domingo, 30 de outubro de 2011

Poema (Viviane Mosé)




quem tem olhos pra ver o tempo soprando sulcos na pele soprando sulcos na pele soprando sulcos?
o tempo andou riscando meu rosto
com uma navalha fina

sem raiva nem rancor
o tempo riscou meu rosto
com calma
  
(eu parei de lutar contra o tempo
ando exercendo instantes
acho que ganhei presença)


acho que a vida anda passando a mão em mim.
a vida anda passando a mão em mim.
acho que a vida anda passando.
a vida anda passando.
acho que a vida anda.
a vida anda em mim.
acho que há vida em mim.
a vida em mim anda passando.
acho que a vida anda passando a mão em mim


                      e por falar em sexo quem anda me comendo
é o tempo
na verdade faz tempo mas eu escondia
porque ele me pegava à força e por trás

um dia resolvi encará-lo de frente e disse: tempo
se você tem que me comer
que seja com o meu consentimento
e me olhando nos olhos

acho que ganhei o tempo
de lá pra cá ele tem sido bom comigo
dizem que ando até remoçando


terça-feira, 25 de outubro de 2011

A fórmula da felicidade (Mirian Goldenberg)




Uma boa vida depende da harmonia entre segurança e liberdade, mas não dá para ter as duas ao mesmo tempo


O filósofo polonês Zygmunt Bauman, aos 86 anos, deu uma belíssima entrevista para o projeto Fronteiras do Pensamento, no dia 25 de julho de 2011, em Londres.
Nela, esse pensador discute dilemas muito presentes no universo de homens e mulheres que tenho pesquisado nos últimos anos. Bauman afirma que há dois valores absolutamente indispensáveis para uma vida feliz. Um é a segurança, o outro é a liberdade. Para ele, não é possível ser feliz e ter uma vida digna e satisfatória na ausência de qualquer um dos dois. Segurança sem liberdade é escravidão. Liberdade sem segurança é caos.
Entretanto, ninguém, até hoje, encontrou a fórmula de ouro, a mistura perfeita entre segurança e liberdade. Cada vez que conseguimos mais segurança, entregamos um pouco da nossa liberdade. Quando temos mais liberdade, entregamos parte da nossa segurança.
Bauman cita "O Mal-Estar da Civilização", de Freud, para lembrar que a civilização é uma troca: sempre ganhamos e perdemos algo. Para Freud, os indivíduos entregaram liberdade demais em prol de segurança. Hoje, poderíamos ver o contrário: entregamos demais a nossa segurança em prol da liberdade.
Nunca iremos encontrar a solução perfeita, o equilíbrio do pêndulo que vai ou em direção à liberdade ou em direção à segurança, conclui Bauman. E esse é o nosso grande dilema: nunca iremos parar de procurar essa mina de ouro, pois queremos ter liberdade e segurança ao mesmo tempo.
Muitos filósofos contemporâneos consideram a vida de Sócrates como a mais perfeita que se possa imaginar. Bauman pergunta: o que isso significa? Significa que todos nós devemos imitar Sócrates e tentar ser iguais a ele? Não, ele responde. Ele não acredita em uma única maneira de ser feliz.
Justamente porque Sócrates considerava que o segredo da sua felicidade estava no fato de ele próprio, por sua própria vontade, ter criado a forma de vida que ele viveu.
As pessoas que imitam a forma de vida e o modelo de felicidade de outra pessoa não são como Sócrates. Pelo contrário, elas traem a receita de felicidade dele. Precisamente porque o segredo de Sócrates pode ser traduzido de uma maneira simples: para cada ser humano há um mundo perfeito a ser construído especialmente para ele. Um mundo perfeito para cada indivíduo a ser inventado por cada um de nós.
Então, o que é mais importante para a sua felicidade? Liberdade ou segurança?

sexta-feira, 21 de outubro de 2011

DAVID COIMBRA - O maior medo do homem


Não é a morte o que mais assusta o homem. É o acaso. Contra o acaso, o homem constrói sistemas de pensamento, filosofias, mitologias, religiões. Para se proteger do acaso, o homem criou Deus. Aí está: o homem se diz criatura, quando é o criador.

Mas crentes e carolas não precisam se ouriçar, não estou pregando o ateísmo. Porém, é preciso entender que, ainda que Deus exista, Ele continuará sendo uma abstração. A ideia de Deus tem de ser aprendida. E, se tem de ser aprendida, tem de ser concebida. Criada. Logo, Deus é criatura. Zeus, Amon, Jeová, Astarte, Cibele, Alá, Tupã, seja qual for o nome do ser divino, ele tem de ser concebido pelo homem, junto com sua mitologia.

E por que o homem teve de criar Deus? Por que existe essa necessidade em todo lugar e em todo tempo? Exatamente para que o homem possa se defender do acaso. O acaso é tão apavorante, que o homem criou até o diabo para combatê-lo.

É preferível enfrentar uma legião de demônios com intenções bem claras e regras de comportamento definidas do que simplesmente cogitar a hipótese de que as coisas possam acontecer sem que sejam movidas por razão alguma.

Você precisa encontrar um desígnio oculto por trás de qualquer ocorrência da sua vida. Toda consequência teve uma causa. E, se toda consequência tem uma causa, em tudo podem ser vistos méritos e culpas. Você faz tudo certinho, age bem, é uma boa pessoa, não faz nada de errado?

O Todo-Poderoso o recompensará com uma vida venturosa. Você faz coisas erradas, oprime o próximo e rouba a merenda escolar das criancinhas? Você será punido em algum momento, você não perde por esperar as terríveis consequências de seus atos.

É assim que deveria ser, se o acaso não existisse. Se o mundo fosse justo. Mas o acaso existe. Mas o mundo não é justo. Coisas ruins acontecem a todo momento com pessoas que não merecem sofrer. Coisas boas acontecem a todo momento com pessoas que não merecem a felicidade.

Canalhas são homenageados, incompetentes ganham aumento, oportunistas usufruem da fama, cofres caem do oitavo andar, vírus são contraídos pelo ar, rádios tocam axé a cada minuto. A vida é cheia de perigos e você não pode fazer nada para evitá-los. O mundo está repleto de cafajestes e muito provavelmente a maioria deles jamais será punida. Não adianta rezar. Não adianta cultivar superstições. Não adianta esperar pela intervenção transcendental.

Adianta, um pouco, prevenir-se. Pessoalmente, há muitas formas de prevenção. A principal delas é zelar pela saúde. Comunitariamente, o Estado tem a função de fazer a prevenção. No caso de o Estado estar acometido de alguns desses males, como a corrupção endêmica brasileira, só se pode, mesmo, fiscalizar.

E a fiscalização só é viável quando ocorre em âmbito municipal, quando o cidadão encontra a autoridade na farmácia, no supermercado, na igreja, no estádio de futebol, e o olha na cara, e cobra, com o mero olhar, o efeito de seus atos. A municipalização não tem poder divino, não evita a corrupção, não impede a ação de cafajestes nem as tramas incompreensíveis do acaso. Mas ajuda a preveni-los. 

segunda-feira, 17 de outubro de 2011

DANUZA LEÃO - Falando de igualdade


A humanidade não pode ser dividida entre homens e mulheres -ela é constituída de pessoas


Em breve teremos um novo ministro no Supremo Tribunal Federal -aliás, quanta demora- e a presidente Dilma deverá escolher entre quatro nomes cotados para o cargo. Nenhum homem faz parte da lista.
Muito bonito dar força às mulheres, nomeá-las para cargos importantes, mostrar ao mundo que o Brasil acredita na igualdade dos sexos etc. e tal; mas menos, presidente, menos.
Não é possível que no país inteiro só existam quatro pessoas com capacidade para exercer o cargo de juiz do STF, e que as quatro sejam mulheres. Aliás, já está mais do que na hora desses ministros serem nomeados por outros critérios, não por escolha pessoal do presidente em exercício (e indicações dos aliados), nem é preciso dizer por que.
Quantas ministras temos no governo? São nove ou dez, fora as que exercem altos postos na administração -e já tem uma prontinha para ser nomeada para um ministério que ainda está sendo criado; até agora são 39, será que não chega?
Lembro de quando Dilma tomou posse; havia mulheres seguindo (correndo) o carro que levava a presidente rumo ao Palácio do Planalto. Sugestão: trocar a guarda que fica na rampa do palácio -aquela que usa um capacete com plumas- por exemplares do sexo feminino. Aliás, o modelito combinaria.
Esse excesso de proteção é incômodo; há, nas entrelinhas, um ranço antigo, como se as mulheres não tivessem capacidade para conduzir suas vidas, seja isso lá o que for. Só que elas têm sim; têm capacidade para dirigir um caminhão na estrada, um Boeing, para terem altos cargos na Segurança Pública, para presidir o FMI, e até para serem eleitas presidente de um país.
Essa proteção exagerada, essas nomeações exageradas -e o discurso insistente da presidente- as faz parecer crianças incompetentes, frágeis, incapazes, que precisam de "uma força" para chegar a alguma coisa. Mentalidade mais velha do que a Sé de Braga, e mais 1970, impossível.
Não adianta existir uma lei obrigando os partidos a terem 20% de candidatos do sexo feminino; se poucas se candidatam a cargos eletivos, é porque não querem, elas têm esse direito.
As leis, ah, as leis; não existe uma que proíbe roubar? E onde estão os ministros -e aquela ministra, lembra?- que fizeram recentes "malfeitos"? Alguém sabe se está rolando uma sindicância, um processo, se algum dia vamos saber em que deu tudo que um dia foi manchete? Silêncio absoluto.
Essa história de fazer discursos sobre as conquistas femininas ficou velha, e a humanidade não pode ser dividida entre homens e mulheres; ela é constituída de pessoas. Pessoas essas que deveriam ter o direito, garantido pela Constituição, às coisas mais elementares, e no lugar desse blábláblá, seria melhor cuidar do que é essencial. Desculpem, mas vou repetir o óbvio: saúde, segurança, educação.
O Brasil é -deveria ser- um país livre, onde as mulheres podem fazer tudo, inclusive posar para uma publicidade de sutiã e calcinha, sem que isso se torne um problema de Estado.
É triste, mas a verdade é que os mais fortes serão sempre os vencedores, independentemente do sexo a que pertencem, e discurso algum vai mudar isso. O mundo sempre foi regido pela lei da selva, das savanas da África a Wall Street, e assim continuará sendo.
Modernize-se, presidente. 

domingo, 16 de outubro de 2011

CONVERSA DE HOMEM ( Fabrício Carpinejar)



"Quero ver se é homem", "diz que é homem", "se não fizer isso, não é homem", "tá parecendo um boiola".

Desde fedelho, o homem perde décadas de sua vida comprovando sua masculinidade. Com os amigos da escola, dentro de casa, na rua com as meninas, na fase adulta com as mulheres e os amigos do trago.

Ele é testado todo momento. Na balada ou no churrasco. Na rua ou no estádio. Ser homem não é natural, é um condicionamento. Um exame infindável de testosterona intelectual. Uma provação incessante, que se inicia nas brigas infantis e não termina com a morte.

Quem já não teve uma mulher em sua história que gritou: "Você não é homem!"? Só para irmos lá e arrancarmos um beijo na boca. Não é triste ser submetido a um concurso público da própria condição?

Observe uma roda de amigos num bar. Haverá provocações de quem é mais macho no grupo. Piadas involuntárias, sempre colocando em dúvida a conduta sexual. Colegas se ofendem como uma forma de amizade.

É uma armadilha. Como o homem pode exercitar sua sensibilidade, obrigado a reiterar seu sexo eternamente? Ele passa maior parte de seus dias se defendendo. Confunde camaradagem com redundância. O que o transforma num IDIOTA, pois se repete e repete sem parar as insinuações coletivas. Como é possível manter as mesmas refregas do jardim de infância à universidade? O homem não ousa, não investe, não contraria o perfil pré-estabelecido para descobrir o que gosta e contar como gosta.

Dói ser homem, é cansativo ser homem. Sim, os homens têm facilidades: mijar de pé. Falei facilidades, retiro, o homem tem uma facilidade: mijar de pé. Ele é adestrado para ser influenciável e sofrer com as comparações. Será comparado ao pai, aos colegas, aos ex-namorados, aos sogros, aos filhos, aos ex-maridos, e, ultimamente, aos cachorros.

Ele não se regra pela intuição, ele se situa pelos outros. Batendo nos ombros, nas costas, exercendo os cumprimentos aos empurrões, ameaçando com indiretas e fiscalizando quem demonstra sair da linha. Homem vive denunciando seus iguais para não revelar seus segredos. Homem é delator. Homem nunca está em si de tanto que espia e controla seus vizinhos.

Na escola, as conversas apenas giravam em peitos, bundas e buceta. JURO. Eu nem tinha condições de comentar alguma coisa. Minha experiência era quase nula. Avaliando bem, era nula. Das páginas médicas da Barsa. Mas era formado a tratar a trinca erótica com vulgaridade. Caso não soltasse um palavrão, não seria aceito.

Ser aceito e se aceitar são coisas bem diferentes. Na infância, meus amigos ou se reuniam para o futebol ou para comentar detalhes sórdidos. Eu não tinha o que acrescentar ao assunto. Demandava um tremendo esforço para não ser localizado como marica. O segundo grau seguiu a mesma sina. Amigos chegavam a ficar debaixo da cama enquanto casal de colegas transava. Claro, com o consentimento do cara, que enrolava a menina no discurso para não identificar os penetras. Logo a menina era classificada como piranha e o comedor, herói. Com pastelina e coca-cola, narrava o que ela aprontou ou deixou de aprontar.

Os homens aceitaram sua burrice. Reforçam seus preconceitos e fobias porque é complicado alterar a virilidade adquirida pela insistência vocabular.

A noção de que todo gay é promíscuo provém de uma teoria machista, porque os homens temem no raso e no fundo os próprios gays que são. Os gays não pensam sempre em sexo (os homens pensam muito mais). Ao pensar somente em sexo, empobrecemos o sexo. O gay tem a liberdade de dizer o que sente, o homem é obrigado a sentir o que dizem e esperam dele.

Além disso, os gays são mais fiéis do que os próprios homens. Quantos casais gays demonstram uma lealdade que não se encontra num par heterossexual? Lembrei de cinco casais amigos antes de completar a frase.

Aviso: esse é o nervo. A inteligência gay deixa espaço e disponibilidade para exercitar seus gostos. Por isso, os gays são melhores amigos das mulheres, tem um temperamento mais refinado, um humor mais espirituoso, um desembaraço invejável para dançar, chorar e se alegrar.

Gay não precisa demonstrar que é gay. Mulher não precisa demonstrar que é mulher.

O homem é treinado a pensar em sexo ou a pensar que é homem. Não sobra tempo para amadurecer. Ele terá que decidir entre se exaurir e se renovar.

Minha alma não é feminina, desculpe a decepção. Como se a sensibilidade unicamente fosse elogiosa sendo feminina. Se a sensibilidade é feminina é mais. Se a sensibilidade é masculina é menos.

Homem sofre, homem geme, homem erra, homem ama escandalosamente.

Minha alma é masculina, o que me faz sensível para não provar mais nada. 

 

sexta-feira, 14 de outubro de 2011

A falta que faz um GPS afetivo (Humberto Werneck)


Não me leve a mal se a gente se encontrar por aí e eu não lhe perguntar por seu - com o perdão da palavra - cônjuge ou assemelhado. Aquela criatura, enfim, que me habituei a ver na sua companhia.
Não sei se você já reparou, mas faz um tempo que não peço a ninguém notícias do respectivo ou respectiva. Acabei traumatizado pelas coisas que ouvi nessas ocasiões. Aquele(a) isso-assim-assim?! - e tome regurgitação do pote-até-aqui-de-mágoa, vomitório verbal de fel pós-conjugal, às vezes relatos de farpado mau gosto. Estou escaldado. Mas como não dá para simplesmente fechar o bico, pois poderia passar a impressão de desinteresse, o jeito foi fazer como certo jornalismo hoje em voga: um mínimo de texto. O máximo que você ouvirá de mim será uma indagação vaga, jamais nominal: e o pessoal lá?
A fórmula, admito, nem sempre resolve o problema. O interlocutor pode perguntar: que pessoal? E pode ser ainda que, não havendo mais um pessoal, minha pergunta venha expor fraturas no ego. Ah, tem acontecido. Houve mesmo quem, em lágrimas, literalmente se dependurasse no meu calejado ombro amigo.

Por coisas assim, estou chegando à conclusão de que seria útil criar um serviço, público ou não, que nos permita saber, sem necessidade de indagações, como anda a movimentação amorosa ou conjugal de amigos e conhecidos. Que nos permita trafegar, sem risco de atropelamentos e colisões, na barafunda da paisagem afetiva. Não existe GPS? Por que não um GPS antigafes? Aí já não falo só de cônjuges ou assemelhados, mas também de gente avulsa que possa ter se desentendido com amigos. Eles romperam, mas você não soube.

Concretamente, esse GPS poderia consistir num site com informações atualizadas a respeito de namoros, casamentos, rolos e outros arranjos possíveis entre duas (ou mais) pessoas. Você topa com uma delas e saca logo o celular: peraí, minutinho, chegou aqui uma mensagem urgente que eu estava esperando - e, via internet, faz consulta para saber se é o caso de perguntar por alguém que, no terreno amoroso do interlocutor, seja morador, posseiro ou frequentador eventual.

Deus sabe os apertos que tenho passado por falta de um instrumento assim. Outro dia mesmo, num encontro com o Marcos, depois de um bocado de tempo sem vê-lo, nem sei como sopitei a vontade de perguntar pela mulher dele. Corri o risco de passar por grosseiro. Só vários chopes adiante fiquei sabendo que, depois de duas separações que não deram certo, o casal está vivendo mais uma recaída conjugal. Se já tivessem lançado o tal GPS afetivo, eu teria, de cara, visto na telinha do celular um sinal verde para perguntar pela mulher do meu amigo.

Você vai me dizer que o dispositivo já existe, e que no Facebook, por exemplo, é possível se informar sobre a situação habitacional nos corações alheios. Mas para mim não basta saber que fulano ou fulano está "em um relacionamento sério" (até porque, conforme registrei lá, sou mais "um relacionamento divertido"). Não é voyeurismo não, mas quero, se não detalhes, ao menos nomes. Um quadro mais completo das situações vigentes. Quadro mesmo, cheio de campos; imagine obra de um RH, mas não desses que há por aí: um RH positivo, em cujas planilhas, atualizadas em tempo real, se pudesse saber se alguém está na coluna "comprometido", "desimpedido", "em transição", "dando um tempo", "tico-tico no fubá", "chuteiras penduradas" etc. O GPS afetivo nos guiaria, como esses que orientam os motoristas, e além disso informaria a eventuais interessados se o semáforo está verde, vermelho ou amarelo.

Em alguns casos, é verdade, a atualização do quadro daria trabalho. O daquele amigo, por exemplo, de quem já contei as agruras, incapaz de informar de bate-pronto qual é a sua situação conjugal. Ele se sente casado com o que chama de "mulher bumerangue": se a demite de manhã, à noite ela propõe um cineminha, pois jamais lê bilhetes azuis. O que o levou a concluir, desalentado: às vezes é mais fácil passar alguém para trás do que para a frente...

segunda-feira, 10 de outubro de 2011

Patético (LUIZ FELIPE PONDÉ )




Desconfio de quem diz não dar valor ao dinheiro; normalmente se trata de uma falsa santidade

O QUE é mais importante na vida: ter ou ser? O que adianta ganhar o mundo e perder a alma? Para aqueles que não creem na alma, pode ser uma boa, não?
Se a vida não tiver sentido, quero passá-la num hotel cinco estrelas com uma mulher bonita do lado. E elas são caras. Amaldiçoados somos todos nós, mas é melhor ser infeliz com grana.
Sou do time de Nelson Rodrigues (em tudo): dinheiro só compra amor verdadeiro.
Uma forma fácil de você fingir que é legal é passar por alguém “superior” ao dinheiro. Eu, que sou um miserável mortal, confesso: adoro dinheiro. E confio mais em quem confessa que faria (quase tudo) por dinheiro. Desconfio de quem diz não dar valor ao dinheiro. Normalmente se trata de uma falsa santidade.
Os cínicos costumam dizer que perder a alma pode ser divertido se você tiver bastante grana.
Outros afirmam que só quem pode comprar tudo o que o dinheiro pode comprar sabe o que o dinheiro não pode comprar. Lembremos a excelente campanha publicitária do Mastercard “priceless”: só quem tem Mastercard sabe o que não tem preço. Promessas de pobres sobre a própria integridade são bravatas. Quando você não tem nada, é fácil dizer que não dá valor a nada.
Diante de questões como essas, gosto de citar uma passagem (supostamente verdadeira) da vida de Napoleão Bonaparte, o cavaleiro da modernidade.
Napoleão estaria conversando com o czar da Rússia sobre o futuro das relações entre a França revolucionária e a Rússia quando o czar disse (um tanto horrorizado com a “gula pelo poder” daquele falso imperador Napoleão, um reles novo rico): “Eu luto pela honra, o senhor luta por dinheiro”. Ao que Napoleão teria respondido: “Cada um luta pelo que não tem”.
Suspeito que muito do desprezo por dinheiro é na realidade falsa virtude. E falsa virtude é uma das qualidades humanas mais democráticas: todo mundo tem. É sempre chique você desprezar dinheiro e acusar de ganancioso quem não o faz. Mas a verdade é que dinheiro nunca é apenas dinheiro. Faz parte da estratégia da falsa virtude dizer que é.
Dinheiro traz consigo amigos, mulheres, poder, satisfação, emoções, restaurantes bons, reconhecimento, segurança, remédios, psicoterapia, tempo livre, cultura, arte, vida familiar estável, boas casas, lareiras, vinho francês, férias, bons hotéis, filhos felizes, mulheres generosas na cama, sorrisos largos, poesia, romances avassaladores em cenários paradisíacos, uma maior expectativa de vida.
Fala-se muito dos ganhos da ciência, mas estes só foram possíveis porque a indústria farmacêutica existe e ganha dinheiro “vendendo” mais expectativa de vida e daí reinveste na pesquisa.
Adultos infantis dizem: “Maldita seja a indústria farmacêutica!”. Quero ver quando eles precisarem de remédios. Claro que grana não impede você de ter um câncer, mas pode garantir mais acesso à quimioterapia, a melhores hospitais e a médicos mais atenciosos. Claro que você pode deprimir numa BMW, mas ainda assim você estará numa BMW, não? Coitado de você, tão triste numa BMW…
Sou do time de Nelson Rodrigues (em tudo): dinheiro só compra amor verdadeiro. Só almas superficiais não têm um preço. Só elas não sabem de nossa tragédia: sempre estivemos à venda.
Haveria algo que dinheiro não compra? Amizade sincera, fidelidade, felicidade? Uma grande desgraça na vida é que, sim, você pode ter muita grana, mas não ter nada disso. Mas dificilmente a culpa será do dinheiro. Este sempre facilita as coisas e não o contrário.
A maior parte daqueles que falam mal do dinheiro é porque simplesmente não o tem. E aí está a falsa virtude, aquela mesma que atrapalha qualquer “crítica” verdadeira a um mundo miseravelmente submetido ao dinheiro. Os que se afirmam livres do desejo pelo vil metal são os piores quando têm a chance de tê-lo. Só quem abre mão da própria vida está acima do dinheiro, o resto é conversa mole.
Dinheiro reúne em si todas as qualidades humanas. Brilha, emociona, trai, acumula, se vinga, projeta, constrói, destrói, oprime, esmaga, ergue, resolve e cria problemas, sufoca, faz respirar, faz chorar, faz promessas, mente.
Cheio de paixões, patético, como você e eu.

quinta-feira, 6 de outubro de 2011

O sentido faz falta? (Contardo Caligaris)




A gente procura um sentido para a vida somente quando o cotidiano perde sua graça e seu encanto


É uma queixa frequente: o mundo e a vida fazem pouco sentido -muito menos sentido do que antigamente, completam os saudosistas. Nas famílias, às vezes, essa queixa produz uma espécie de pingue-pongue. Os pais acham que os filhos adolescentes vivem por inércia, sem rumo e projeto: "Eles não estão a fim de nada que preste, não têm uma causa, uma visão de futuro".
Os filhos, confrontados com essa preocupação dos pais, declaram que, se precisassem mesmo de um sentido para viver, certamente não é com os pais que eles o aprenderiam: "Mas qual sentido gostariam que eu escolhesse para minha vida, se a vida deles não tem nenhum?". Nesse diálogo, o sentido parece ser sempre o que falta na vida dos outros que criticamos.
Também existem indivíduos (adolescentes e adultos) que se queixam da falta de sentido em sua própria vida: "Viver para quê? Todo o mundo vai morrer de qualquer jeito; que sentido tem?".
Geralmente, ao procurar responder a essas constatações desconsoladas, amigos, parentes e terapeutas agem como os pais que mencionei antes: querem injetar uma causa, uma visão de futuro na vida de quem lhes parece ter perdido o rumo "necessário" para viver.
Agora, eu não estou convencido de que, para viver, seja necessário que a vida tenha um sentido. Quando alguém se queixa de que sua vida é sem sentido, não tento interessá-lo em grandes razões para viver. Prefiro perguntar (para ele e para mim mesmo) de onde surge tamanha necessidade de um sentido. É curioso que, para alguns, a existência precise de uma justificação, de uma razão, de uma causa, de uma visão de futuro.
Em regra, essa necessidade de justificar a vida se impõe quando a própria vida não se basta mais. Ou seja, é quando os gestos cotidianos perdem sua graça que surge a obrigação de fundamentar a vida por outra coisa do que ela mesma.
Nota clínica: a depressão não é o mal de quem teria perdido (ou nunca achado) uma grande razão para viver. Depressão é ter perdido (ou nunca encontrado) o encanto do cotidiano. Por consequência, tentar "curar" a depressão de um adolescente propondo-lhe militância política ou fé religiosa é nocivo: se a gente conseguir capturá-lo num grande projeto, esse mesmo projeto o afastará ainda mais da trivialidade do dia a dia, cujo encanto ele perdeu.
Resumindo, quando alguém se queixa de que a vida não tem sentido, o problema não é ajudá-lo a encontrar o tal sentido da vida, mas ajudá-lo a descobrir que a vida se justifica por si só, que ela pode ser seu próprio sentido.
A cultura moderna poderia ser dividida em dois grandes blocos (que não coincidem com as tradicionais divisões de esquerda vs. direita etc.): os que pensam que o sentido da vida não está na própria experiência de viver (mas na espera de um além, num projeto histórico etc.), e os que pensam que a experiência de viver, por mais transitória que seja, é todo o sentido do qual precisamos (nota: a psicanálise, inesperadamente, está nesse segundo grupo, por constatar que a gente sofre mais frequente e gravemente pelo excesso do que pela falta de um sentido).
Alguém dirá que, com o declínio das utopias políticas e algum avanço (talvez) do pensamento laico, o sentido da vida está em baixa. Em suma, eu estaria chutando um cachorro morto.
Não concordo: talvez a própria crise das utopias e de algumas religiões instituídas esteja reavivando uma espiritualidade que tenta sacralizar o mundo, prometendo, no mínimo, sentidos ocultos.
O esoterismo "new age" nos garante que a vida tem um sentido misterioso, que a gente nem precisa saber qual é. Melhor assim, não é? Acabo de ler um breve (e delicioso) ensaio do filósofo italiano Giorgio Agamben, "La Ragazza Indicibile" (a moça indizível, Electa, 2010). Agambem (retomando um ensaio de Jung e Kerényi, de 1941, sobre Koré, a moça sagrada -Perséfone na mitologia clássica) mostra que os mistérios de Eleusis (que são os grandes ascendentes do esoterismo ocidental) de fato não revelavam nenhum grande sentido escondido das coisas e da vida -a não ser talvez o sentido de uma risada diante do pouco sentido do mundo.
Ele conclui com a ideia de que podemos e talvez devamos "viver a vida como uma iniciação. Mas uma iniciação ao quê? Não a uma doutrina, mas à própria vida e à sua ausência de mistério".

quarta-feira, 5 de outubro de 2011

FABRÍCIO CARPINEJAR - Falso brilhante


Há o condicionamento de que amor mesmo, de verdade, é gastar metade do salário para a esquadrilha da fumaça assinar o nome da namorada pelos céus de Porto Alegre.

Temos uma noção de que amor mesmo, de verdade, é exibicionista. Depende de surpresas públicas de afeto como serenata na janela, carro de som, anúncios na TV, outdoors com pedido de casamento.

Mulheres e homens se desesperam por um amor público, encantado, de estádio cheio, e cobram provas mirabolantes de seus parceiros. Reclamam da rotina, da previsibilidade, e exigem declarações barulhentas para despertar a inveja do próximo.

O amor espalhafatoso recebe a fama, mas o amor contido é o mais profundo.

Ao procurar o amor empresarial, desprezamos o amor funcionário público, que atende às ligações e escreve nossos memorandos.

Ao perseguir o amor de cinema, desdenhamos o amor de teatro, de quem encena a peça todo dia ao nosso lado, sempre com uma interpretação nova a partir das falas iguais.

Ao cobiçar o amor sensual de lareira e restaurante, apagamos a delícia de comer direto nas panelas, sem pratos, sem medo do garçom.

Ao perseguir a aventura, negamos a permanência.

Preocupados em ser reconhecidos mais do que amar, esquecemos a verdade pessoal e despojada do nosso relacionamento. Recusamos o amor constante, o amor cúmplice.

Não valorizamos a passionalidade silenciosa, a passionalidade humilde, a passionalidade generosa, a passionalidade tímida, a passionalidade artesanal.

O passional pode ser discreto na aparência e prático na ternura.

O amor mais contundente é o que não precisa ser visto para existir. E continuará sendo feito apesar de não ser reparado.

O amor real é secreto. É conservar um pouco de amor platônico dentro do amor correspondido. É reservar as gavetas do armário mais acessíveis para as roupas dela, é deixar que sua mulher tome a última fatia da pizza que você mais gosta, é separar as roupas de noite para não acordá-la de manhã. E nunca falar que isso aconteceu. E não jogar na cara qualquer ação. E não se vangloriar das próprias delicadezas.

Buscá-la no trabalho é o equivalente a oferecer um par de brilhantes. Esperá-la com comida pronta é o equivalente a acolhê-la com um buquê de rosas vermelhas.

São demonstrações sutis, que não dá para contar para os outros, mas que contam muito na hora de acordar para enfrentar a vida.

terça-feira, 4 de outubro de 2011

Eliane Brum: nossos filhos não merecem nada




Ao conviver com os bem mais jovens, com aqueles que se tornaram adultos há pouco e com aqueles que estão tateando para virar gente grande, percebo que estamos diante da geração mais preparada – e, ao mesmo tempo, da mais despreparada.
 
Por Eliane Brum*, na Época


Preparada do ponto de vista das habilidades, despreparada porque não sabe lidar com frustrações. Preparada porque é capaz de usar as ferramentas da tecnologia, despreparada porque despreza o esforço. Preparada porque conhece o mundo em viagens protegidas, despreparada porque desconhece a fragilidade da matéria da vida. E por tudo isso sofre, sofre muito, porque foi ensinada a acreditar que nasceu com o patrimônio da felicidade. E não foi ensinada a criar a partir da dor. 

Há uma geração de classe média que estudou em bons colégios, é fluente em outras línguas, viajou para o exterior e teve acesso à cultura e à tecnologia. Uma geração que teve muito mais do que seus pais. Ao mesmo tempo, cresceu com a ilusão de que a vida é fácil. Ou que já nascem prontos – bastaria apenas que o mundo reconhecesse a sua genialidade. 

Tenho me deparado com jovens que esperam ter no mercado de trabalho uma continuação de suas casas – onde o chefe seria um pai ou uma mãe complacente, que tudo concede. Foram ensinados a pensar que merecem, seja lá o que for que queiram. E quando isso não acontece – porque obviamente não acontece – sentem-se traídos, revoltam-se com a “injustiça” e boa parte se emburra e desiste. 

Como esses estreantes na vida adulta foram crianças e adolescentes que ganharam tudo, sem ter de lutar por quase nada de relevante, desconhecem que a vida é construção – e para conquistar um espaço no mundo é preciso ralar muito. Com ética e honestidade – e não a cotoveladas ou aos gritos. Como seus pais não conseguiram dizer, é o mundo que anuncia a eles uma nova não lá muito animadora: viver é para os insistentes. 

Por que boa parte dessa nova geração é assim? Penso que este é um questionamento importante para quem está educando uma criança ou um adolescente hoje. Nossa época tem sido marcada pela ilusão de que a felicidade é uma espécie de direito. E tenho testemunhado a angústia de muitos pais para garantir que os filhos sejam “felizes”. Pais que fazem malabarismos para dar tudo aos filhos e protegê-los de todos os perrengues – sem esperar nenhuma responsabilização nem reciprocidade. 

É como se os filhos nascessem e imediatamente os pais já se tornassem devedores. Para estes, frustrar os filhos é sinônimo de fracasso pessoal. Mas é possível uma vida sem frustrações? Não é importante que os filhos compreendam como parte do processo educativo duas premissas básicas do viver, a frustração e o esforço? Ou a falta e a busca, duas faces de um mesmo movimento? Existe alguém que viva sem se confrontar dia após dia com os limites tanto de sua condição humana como de suas capacidades individuais? 

Nossa classe média parece desprezar o esforço. Prefere a genialidade. O valor está no dom, naquilo que já nasce pronto. Dizer que “fulano é esforçado” é quase uma ofensa. Ter de dar duro para conquistar algo parece já vir assinalado com o carimbo de perdedor. Bacana é o cara que não estudou, passou a noite na balada e foi aprovado no vestibular de Medicina. Este atesta a excelência dos genes de seus pais. Esforçar-se é, no máximo, coisa para os filhos da classe C, que ainda precisam assegurar seu lugar no país. 

Da mesma forma que supostamente seria possível construir um lugar sem esforço, existe a crença não menos fantasiosa de que é possível viver sem sofrer. De que as dores inerentes a toda vida são uma anomalia e, como percebo em muitos jovens, uma espécie de traição ao futuro que deveria estar garantido. Pais e filhos têm pagado caro pela crença de que a felicidade é um direito. E a frustração um fracasso. Talvez aí esteja uma pista para compreender a geração do “eu mereço”. 

Basta andar por esse mundo para testemunhar o rosto de espanto e de mágoa de jovens ao descobrir que a vida não é como os pais tinham lhes prometido. Expressão que logo muda para o emburramento. E o pior é que sofrem terrivelmente. Porque possuem muitas habilidades e ferramentas, mas não têm o menor preparo para lidar com a dor e as decepções. Nem imaginam que viver é também ter de aceitar limitações – e que ninguém, por mais brilhante que seja, consegue tudo o que quer. 

A questão, como poderia formular o filósofo Garrincha, é: “Estes pais e estes filhos combinaram com a vida que seria fácil”? É no passar dos dias que a conta não fecha e o projeto construído sobre fumaça desaparece deixando nenhum chão. Ninguém descobre que viver é complicado quando cresce ou deveria crescer – este momento é apenas quando a condição humana, frágil e falha, começa a se explicitar no confronto com os muros da realidade. Desde sempre sofremos. E mais vamos sofrer se não temos espaço nem mesmo para falar da tristeza e da confusão. 

Me parece que é isso que tem acontecido em muitas famílias por aí: se a felicidade é um imperativo, o item principal do pacote completo que os pais supostamente teriam de garantir aos filhos para serem considerados bem sucedidos, como falar de dor, de medo e da sensação de se sentir desencaixado? Não há espaço para nada que seja da vida, que pertença aos espasmos de crescer duvidando de seu lugar no mundo, porque isso seria um reconhecimento da falência do projeto familiar construído sobre a ilusão da felicidade e da completude. 

Quando o que não pode ser dito vira sintoma – já que ninguém está disposto a escutar, porque escutar significaria rever escolhas e reconhecer equívocos – o mais fácil é calar. E não por acaso se cala com medicamentos e cada vez mais cedo o desconforto de crianças que não se comportam segundo o manual. Assim, a família pode tocar o cotidiano sem que ninguém precise olhar de verdade para ninguém dentro de casa. 

Se os filhos têm o direito de ser felizes simplesmente porque existem – e aos pais caberia garantir esse direito – que tipo de relação pais e filhos podem ter? Como seria possível estabelecer um vínculo genuíno se o sofrimento, o medo e as dúvidas estão previamente fora dele? Se a relação está construída sobre uma ilusão, só é possível fingir. 

Aos filhos cabe fingir felicidade – e, como não conseguem, passam a exigir cada vez mais de tudo, especialmente coisas materiais, já que estas são as mais fáceis de alcançar – e aos pais cabe fingir ter a possibilidade de garantir a felicidade, o que sabem intimamente que é uma mentira porque a sentem na própria pele dia após dia. É pelos objetos de consumo que a novela familiar tem se desenrolado, onde os pais fazem de conta que dão o que ninguém pode dar, e os filhos simulam receber o que só eles podem buscar. E por isso logo é preciso criar uma nova demanda para manter o jogo funcionando. 

O resultado disso é pais e filhos angustiados, que vão conviver uma vida inteira, mas se desconhecem. E, portanto, estão perdendo uma grande chance. Todos sofrem muito nesse teatro de desencontros anunciados. E mais sofrem porque precisam fingir que existe uma vida em que se pode tudo. E acreditar que se pode tudo é o atalho mais rápido para alcançar não a frustração que move, mas aquela que paralisa. 

Quando converso com esses jovens no parapeito da vida adulta, com suas imensas possibilidades e riscos tão grandiosos quanto, percebo que precisam muito de realidade. Com tudo o que a realidade é. Sim, assumir a narrativa da própria vida é para quem tem coragem. Não é complicado porque você vai ter competidores com habilidades iguais ou superiores a sua, mas porque se tornar aquilo que se é, buscar a própria voz, é escolher um percurso pontilhado de desvios e sem nenhuma certeza de chegada. É viver com dúvidas e ter de responder pelas próprias escolhas. Mas é nesse movimento que a gente vira gente grande.

Seria muito bacana que os pais de hoje entendessem que tão importante quanto uma boa escola ou um curso de línguas ou um Ipad é dizer de vez em quando: “Te vira, meu filho. Você sempre poderá contar comigo, mas essa briga é tua”. Assim como sentar para jantar e falar da vida como ela é: “Olha, meu dia foi difícil” ou “Estou com dúvidas, estou com medo, estou confuso” ou “Não sei o que fazer, mas estou tentando descobrir”. Porque fingir que está tudo bem e que tudo pode significa dizer ao seu filho que você não confia nele nem o respeita, já que o trata como um imbecil, incapaz de compreender a matéria da existência. É tão ruim quanto ligar a TV em volume alto o suficiente para que nada que ameace o frágil equilíbrio doméstico possa ser dito. 

Agora, se os pais mentiram que a felicidade é um direito e seu filho merece tudo simplesmente por existir, paciência. De nada vai adiantar choramingar ou emburrar ao descobrir que vai ter de conquistar seu espaço no mundo sem nenhuma garantia. O melhor a fazer é ter a coragem de escolher. Seja a escolha de lutar pelo seu desejo – ou para descobri-lo –, seja a de abrir mão dele. E não culpar ninguém porque eventualmente não deu certo, porque com certeza vai dar errado muitas vezes. Ou transferir para o outro a responsabilidade pela sua desistência. 

Crescer é compreender que o fato de a vida ser falta não a torna menor. Sim, a vida é insuficiente. Mas é o que temos. E é melhor não perder tempo se sentindo injustiçado porque um dia ela acaba. 

* Eliane Brum é jornalista, escritora e documentarista. Ganhou mais de 40 prêmios nacionais e internacionais de reportagem. É autora de Coluna Prestes – O Avesso da Lenda (Artes e Ofícios), A Vida que Ninguém Vê(Arquipélago Editorial, Prêmio Jabuti 2007) e O Olho da Rua (Globo)

segunda-feira, 3 de outubro de 2011

Chorando em chinês (Marcelo Coelho)




Seja como for, é difícil acreditar que saia alguma obra-prima de um curso de poesia para a terceira idade



Um dos maiores compositores do século 20, Béla Bartók (1881-1945) dava aulas de piano, mas nunca quis ensinar composição. "Isso não se ensina", dizia ele.
Será verdade? Em certo sentido, imagino que sim: aula nenhuma poderá transformar uma pessoa medíocre em gênio criador. Em outro sentido, Bartók estava errado. Linguagens se aprendem, e toda arte, afinal, é uma linguagem.
O professor pode ensinar a técnica, a "gramática", os truques da composição (do desenho, da pintura, da poesia) e, sobretudo, pode mostrar a seus alunos onde "erraram": os clichês, as transições malfeitas, as repetições involuntárias, as intenções mal exploradas. Seja como for, é difícil acreditar que saia alguma obra-prima de um curso de poesia para a terceira idade.
Não digo obra-prima, mas um belo filme nasceu desse ponto de partida. Chama-se precisamente "Poesia" e ganhou o prêmio de melhor roteiro no Festival de Cannes. Dirigido por Chang Dong-Lee, o filme coreano está agora disponível em DVD, para quem (como eu) perdeu a chance de vê-lo no cinema. Aliás, é um daqueles filmes que funcionam bem na tela da TV.
A paisagem urbana que se vê no filme é das mais desinteressantes, e o diretor não quer mostrar quase nada dela -exceto aqueles ônibus, igrejas, conjuntos habitacionais e terrenos baldios que poderiam ser tanto de Seul quanto de São Paulo ou de Porto Alegre. O que se vê em "Poesia" é a aparência, banalíssima, de seus personagens. E, mesmo assim, o rosto da atriz principal (Jeong-hie Yun) interessa mais pelo que está ocultando do que pelos sinais de emoção que possa revelar.
Talvez seja este o aspecto mais "oriental" (o único, na verdade) de um filme que trata de sentimentos capazes de merecer uma qualificação bastante fora de moda: universais.
Tem sido tão grande a insistência na incompatibilidade entre as culturas (e em nossa necessidade de respeitar o "exótico", o "diferente", o "outro") que a palavra "universal" se tornou quase proibida. Virou sintoma de pretensão, cegueira e etnocentrismo, quando deveria ser justamente o contrário.
Nenhum filme, nenhum livro, nenhuma lenda, nenhum poema de outra cultura poderia ser visto, lido ou traduzido se não possuísse, além das suas peculiaridades de linguagem e referências específicas, uma verdade humana que vai além de seus limites geográficos e temporais.
Tome-se, por exemplo, o curso de poesia para a terceira idade que a protagonista do filme (uma senhora não muito velha que começa a ter sintomas de Alzheimer) resolve acompanhar. Querendo estimular seus alunos, o professor lhes pede que contem, diante da classe, qual a experiência mais feliz que tiveram em suas vidas.
Um homem magro, encabuladíssimo, rosto muito vincado pelo trabalho, vai à frente e se espreme numa série de sorrisos. "Nunca tive muita felicidade na vida..." Conta que sempre foi muito pobre e que morou a maior parte do tempo num porão, num barraco ou coisa assim; os pais e os vários irmãos compartilhavam o mesmo quarto.
"Muito mais tarde", conta, "consegui dar entrada num apartamento". Entrou na sala vazia, sozinho, e deitou-se no chão. "Aquela sala parecia enorme... e eu me senti o dono do mundo." Está chorando, aos arrancos, quando termina de falar.
"Poesia" não se concentra muito nas cenas desse curso: gira em torno do suicídio de uma menina e das dificuldades da velhota em conversar sobre o assunto com seu neto adolescente. Contar mais estraga o filme. Passo então a outro choro, de outro personagem, também nascido do outro lado do mundo. Em "Um Conto Chinês", filme argentino de Sebastián Borensztein, o excelente ator Ignacio Huang contracena com Ricardo Darín numa engraçada e pungente história de completa incomunicação.
Huang é um chinês que procura a família na Argentina, sem saber uma palavra de espanhol. Darín é um argentino que, mestre como sempre na expressão idiomática, na "tipicidade" portenha, não quer conversa com ninguém. Vem um telefonema, entretanto, uma torrente de palavras em chinês, uma sequência de assentimentos de cabeça, um choro longamente represado, e entendemos tudo. Não é tão difícil assim, mesmo sem saber a linguagem.