domingo, 28 de outubro de 2012

Sustento feminino (Martha Medeiros)



Estive participando de um seminário sobre comportamento, onde foi dito que as mulheres estão de tal forma cansadas de suas múltiplas tarefas e do esforço para manter a independência que começam a ratear: andam sonhando de novo com um provedor, um homem que as sustente financeiramente. Não acreditei. Outro dia discuti com uma amiga porque duvidei quando ela disse estar percebendo a mesma coisa, que as mulheres estão selecionando seus parceiros pelo poder aquisitivo – não só as maduras e pragmáticas, mas também as adolescentes, que ainda deveriam cultivar algum romantismo.

Então é verdade? Pois me parece um retrocesso. A independência nos torna disponíveis para viver a vida da forma que quisermos, sem precisar “negociar” nossa felicidade com ninguém. São poucos os casos em que se pode ser independente sem ter a própria fonte de renda (que não precisa obrigatoriamente ser igual ou superior a do marido). Não é nenhum pecado o homem pagar uma viagem, dar presentes, segurar as pontas em despesas maiores, caso ele ganhe mais – é distribuição de renda. Mas se é ela que ganha mais, a madame também pode assumir o posto de provedora sênior, até que as coisas se equalizem. Parceria é uma relação bilateral. É importante que ambos sejam autossuficientes para que não haja distorções sobre o que significa “amor” com aspas e amor sem aspas.

As mulheres precisam muito dos homens, mas por razões mais profundas. Estamos realmente com sobrecarga de funções – pressão autoimposta, diga-se –, o que faz com que percamos nossa conexão com a feminilidade: para ser mulher não basta usar saia e pintar as unhas, essa é a parte fácil. A questão é ancestral: temos, sim, necessidade de um olhar protetor e amoroso, de um parceiro que nos deseje por nossa delicadeza, nossa sensualidade, nosso mistério. O homem nos confirma como mulher, e nós a eles. Essa é a verdadeira troca, que está difícil de acontecer porque viramos generais da banda sem direito a vacilações, e eles, assustados com essa senhora que fala grosso, acabam por se infantilizar ainda mais.

Podemos ser independentes e ternas, independentes e carinhosas, independentes e fêmeas – não há contradição. Estamos mais solitárias porque queremos ter a última palavra em tudo, ser nota 10 em tudo, a superpoderosa que não delega, não ouve ninguém e que está ficando biruta sem perceber.

Garotas, não desistam da sua independência. Façam o que estiver ao seu alcance, seja através do trabalho ou do estudo, em busca de realização e amor próprio. Escolher parceiros pelo saldo bancário é triste e antigo, os tempos são outros. É plausível que se procure alguém com o mesmo nível intelectual e social, com um projeto de vida parecido e com potencial de crescimento – mas para crescerem juntos, não para garantir um tutor.

A solidão, como contingência da vida, não é trágica, podemos dar conta de nós mesmas. Mas, ainda que eu pareça obsoleta, ainda acredito que se sentir amada é que nos sustenta de fato.

sexta-feira, 26 de outubro de 2012

A necessidade de desejar - Martha Medeiros

Todos sentem necessidade de amar, e esta necessidade geralmente é satisfeita quando encontramos o objeto de nosso amor e com ele mantemos uma relação frequente e feliz.
Pois bem. 
Enquanto vamos juntinhos à feira escolher frutas e verduras, enquanto mandamos consertar a infiltração do banheiro e enquanto vemos televisão sentados lado a lado no sofá, o que fazemos com nossa necessidade de desejar?

Lendo Alain de Botton, um escritor inglês, deparei-me com essa questão: amor e desejo podem ser conciliáveis no início de uma relação, mas despedem-se ao longo do convívio.
Só por um milagre você vai ouvir seu coração batendo acelerado ao ver seu marido chegando do trabalho, depois de vê-lo fazendo a mesma coisa há cinco, dez, quinze anos.

Ao ouvir a voz dela no telefone, você também não sentirá nenhum friozinho na barriga, ainda mais se o que ela tem para dizer é "não chegue tarde hoje que vamos jantar na mamãe".
Você ama o seu namorado, você ama a sua mulher. Mais que isso: você os tem. Mas a gente só deseja aquilo que não tem. O problema da infidelidade passa por aqui.

Muitos acreditam que a pessoa que foi infiel não ama mais seu parceiro: não é verdade.
Ama e tem atração física, inclusive, mas não consegue mais desejá-lo, porque já o tem.
Fica então aquele vácuo, aquela lacuna, aquela maldita vontade de novamente desejar alguém e ser desejado, o que só é possível entre pessoas que ainda não se conquistaram.

Não é preciso arranjar um amante para resolver o problema. Há recursos outros: flertes virtuais, fantasias eróticas, paqueras inconseqüentes. Tem muita gente aí fora a fim de entrar nesse jogo sem se envolver, sem colocar em risco o amor conquistado, porque sabe que a troca não compensa.

Amor é jóia rara, o resto é diversão. Mas uma diversão que precisa ter seu espaço, até para salvar o amor do cansaço. Necessidade de amar x necessidade de desejar. Os conservadores temem reconhecer as diferenças entre uma e outra. Os galinhas agarram-se a essa justificativa. E os moderados tratam de administrar essa arapuca.

O Plano "B" - Wilson Jacob Filho



     Ao perceber que não poderia manifestar, pessoalmente, os meus votos na comemoração do 21º aniversário de um jovem amigo, resolvi escrever-lhe uma mensagem que fosse além dos votos de felicidade eterna e/ou de pleno sucesso, obviamente só existentes nos domínios da fantasia.
     O que recomendar, porém, a quem acaba de atingir a plenitude do seu desenvolvimento físico e que mal começa a perceber os limites da sua capacidade psíquica e cognitiva?
     Tentando facilitar, reportei-me ao passado, buscando entender o que eu gostaria de ter compreendido na mesma idade e que poderia ter-me sido útil dali em diante. Nada encontrei diretamente ligado a um tema específico, nem senti falta de qualquer previsão importante que, na época, me teria sido útil para a tomada de decisões.
     Primeira conclusão: andar a gente aprende andando.
     Mesmo assim, insisti relembrando os projetos, ou melhor, os sonhos daquela idade. Percebi que alguns se realizaram exatamente como eu imaginara, enquanto outros chegaram perto, um pouco além ou aquém do desejado. A maioria, porém, permaneceu no fértil universo do imaginário embora, por outro lado, um grande número das realizações atuais não fez parte das expectativas de outrora. Curiosamente, porém, desta aparente dissonância entre o sonho e a realidade, só restou um sentimento de desagrado quando não houve uma solução alternativa.
     Segunda conclusão: sonhar é fundamental; realizar é opcional.
     Pronto, descobri finalmente o que gostaria de dizer a quem tem muitos anseios atuais e uma longa expectativa de vida para edificá-los. Não há porque limitá-los, nesta fase, por serem aparentemente irrealizáveis. Muito mais importante é encontrar mais que um caminho para atingir cada um dos objetivos. Assim sendo, haverá menor risco de nos tornarmos reféns de uma condição isolada. O “Plano B” passa a ser uma boa alternativa quando o “A” se mostra definitivamente inviável.
     Tenho aprendido muito sobre este assunto nos freqüentes contatos com aqueles que já viveram mais do que eu e cujas experiências demonstram que o conjunto da obra depende muito mais da capacidade de encontrar o melhor caminho durante a viagem, do que o de tê-lo idealizado nos seus mínimos detalhes antes de iniciá-la.
     Assim entendendo, fica mais simples diferençar a determinação necessária para que o objetivo possa ser alcançado da teimosia que muitas vezes impede a escolha de um plano alternativo. Para isto o tempo é um grande aliado. Sempre teremos a possibilidade de aprender a preparar vias alternativas para chegar onde queremos desde que tenhamos a flexibilidade necessária para reconhecer um obstáculo intransponível.
     Terceira conclusão: o determinado chega onde planejou, escolhendo o melhor caminho. O teimoso fica no caminho previamente escolhido tentando fazer com que ele o leve ao seu objetivo.
Escrevi, finalmente, a curta mensagem. Além de lhe desejar uma vida longa e repleta de desafios, recomendei que fosse generoso consigo mesmo, dando-se o maior número possível de opções para a realização dos seus sonhos. Para tal, não há motivo para pressa. A arte de escolher acertadamente é tarefa para o longo prazo. Todos os idosos que conheço que confessam estar satisfeitos com a vida continuam criando os seus “Planos B”.
     Talvez seja esta uma das principais estratégias para fazer da longevidade um caminho igualmente interessante a despeito de quanto cada um já o tenha percorrido.

Publicado no Jornal Folha de São Paulo em 13/09/2007.

quarta-feira, 24 de outubro de 2012

LUIZ FELIPE PONDÉ - O que é uma vida decente?




O que é melhor, um pai ou marido corrupto ou pobre? Honestidade, conforto ou bem-estar?


Quando se fala de corrupção, todo mundo mente. Quase todo mundo prefere um pai ou marido corrupto a um honesto, mas pobre. Para resistir à corrupção, você tem que ser radical, ou religioso, ou moral ou político.
Parafraseando Hanna Arendt em seu "Eichmann em Jerusalém", quando ela disse que os nazistas estavam preocupados com a aposentadoria e chamou isso de banalidade do mal, eu diria que existe uma "banalidade da corrupção" inscrita na perversão do que seria uma vida decente.
Não quero "desculpar" a corrupção, quero trazer à tona uma causa ancestral de corrupção da qual não se fala no silêncio do cotidiano.
O julgamento do mensalão não significou nada para o eleitor, mesmo para aquele que se julga "crítico". Ninguém dá bola para a corrupção do seu partido do "coração". Também foi importante para ver o modo de operação da corrupção ideologicamente justificada inventada pelo PT: só faltava dizer que foi a direita de Marte que inventou tudo.
Já se falou muito que quando classes sociais mais baixas ascendem socialmente e tentam imitar os hábitos da aristocracia ficam ridículas. Isso é descrito como "novo rico". Mas o "novo corrupto" é tão ridículo quanto. Que "saudade" dos corruptos clássicos do coronelismo nordestino, que negavam, mas não apelavam para uma inocência ideologicamente justificada, ou simplesmente não se davam ao trabalho de negar. Os mensaleiros continuam a agir como um clero de puros de coração.
Mas não é disso que quero falar. Quero falar do fato de que, para além do debate político -que acho chatinho e quase sempre um circo-, a corrupção se alimenta de algo muito mais profundo.
Damos pouca atenção a esse fato porque a substância da moral pública é a hipocrisia, por isso é melhor brincar de dizer que a causa é só política, quando na realidade é mais banal do que isso.
Quase ninguém quer ter um pai ou marido pobre, e sim prefere um pai ou marido corrupto, mas que dê boas condições de vida. Esta é a verdade que não se fala.
Imagine que você é uma jovem mulher que vai casar com um jovem rapaz. Antes que me acusem de "sexista" (mais um termo usado para quebrar a espinha dorsal do debate público, semelhante a acusar alguém de pedófilo), o que vou descrever pode acontecer também com um homem, mas é mais comum ser mulher, porque elas ainda são mais financeiramente dependentes e continuam execrando homem sem sucesso profissional, apesar das mentiras das feministas.
Agora imagine que seu marido será um policial honesto até o fim da vida. A chance de ele acabar pobre é enorme. O mesmo pode acontecer, ainda que num grau mais alto em termos financeiros, com qualquer um que venha ocupar um cargo nos variados escalões do governo.
Agora imagine que, no começo, ele seja honesto e com ereção e vigor, e você também seja uma jovem mulher cheia de vida e expectativas. Agora imagine que se passaram 20 anos... 30 anos... O que importa? A honestidade dele ou ele pensar "no bem-estar da família"? Espere, não responda em voz alta, guarde para si a resposta, senão você mentirá na certa.
Por "pensar no bem-estar da família", quero dizer: roupa, comida boa, escola dos filhos, melhor casa para morar, ajudar os sogros doentes e idosos, viajar para Miami e Paris, apartamento na praia, iPhone, no mínimo para as crianças, carro novo, uma bolsa de marca, ainda que "em conta", sair com amigos para jantar, levar as crianças para comer pizza no domingo, poder mostrar para os cunhados que você está melhor de vida (isso às vezes vale mais do que tudo na escala da miséria moral de todos nós), viajar de avião, comprar coisas nos EUA, ter TV de 200 polegadas, iPads, enfim, "ter uma vida".
Em situações de risco, em guerras, a covardia é a regra -ao contrário dos mentirosos que até hoje se dizem filhos de "la résistance française".
No dia a dia, isso tem outro nome: honestidade não vale nada, o que vale é ter uma "vida decente": segurança para os filhos, uma esposa feliz porque pode comprar o que quiser (dentro do orçamento, claro, mas quanto menor o orçamento menor o amor...), enfim, um "futuro melhor".

terça-feira, 23 de outubro de 2012

FERREIRA GULLAR Piada de salão



O tiro saiu pela culatra, e o partido da ética na política consagrou-se como um exemplo de corrupção

Quando o escândalo do mensalão abalou a vida política do país e, particularmente, o governo Lula e seu partido, alguns dos petistas mais ingênuos choraram em plena Câmara dos Deputados, desapontados com o que era, para eles, uma traição. Lula, assustado, declarou que havia sido traído, mas logo acertou, com seus comparsas, um modo de safar-se do desastre.
Escolheram o pobre do Delúbio Soares para assumir sozinho a culpa da falcatrua. Para convencê-lo, creio eu, asseguraram-lhe que nada lhe aconteceria, porque o Supremo estava nas mãos deles. Delúbio acreditou nisso a tal ponto que chegou a dizer, na ocasião, que o mensalão em breve se tornaria piada de salão.
Certo disso, assumiu a responsabilidade por toda a tramoia, que envolveu muitos milhões de reais na compra de deputados dos partidos que constituíam a base parlamentar do governo.
Embora fosse ele apenas um tesoureiro, afirmou que sozinho articulara os empréstimos fajutos, numa operação que envolvia do Banco do Brasil (Visanet), o Banco Rural e o Banco de Minas Gerais, e sem nada dizer a ninguém: não disse a Lula, com que privava nos churrascos dominicais, não disse a Genoino, presidente do PT, nem a José Dirceu, o ministro político do governo.
Era ele, como se vê, um tesoureiro e tanto, como jamais houve igual. Claro, tudo mentira, mas estava convencido da impunidade. A esta altura, condenado pelo STF, deve maldizer a esperteza de seus comparsas. Mas os comparsas, por sua vez, devem amaldiçoar o único que, pelo menos até agora, escapou ileso do desastre -o Lula.
Pois bem, como o tiro saiu pela culatra e o partido da ética na política consagrou-se como um exemplo de corrupção, Lula e sua turma já começaram a inventar uma versão que, se não os limpará de todo, pelo menos vai lhes permitir continuar mentindo com arrogância. O truque é velho, mas é o único que resta em situações semelhantes: posar de vítima.
E se o cara se faz de vítima, tem o direito de se indignar, já que foi injustiçado. Por isso mesmo, vimos José Genoino vir a público denunciar a punição que sofreu, muito embora tenha sido condenado por nove dos dez ministros do STF, quase por unanimidade.
A única hipótese seria, neste caso, que se trata de um complô dos ministros contra os petistas. Mas mesmo essa não se sustenta, uma vez que dos dez membros do Supremo, oito foram nomeados por Lula e Dilma.
Reação como a de Genoino era de se esperar, mesmo porque, alguns dias antes, a direção do PT publicara aquele lamentável manifesto em que afirmava ser o processo do mensalão um golpe semelhante aos que derrubaram Getúlio Vargas e João Goulart. Também a nota posterior à condenação de José Dirceu repete a mesma versão, segundo a qual os mensaleiros estão sendo condenados porque lutam por um Brasil mais justo. O STF, como se sabe, é contra isso.
Não por acaso, Lula -que reside num apartamento duplex de cobertura e veste ternos Armani- voltou a usar o mesmo vocabulário dos velhos tempos: "A burguesia não pode voltar ao poder". Sim, não pode, porque agora quem nos governa é a classe operária, aquela que já chegou ao paraíso.
Não tenho nenhum prazer em assistir a esse espetáculo degradante, quando políticos de prestígio popular, que durante algum tempo encarnaram a defesa da democracia e da justiça social em nosso país, são condenados por graves atentados à ética e aos interesses da nação. As condenações ocorreram porque não havia como o STF furtar-se às evidências: dinheiro público foi entregue ao PT, mediante empréstimos fictícios, que tornaram possível a compra de deputados para votarem com o governo. Tudo conforme a ética petista, antiburguesa.
Mas não tenhamos ilusões. Apesar de todo esse escândalo, apesar das condenações pela mais alta corte de Justiça, o PT cresceu nas últimas eleições. Tem agora mais prefeituras do que antes e talvez ganhe a de São Paulo. Nisso certamente influiu sua capacidade de mascarar a verdade, mas não só. Com a mesma falta de escrúpulos, tendo o poder nas mãos, manipula igualmente as carências dos mais necessitados e dos ressentidos.
Não vai ser fácil acharmos o rumo certo.

HÉLIO SCHWARTSMAN - O fim da virgindade


 Acaba hoje o prazo para fazer um lance pela virgindade da estudante brasileira Ingrid Migliorini. Já lhe ofereceram US$ 255 mil pelo direito à primeira noite.

Penso que a jovem está certíssima. Vai levantar um bom dinheiro para entregar uma simples abstração, que a maioria das meninas dá de graça a seus namorados. Se há algo chocante na história é o valor que nós, como espécie, atribuímos à virgindade.

A obsessão se materializa em todos os níveis, do mais sagrado ao mais profano. Segundo Paul Bloom em "How Pleasure Works", o termo aparece nada menos do que 700 vezes no Antigo Testamento e ocupa lugar ainda mais central no cristianismo, com o suposto nascimento virginal de Jesus. Mesmo no mundo materialista do capitalismo, mulheres gastam pequenas fortunas em cirurgias de reconstituição do hímen.
Tamanho interesse tem raízes evolutivas. Desde que a fêmea humana deixou de anunciar ostensivamente seu período fértil, como o faz a maioria dos primatas, ficou muito mais difícil para o macho ter certeza de que o filho que ele criaria era mesmo seu. E investir recursos no desenvolvimento de genes alheios é, em termos biológicos, um desastre. Um modo de aumentar as chances de o rebento ser legítimo era copular preferencialmente com virgens.

Se o raciocínio valia no Pleistoceno, não faz mais nenhum sentido no mundo moderno, em que a mulher pode controlar sua fertilidade e existem exames de DNA à disposição dos homens mais desconfiados. Hoje, o conceito de virgindade oscila entre uma relíquia mental da pré-história e, nas sociedades mais conservadoras, uma forma de tiranizar a mulher.

Antes, porém, de maldizer o processo que levou a fêmea humana a esconder até de si mesma a ovulação, gerando milênios de opressão, é bom lembrar que a ocultação do estro resultou também no sexo recreacional e na formação de relações duradouras entre homem e mulher.

segunda-feira, 22 de outubro de 2012

Os potinhos fora do prédio (Fabrício Carpinejar)


Na saída do meu prédio, sempre piso em pratinhos de água e restos de comida, destinados por algum vizinho a um cachorro de rua.
Molho a bainha da calça, espirro polenta na roupa, mas o incômodo físico é o de menos.
Pressinto uma falsidade involuntária na assistência.
Quando criança, era natural oferecer, totalmente escondido, leite para ninhada de gatos, até os pais admitirem sua entrada em nossa vida.
O cenário diante do meu condomínio é outro: adultos repassam comida sigilosamente sem nenhum motivo. Escondem de quem? De si?
Por que o tráfico de ternura?
Toda manhã, a refeição é renovada e o coitado do bicho comparece para matar a fome e a sede. Só que ninguém mata sua orfandade.
O que sugere ser uma boa ação, na minha crença, é crueldade.
É trazer o cãozinho para perto e não permitir-lhe entrar. É oferecer a isca e abandoná-lo. É fingir que preserva sua saúde durante alguns minutos para largá-lo à sorte no restante do dia.
É criar uma série de mendigos de quatro patas aguardando a esmola da entrada.
Cada morador que entra no conjunto residencial recebe uma mirada funda, triste, implacável.
O olhar canino tem carências de chapéu – e o coração se contrai como niqueleira vazia.
O animal não se vê recompensado e satisfeito, mas viciado e perdido. Suga as nossas sobrancelhas. Abana o rabo por qualquer contração do rosto, na expectativa de uma família adotiva.
Está sendo torturado: não sabe como agir para ser aceito, não sabe se deve ficar imponente de vigília ou desaparecer discretamente e retornar no sol seguinte.
Ele se frustra perante a porção. Não tem um afago demorado, sinal de permanência, um assobio confiante para libertá-lo.
Quem alimenta no portão está se enganando e enganando o bichinho.
Não tem coragem de colocá-lo em sua sala, em sua cozinha e integrá-lo definitivamente a um teto.
Faz de conta que ama e se preocupa, porém recusa o trabalho inteiro de recuperação e treinamento.
É um cumprimento de mão frouxa. Mantém próximo, jamais protegido.
Não existe generosidade parcelada, é uma prestação única e à vista.
Desse jeito, é ajudar para receber o título de bondoso, nunca porque deseja realmente ajudar.
Oferecer sobras é assistencialismo, é populismo, é paliativo.
A responsabilidade é a única caridade por inteiro. O resto é adiamento.
Se quer cuidar do bicho, leve para casa. Dê um lar. Assuma o compromisso do convívio.
É abrir a primeira porta, a porta do meio e a porta de dentro. As três portas que separam a aparência do caráter.

sexta-feira, 12 de outubro de 2012

CARLOS HEITOR CONY Não sabiam de nada



Tal como os réus do mensalão, os chefes ouvidos em Nuremberg não sabiam de nada

Leigo -e bota leigo nisso- em matéria de política e direito, volto a comentar, a meu modo e circunstância, o julgamento do mensalão pelo Supremo Tribunal Federal. Sem condições para analisar o mérito de um dos casos mais complicados do nosso tempo, vou limitar-me a algumas considerações praticamente marginais ao processo em si.
Desde o início, quando um então deputado denunciou a compra de votos no Congresso, a total ignorância era o argumento principal dos suspeitos, a começar por um ex-presidente da República e a terminar na raia miúda de funcionários do terceiro escalão ou de escalão nenhum.
Os suspeitos, que além de suspeitos eram também interessados no sepultamento da questão, limitaram-se à alegação de que o caso não existia, não passava de um recurso sujo dos adversários, uma vez que ninguém -a não ser o delator que também acabou condenado- sabia da existência de um plano para garantir uma base aliada que desse sustentação às medidas tomadas ou ameaçadas pelo governo.
Na base de "que nada sabiam", o processo foi batizado de Ação Penal 470, contrariando o deputado Miro Teixeira que, salvo engano meu, foi o primeiro a falar em mensalão, termo negado veementemente pelos já citados suspeitos.
Pedindo as devidas vênias aos interessados, e guardando as proporções do mensalão com o julgamento de Nuremberg, que condenou criminosos de guerra depois do segundo conflito mundial no século 20, lembro que o argumento brandido pelos chefes que sobreviveram ao nazismo, era o mesmo: não sabiam de nada. A culpa pelo assassinato de milhões de pessoas foi atribuída a dois suicidas, Hitler e Himmler, este último o responsável historicamente pela "Solução Final" e aprovada com entusiasmo pelo seu chefe máximo.
Diante da alegada negação dos piores crimes da Humanidade, inclusive do Holocausto, o juiz que presidia o julgamento fez exibir no plenário alguns documentários que até hoje nos horrorizam e frequentemente são exibidos nos cinemas e nas televisões de todo o mundo.
Mesmo assim, um dos réus principais, o todo-poderoso Göring, que depois de Hitler era o personagem mais importante daquele regime, negou a realidade das monstruosas cenas documentadas, dizendo que qualquer fotógrafo ou cinegrafista podia registrar cadáveres anônimos em diversos lugares do mundo. Bem editadas, as cenas dariam uma prova dos crimes que os demais réus diziam ignorar.
Numa palavra: tal como os réus do mensalão, eles não sabiam de nada, nunca tinham ouvido falar em campos de concentração e crematórios.
O próprio Hermann Göring suicidou-se em sua cela, horas antes de ser enforcado. Ele, o ex-marechal-de-campo, pedira ao juiz o favor de ser fuzilado como um soldado no campo de batalha, mas garantiu a seus julgadores que "daqui a cem anos haverá estátuas de mármore em todas as cidades alemãs, em minha homenagem, como o grande herói da grande Alemanha".
Somente um réu admitiu sua culpa no maior massacre da história. Foi o arquiteto oficial do regime, Albert Speer, amigo pessoal de Hitler, que escapou da forca mas foi condenado a 20 anos de prisão por ter aceito o cargo de ministro dos Armamentos, já no fim do regime. Ele confessou que recrutava prisioneiros para o trabalho nas fábricas, salvara muitos da morte mas assumia a responsabilidade pelo crime praticado.
O próprio Churchill encaminhou ao Tribunal de Nuremberg um pedido de libertação para o arquiteto. Stálin, cujas tropas tomaram Berlim e apressaram o suicídio de Hitler, pediu que aquela corte não atendesse ao apelo do seu eventual aliado inglês.
Ainda bem que o caso do mensalão não pode ser comparado nem de longe às atrocidades nazistas: para alguns, Deus ainda é brasileiro. Mas o escândalo político-financeiro que o STF escancarou para todos nós, pode ser o primeiro sinal de que o mesmo Senhor, que abriu as torneiras para as águas do Dilúvio e providenciou o fogo para destruir Sodoma e Gomorra, decida mudar de nacionalidade e resolva ser cidadão das ilhas Papua.

quinta-feira, 11 de outubro de 2012

DANUZA LEÃO Para que o amor dure


É POSSÍVEL PRETENDER que uma mulher e um homem jurem se amar para o resto de suas vidas? Difícil, mas é o que acontece milhares de vezes por dia, na maioria dos países, em cerimônias de casamento. É como um contrato em que regras são estabelecidas mas nem sempre cumpridas, mas há quem garanta que regras foram feitas para isso.
Mas essa, convenhamos, é muito radical. Seria um sonho amar e ser amada pela mesma pessoa até o fim dos dias, no lugar de passar a vida tentando, tentando, se decepcionando, sofrendo, fazendo sofrer. Seria maravilhoso que as pessoas se casassem e se amassem para sempre, mas não é sempre que isso acontece.
E quando não acontece, são meses, às vezes anos de sofrimento para um monte de gente: os próprios, os filhos dos próprios, os pais dos próprios, os amigos que falam e tomam partido, ficam amigos de um lado e rompem com o outro, fora a divisão dos bens, a pensão alimentícia etc.; uma desestruturação geral, um caos.
Mas já que é um contrato, porque não mudar as regras, com a concordância dos dois envolvidos?
Poderia ser assim: tudo mais ou menos igual, mas já determinando, antes, o que é de quem, em caso de separação. Quando isso é feito no tempo das rosas, entre beijos e carinhos, pode ser uma tarde bem divertida um dizendo "ah, mas se a gente se separar, o som é meu", enquanto o outro responde "se você fica com o som, então eu fico com a TV", e sobretudo quem fica no apartamento e quem sai.
Tudo escrito num bloquinho, assinado pelos dois, que dali iriam direto para a cama rindo e dizendo que nada daquilo aconteceria jamais, pois o amor deles seria eterno.
Nesse contrato haveria uma cláusula, para mim a principal, igualzinha a quando se aluga um apartamento: o tempo de duração da relação. Um ano seria um prazo ótimo: nem curto demais, nem longo demais. Quando o dia chegasse, estariam automaticamente descasados e separados, e caberia apenas uma pergunta, como no programa de Silvio Santos: vai continuar ou vai desistir? Depois da resposta, ou uma nova lua de mel, ou cabe ao que vai sair fazer as malas e desaparecer sem ter que discutir a relação; sem ter que discutir a relação, está claro?
Essa cláusula preservaria e muito as uniões, e os casamentos durariam bem mais. Por quê? Vejamos.
Se uma pessoa sabe que num dia determinado o contrato termina -e ela está feliz com sua vida-, faz o quê? Trata de cuidar muito bem do seu marido/mulher, de encher de carinhos, de fazer as vontades, de se comportar como o parceiro/a ideal.
Se fizer assim, dificilmente o outro/ outra vai deixar de amar, e a prorrogação do contrato por mais um ano será automática. No ano seguinte, a mesma coisa, os mesmos cuidados, os mesmos carinhos. Sinceramente: se você sabe que pode perder aquela pessoa numa data já determinada, não vai fazer todas as gracinhas para que isso não aconteça?
Mas se mesmo assim um se apaixonar por outra/o e ficar esperando ansiosamente pela data do fim do contrato para fazer as malas e se mandar, é porque não ia dar certo mesmo.
E nesse caso terá que pagar uma multa, exatamente como nos contratos de aluguel. Assim, com o dinheiro da multa, o que foi deixado poderá fazer uma viagem - a Foz do Iguaçu ou às ilhas gregas- e lá encontrar mais um verdadeiro amor de sua vida.

segunda-feira, 8 de outubro de 2012

MARTHA MEDEIROS - Narrar-se




“Quem escreve está sempre se delatando, de forma direta ou
camuflada. E como temos inquietações parecidas, os leitores
se identificam: ‘Parece que você lê meus pensamentos’”


Sou fã de psicanálise, de livros de psicanálise, de filmes sobre psicanálise e não pretendo desgrudar o olho da nova série do GNT, Sessão de Terapia, dirigida por Selton Mello. Algum voyeurismo nisso? Total. Quem não gostaria de ter acesso ao raio-x emocional dos outros? Somos todos bem resolvidos na hora de falar sobre nós mesmos num bar, num almoço em família, até escrevendo crônicas. Mas, em colóquio secreto e confidencial com um terapeuta, nossas fraquezas é que protagonizam a conversa.

Por 50 minutos, despejamos nossas dúvidas, traumas, desejos, sem temer passar por egocêntricos. É a hora de abrir-se profundamente para uma pessoa que não está ali para condenar ou absolver, e sim para estimular que você escute atentamente a si mesmo e assim consiga exorcizar seus fantasmas e viver de forma mais desestressada. Alguns pacientes desaparecem do consultório logo após o início das sessões não estão preparados para esse enfrentamento.

Outros levam anos até receber alta. E há os que nem quando recebem vão embora, tal é o prazer de se autoconhecer, um processo que não termina nunca. Desconfio que será o meu caso. Minha psicanalista um dia terá que correr comigo e colocar um rottweiler na recepção para impedir que eu volte. Já estou bolando umas neuroses bem cabeludas para o caso de ela tentar me dispensar.

Analisar-se é aprender a narrar a si mesmo. Parece fácil, mas muitas pessoas não conseguem falar de si, não sabem dizer o que sentem. Para mim não é tão difícil, já que escrever ajuda muito no exercício de expor-se. Quem escreve está sempre se delatando, seja de forma direta ou camuflada. E como temos inquietações parecidas, os leitores se identificam: “Parece que você lê meus pensamentos”. Não raro, eles levam textos de seus autores preferidos para as consultas com o analista, a fim de que aqueles escritos ajudem a elaborar sua própria narrativa.

Meus pensamentos também são provocados por diversos outros escritores, e ainda por músicos, jornalistas, cineastas. Esse intercâmbio de palavras e sentimentos ajuda de maneira significativa na nossa própria narração interna. Escutando o outro, lendo o outro, se emocionando com o outro, vamos escrevendo vários capítulos da nossa própria história e tornando-nos cada vez mais íntimos do personagem principal – você sabe quem.

Selton Mello, em entrevista, disse que para algumas pessoas o programa pode parecer chato, pois é todo baseado no diálogo entre terapeuta e paciente, e isso é algo incomum na televisão, que vive de muita ação e gritaria. De minha parte, terá audiência cativa até o último episódio, pois, mesmo não vivenciando os problemas específicos que a série apresenta, todos nós aprendemos com os dramas que acontecem na porta ao lado, é um bem-vindo convite a valorizar o humano que há em cada um. A introspecção não costuma atingir muitos pontos no ibope, mas é a partir dela que se constrói uma vida que merece ser contada.

Sinal de vida - Fernando Henrique Cardoso



A condenação clara e indignada, por ministros do Supremo Tribunal Federal, do mau uso da máquina pública revigora a crença na democracia


Tenho dito e escrito que o Brasil construiu o arcabouço da democracia, mas falta dar-lhe conteúdo. A arquitetura é vistosa: independência entre os poderes, eleições regulares, alternância no poder, liberdade de imprensa e assim por diante. Falta, entretanto, o essencial: a alma democrática.

A pedra fundamental da cultura democrática, que é a crença e a efetividade de todos sermos iguais perante a lei, ainda está por se completar. Falta-nos o sentimento igualitário que dá fundamento moral à democracia. Esta não transforma de imediato os mais pobres em menos pobres. Mas deve assegurar a todos oportunidades básicas (educação, saúde, emprego) para que possam se beneficiar de melhores condições de vida. Nada de novo sob o sol, mas convém reafirmar.

Dizendo de outra maneira, há um déficit de cidadania entre nós. Nem as pessoas exigem seus direitos e cumprem suas obrigações, nem as instituições têm força para transformar em ato o que é princípio abstrato.
Ainda recentemente um ex-presidente disse sobre outro ex-presidente, em uma frase infeliz, que diante das contribuições que este teria prestado ao país não deveria estar sujeito às regras que se aplicam aos cidadãos comuns... O que é pior é que esta é a percepção da maioria do povo, nem poderia ser diferente, porque é a prática habitual.

Pois bem, parece que as coisas começam a mudar. Os debates travados no Supremo Tribunal Federal e as decisões tomadas até agora (não prejulgo resultados, nem é preciso para argumentar) indicam uma guinada nessa questão essencial. O veredicto valerá por si, mas valerá muito mais pela força de sua exemplaridade.
Condenem-se ou não os réus, o modo como a argumentação se está desenrolando é mais importante do que tudo. A repulsa aos desvios do bom cumprimento da gestão democrática expressada com veemência por Celso de Mello e com suavidade, mas igual vigor, por Ayres Britto e Cármen Lúcia, são páginas luminosas sobre o alcance do julgamento do que se chamou de “mensalão”.

Ele abrange um juízo não político-partidário, mas dos valores que mantêm viva a trama democrática. A condenação clara e indignada do mau uso da máquina pública revigora a crença na democracia. Assim como a independência de opinião dos juízes mostra o vigor de uma instituição em pleno funcionamento.
É esse, aliás, o significado mais importante do processo do mensalão. O Congresso levantou a questão com as CPIs, a Polícia Federal investigou, o Ministério Público controlou o inquérito e formulou as acusações, e o Supremo, depois de anos de dificultoso trabalho, está julgando.

A sociedade estava tão desabituada e descrente de tais procedimentos quando eles atingem gente poderosa que seu julgamento — coisa banal nas democracias avançadas — transformou-se em atrativo de TV e do noticiário, quase paralisando o país em pleno período eleitoral. Sinal de vida. Alvíssaras!

Não é a única novidade. Também nas eleições municipais o eleitorado está mandando recados aos dirigentes políticos. Antes da campanha acreditava-se que o “fator Lula” propiciaria ao PT uma oportunidade única para massacrar os adversários. Confundia-se a avaliação positiva do ex-presidente e da atual com submissão do eleitor a tudo que “seu mestre” mandar.

É cedo para dizer que não foi assim, pois as urnas serão abertas esta noite. Mas, ao que tudo indica, o recado está dado: foi preciso que os líderes aos quais se atribuía a capacidade milagrosa de eleger um poste suassem a camisa para tentar colocar seu candidato no segundo turno em São Paulo. Até agora o candidato do PT não ultrapassou nas prévias os minguados 20%.

No Nordeste, onde o lulismo com as bolsas-família parecia inexpugnável, a oposição leva a melhor em várias capitais. São poucos os candidatos petistas competitivos. Sejam o PSDB, o DEM, o PPS, sejam legendas que formam parte “da base”, mas que se chocam nestas eleições com o PT, são os opositores eleitorais deste que estão a levar vantagem.

No mesmo andamento, em Belo Horizonte, sob as vestes do PSB (partido que cresce), e em Curitiba são os governadores e líderes peessedebistas, Aécio Neves e Beto Richa, que estão por trás dos candidatos à frente. Em um caso podem vencer no primeiro turno, noutro no segundo.

Não digo isso para cantar vitória antecipadamente, nem para defender as cores de um partido em particular, mas para chamar a atenção para o fato de que há algo de novo no ar. Se os partidos não perceberem as mudanças de sentimento dos cidadãos e não forem capazes de expressá-las, essa possível onda se desfará na praia.

O conformismo vigente até agora, que aceitava os desmandos e corrupções em troca de bem-estar, parece encontrar seus limites. Recordo-me de quando Ulysses Guimarães e João Pacheco Chaves me procuraram em 1974, na instituição de pesquisas onde eu trabalhava, o Cebrap, pedindo ajuda para a elaboração de um novo programa de campanha para o partido que se opunha ao autoritarismo.

Àquela altura, com a economia crescendo a 8% ao ano, com o governo trombeteando projetos de impacto e com a censura à mídia, pareceria descabido sonhar com vitória. Pois bem, das 22 cadeiras em disputa para o Senado, o MDB ganhou 17. Os líderes democráticos da época sintonizaram com um sentimento ainda difuso, mas já presente, de repulsa ao arbítrio.

Faz falta agora, mirando 2014, que os partidos que poderão eventualmente se beneficiar do sentimento contrário ao oportunismo corruptor prevalecente, especialmente PSDB e PSB, disponham-se cada um a seu modo ou aliando-se a sacudir a poeira que até agora embaçou o olhar de segmentos importantes da população brasileira.

Há uma enorme massa que recém alcançou os níveis iniciais da sociedade de consumo que pode ser atraída por valores novos. Por ora atuam como “radicais livres” flutuando entre o apoio a candidatos desligados dos partidos mais tradicionais e os candidatos daqueles dois partidos.

Quem quiser acelerar a renovação terá de mostrar que decência, democracia e bem-estar social podem novamente andar juntos. Para isso, mais importante do que palavras são atos e gestos. Há um grito parado no ar. É hora de dar-lhe consequência.

sexta-feira, 5 de outubro de 2012

O plano perfeito - NELSON MOTTA



E se Roberto Jefferson não tivesse denunciado o mensalão, como estaria o Brasil hoje?

Pelo que o julgamento do Supremo Tribunal Federal está provando, o PT teria a maior e mais fiel base de apoio do Ocidente, maior até do que a velha Arena da ditadura, presidida por Sarney. Além dos cargos e boquinhas de sempre, os partidos aliados teriam suas despesas de campanha bancadas pelo PT. Assim, tanto nas votações no Congresso como nas eleições, não seria uma coalizão, mas um rolo compressor. A democracia perfeita de Lula e Dirceu.

Seria preciso apenas encontrar novas fontes de financiamento da operação, além dos empréstimos de araque de Marcos Valério no Banco Rural e no BMG e do desvio de dinheiro do Visanet, que não seriam suficientes para pagar as dívidas e as campanhas do PT, e as despesas crescentes com a voracidade da base aliada, que quanto mais come mais fome tem.

De onde sairia o dinheiro? Militantes do partido em postos-chave na administração pública facilitariam concorrências e superfaturariam campanhas publicitárias e eventos produzidos pelas agencias de Marcos Valério, que ficaria com uma parte do butim. Depois era só lavar o dinheiro na Bonus Banval e distribuí-lo aos aliados para garantir a governabilidade sem fazer concessões politicas e a aprovação de seus projetos que - eles tinham certeza - eram os melhores para o povo brasileiro.

Como Lula e Dirceu sabiam melhor que ninguém, pelo menos 300 picaretas estavam à venda no Congresso. Então, por que não comprá-los para servir ao governo do primeiro operário a chegar à Presidência, para atualizar e fazer as "reformas de base" que derrubaram Jango e Brizola em 1964? Era uma causa nobre, um velho sonho, um plano perfeito. Ou quase.

Mais do que um inútil exercício de retrofuturologia, imaginar as consequências funestas da continuidade do mensalão - que não ia parar ali, cresceria e envenenaria o Congresso, as campanhas eleitorais, a democracia e o Estado - serve para dar um suspiro de alívio e agradecer ao procurador-geral e aos ministros do Supremo Tribunal Federal. E ao gesto tresloucado de Roberto Jefferson.

quarta-feira, 3 de outubro de 2012

MARCELO COELHO A compaixão não basta



Em "Intocáveis" muitas cenas se constroem a partir da ignorância quase selvagem de Driss

O público ri bastante em "Intocáveis", filme de Eric Toledano e Olivier Nakache, em cartaz há algum tempo em São Paulo. É bem engraçada, sem dúvida, a sem-cerimônia, a mistura quase brasileira de pureza e malandragem revelada pelo personagem Driss (Omar Sy).
Ele é um imigrante africano com passagem pela polícia, que encontra emprego como cuidador do milionário Philippe (François Cluzet), tetraplégico depois de um acidente.
Muitas cenas se constroem a partir da ignorância quase selvagem, quase "rousseauniana", de Driss. Ele se espanta, por exemplo, com o preço altíssimo de uma obra de arte que lhe parece apenas uma série de respingos espalhados sobre a tela.
Em vários momentos, o filme recorre a um mesmo expediente cômico: Driss fecha questão sobre alguma tarefa que não irá desempenhar em hipótese nenhuma, para logo em seguida, depois de um corte, a plateia se divertir assistindo ao enfermeiro fazer exatamente aquilo que lhe tinha sido ordenado.
Imagino que, depois de algum tempo, a maior parte das tiradas do personagem tenham sido previstas pelos espectadores. Isso não importa muito, porque o riso é menos provocado pela surpresa do que pela simpatia.
A vontade de rir nasce do fato de que o próprio ator ri com uma facilidade maravilhosa, pelos motivos mais comuns. Driss tem um pouco do caipira, à la Mazzaropi, que fica de queixo caído ao ver o luxo de um banheiro e morre de medo de avião.
Para sorte dos espectadores, o tetraplégico de quem ele deve cuidar reduz a poucos minutos seus instantes de agonia e depressão. Prefere divertir-se com o empregado, assustando-o quando convém, enganando-o outras vezes, numa espécie de jogo intelectual.
Os dois, neste filme que é feito de pura felicidade e vida, saem ganhando muito do encontro. Baseando-se numa história real, ainda assim "Intocáveis" parece, não digo totalmente falso, mas um bocado artificial e construído.
Como em qualquer roteiro de "Sessão da Tarde", surgem pequenas dificuldades no meio do entrecho, apenas para que, superadas, o fim do filme seja especialmente satisfatório.
O encontro do bom selvagem e do aristocrata em fim de linha poderia ser mais caricato, em todo caso, se os diretores não soubessem que o clichê precisa ser maquiado para um público que já não é tão ingênuo assim.
Desse modo, o bom selvagem é também um sujeito de maus antecedentes, e seria preciso um ricaço muito especial para admiti-lo em sua própria mansão. Por isso mesmo, Philippe surge como alguém que gosta de se arriscar -tanto que se acidentou num voo de parapente. Prefere a emoção, a loucura e o imprevisto à rotina médica em que está encarcerado.
Nada disso, a rigor, fugiria das fórmulas mais batidas do cinema "independente". É o chamado filme "humano", com personagens em situações muito raras de acontecer, por trás de cuja estranheza sempre estarão pulsando sentimentos essenciais e bons.
Houve um momento em "Intocáveis", contudo, em que uma verdade, a meu ver, mais profunda, se deixa entrever.
É quando Philippe justifica, a um amigo, a escolha imprudente que fez. De todos os funcionários que cuidaram dele, Driss era o único, explica, que não lhe dirigia olhares de compaixão.
De fato, Driss tem sempre na ponta da língua alguma piada incorreta sobre tetraplégicos e chega a fazer experiências "científicas" com a insensibilidade nas pernas do seu paciente.
Falando sobre a velhice e a doença, Baudelaire evoca "o horror secreto" que existe no olhar dos que se dedicam aos inválidos. Pior ainda se lermos esse horror nos olhos de alguém que, no passado, desejáramos com avidez.
"Intocáveis" talvez traga com isso uma lição contra o "politicamente correto" e também contra os que o consideram uma hipocrisia.
Não é num espírito de compaixão (pelos pobres, pelos doentes) que surge um relacionamento humano autêntico. Nem mesmo num espírito de "respeito" convencional. Certamente, nada se pode esperar do contrário disso -do desrespeito, do desprezo, do preconceito.
O caminho, mais difícil, não nasce da superação forçada de uma assimetria. E sim da aproximação de duas misérias desiguais, de duas pobrezas diferentes, de duas dores incompatíveis, próprias a cada um, e que, sem trocarem de lugar, pertencem ao fundamento geral (e superável) da fragilidade humana.