro feliz. Sofrer, não. Só quando não tem jeito e a lembrança do passado é quase sempre sofrimento: ou porque voltamos a sentir a dor de outrora, ou porque relembramos a felicidade que houve e se foi para nunca mais.
Por isso foi que, certa manhã, ao entrar na sala vindo do quarto de dormir, deparei-me com o sol matinal que a invadia e me senti feliz como nunca. Nenhum passado, nenhuma lembrança. Eu era ali, então, um bicho transparente, mergulhado na luz matinal. E escrevi estes versos:
"Ah, ser somente o presente, esta manhã, esta sala".
Essa é uma aspiração certamente impossível de realizar, mas a poesia é, entre outras coisas, viver, com a ajuda da palavra, o impossível, já que aspirar apenas ao possível não tem graça. Pois bem, houve gente que leu esses versos e não apenas gostou deles como concordou com aquela aspiração irrealizável. Essa de que o passado já era.
Mas eis que estou caminhando pela avenida Atlântica quando vem a meu encontro um senhor de óculos, barba e cabelos quase inteiramente brancos.
- Gullar, meu querido, quantos anos faz que a gente não se vê! Lembra daquele dia, na Redação da "Manchete", quando o Adolpho Bloch só faltou te agredir?
- Me agredir, é? -falei por falar, já que não sabia quem era aquele sujeito que me abordara assim de repente. E ele continuou:
- Você tinha aparecido na televisão, de barba por fazer e sem gravata, falando em nome da revista, o que deixou o Adolpho furioso.
E acrescentou:
- Mas acho que você não está me reconhecendo... Eu sou o Hélio, o fotógrafo.
Só então me lembrei dele. Tínhamos sido amigos e não fui capaz de reconhecê-lo.
- Você pegou um cinzeiro, ia bater com ele na cara do Adolpho e fui eu que te arrastei para fora da Redação, lembra?
A verdade é que nunca fui muito bom de memória. Quando voltei do exílio, uma atriz famosa e linda, companheira na luta contra a ditadura, desceu do carro no meio da rua, em Ipanema, para vir me abraçar. Dois meses depois, estou lançando um livro e ela para em minha frente para que eu lhe autografe o livro, e o nome dela some de minha mente. Entro em pânico. Não poderia perguntar-lhe o nome depois daquele abraço efusivo em plena rua.
A solução que encontrei foi me levantar, sair da livraria, atravessar correndo a rua, entrar no boteco em frente, perguntar à Teresa o nome da atriz e voltar. Sentei-me de novo, ela me olhou sem entender nada. Escrevo, então, no livro: "Para Norma Bengell...".
Com o passar dos anos, a coisa foi ficando pior. Outro dia, combinei com a Cláudia que iríamos ao cinema. Escolhi o filme, marquei para nos encontrarmos lá mesmo, cheguei antes, comprei as entradas (uma inteira e uma meia, que eu sou idoso) mas, quando o filme começou, ela falou revoltada: "Você ficou maluco? Esse filme nós já vimos!". E eu: "Você está brincando!". "Eu, brincando!? Você é que está maluco! Não faz nem um mês que vimos este filme!"
Realmente, após minutos, constatei que já o havíamos visto. Assim está minha memória: tudo o que vejo, leio, ouço ou faço logo esqueço. Não tenho mais passado. Aquilo que escrevi no poema virou verdade: tornei-me apenas o presente, esta manhã, esta sala.