quinta-feira, 18 de dezembro de 2014

Carta ao Gael


Carta do Vovô Óz para o Gael

Gael, na cerimônia de casamento dos seus pais, li um texto que fala dos nossos sentimentos quando  percebemos que os filhos cresceram sem que esgotássemos neles todo o nosso afeto, e que o jeito era esperar que viessem os netos, pois o neto é a hora do carinho ocioso e estocado, não exercido nos próprios filhos, e que não pode morrer conosco. Então, fica fácil para você imaginar o tamanho da minha alegria com a sua chegada.

Bem vindo, Gael. O mundo é legal, desde que a gente saiba lidar com suas contradições. Tem muita beleza e miséria, dias de sol e temporal, tem  gente que nos diz não, mas faz isso para o nosso bem, e tem gente que nos diz sim, mas faz isso mais por preguiça do que por amor.

Tomara que você goste de futebol, porque a esta altura você já sabe em que família  foi se meter. Uma ala é corintiana  fanática e a outra é palmeirense doente, não queria estar no seu lugar. Mas sempre é possível escapar para o tênis, que também é um esporte fascinante. Aliás, acaba de ser inaugurada uma quadra novinha no seu condomínio, que espero um dia desfrutarmos juntos.

Desde que você saiu da barriga, está escutando votos de saúde e felicidade (mesmo que, por enquanto, tudo não passe de um barulho incompreensível e que você já esteja com saudade do silêncio uterino). Pois saiba que são votos clichês, mas os clichês são sábios: saúde e felicidade é tudo o que você precisa nessa vida. Só que tem que dar uma mãozinha. Então, pratique esportes, se alimente bem e não fume: a saúde já estará 50% garantida, o resto é sorte. Quanto à felicidade, o jeito é tentar fazer boas escolhas. Como fazê-las? Ninguém sabe ao certo, mas ser íntegro e não se deixar levar por vaidades e preconceitos promove uma certa paz de espírito. Ser feliz não é muito difícil, basta não ficar obcecado com esse assunto e tratar de viver. Quem pensa demais, não vive.

Você vai ser louco, apaixonado, babão por sua mãe. É natural. Mas não deixe que suas namoradas percebam.

Cada vez mais o dinheiro controla os desejos. É importante ganhá-lo, porque sem independência não somos donos de nós mesmos, mas para ganhá-lo você não precisa perder nada: nem escrúpulos, nem caráter, ou você estará se deixando comprar. Não se deixe controlar por ele. Pelo dinheiro, digo, porque pelos desejos você não só pode como deve se render. Mas não seja um heartbreaker profissional, a mulher da sua vida pode lhe escapar das mãos.

Ia esquecendo: estude inglês.

Uma vida sem arte é uma vida árida, sem transcendência, um convite à mediocridade. Então desfrute de muita música e cinema, e quando suas garotas tentarem lhe arrastar para um teatro, vá sem reclamar, há 30% de chance de você gostar. Importante: se alguém disser que ler é chato, mande se entender comigo.

Tédio é para os sem inspiração. O mundo oferece estradas, passeatas, eleições, aeroportos, ondas, montanhas, campeonatos, vestibulares, desafios, churrascos, festivais, feriadões, roubadas, gargalhadas, madrugadas e declarações de amor. É assim mesmo, tudo misturado e barulhento. A saudade do silêncio uterino vai lhe surpreender muitas outras vezes. Busque esse silêncio dentro de você.

Então é isso, Gael, seja corajoso e grato: nascer é um privilégio concedido a poucos, ainda que sejamos bilhões. Não desperdice a chance e esteja consciente de uma coisa: que sem alegria não vale a pena.

(*) Adaptado do texto "Carta ao Rafael", de Martha Medeiros


quinta-feira, 3 de julho de 2014

Todas as relações são abertas

"Bond of Union" | M.C. Escher
Há tempos ouço debates sobre qual será o modelo de relação mais comum no futuro. Entre defensores da monogamia e da poligamia, costumo brincar que fechada, aberta e de carne são esfihas; relação é outra coisa. Já que o que realmente nos une ou separa de uma pessoa não é um acordo pré-fixado, nem uma instituição, nem um papel, nem um título, na prática todas a relações são abertas.
A abertura, mesmo em uma relação monogâmica convencional, é uma qualidade inalienável, irrevogável. Não há tranca que segure os deslocamentos da vida.
O que nos mantém ligados uns aos outros é a conexão estabelecida, que independe, inclusive, de estar ou não fisicamente com a pessoa. Podemos estar disponíveis para outros estando com um parceiro, como podemos estar menos disponíveis a outros apenas pela ligação com alguém com quem sequer namoramos. Podemos estar disponíveis mas não chegarmos às vias de fato, como podemos chegar às vias de fato estando com outro parceiro sem que isso afete essa conexão afetiva. As variações são tantas que podemos dizer que vivemos em constante suruba e monogamia ao mesmo tempo, por liberdade original, e mudar o rumo e a forma de se relacionar a qualquer momento, mesmo que tenhamos feitos acordos, contratos, promessas.
Alain de Botton, no brilhante livro Religião para ateus, diz que os ateus perdem muito tempo querendo provar a não-existência de Deus e se esquecem do que fazer diante da não-existência de Deus. Então investem muita energia contra aqueles que praticam seus rituais religiosos perdendo a grande oportunidade de ter algumas experiências para além dos dogmas. Botton mostra como as religiões se apropriam de rituais pagãos. O Natal, por exemplo: o que realmente faz as pessoas aderirem não é o significado religioso em si, mas a experiência de distribuir presentes, compartilhar uma ceia, se reunir para celebrar. O verdadeiro sentido do Natal é a prática do seu significado, não o contrário. O mesmo acontece a qualquer tipo de relação.
O valor de um relacionamento é dado pelo que ela efetivamente é em experiência, sendo inútil achar que um rótulo vai salvaguardar ou dar origem a alguma coisa. Na hora H, tudo isso é absolutamente ineficiente, exatamente como pensar em fazer dieta e colocar um aviso na porta da geladeira pra lembrar, mas assaltar a geladeira um pouco a cada dia. Fazemos efetivamente dieta quando não precisamos mais lembrar que estamos em dieta, paramos de fumar quando já não lembramos bem porque fumávamos.
O rótulo só faz sentido quando a relação vivida o dispensa – interessante paradoxo.
O que ocorre a maior parte do tempo é uma burocratização dos relacionamentos, não apenas em formato mas principalmente em conduta. Precisamos de uma definição para nos certificarmos de que tudo vai dar certo, não podemos deixar margem para erro e reclamações posteriores. Montamos um projeto e tratamos o outro como um de seus objetos. Em vez desfrutar a relação, apenas mantemos uma relação e posicionamos o outro como uma meta de um projeto.
A realidade é bem mais caricata
Fazemos esforços para evitar o que possa ser desagradável, nos preocupamos demais em acertar e muito pouco em vivenciar com nossos próprios olhos, tato, escuta, paladar e corpo, desperdiçando a parte mais saborosa das relações, que é explorá-las, desbravá-las. E é justamente essa conduta que atinge o ponto vital das relações, fazendo com que fiquem apáticas, anêmicas, sem fluidez.
Não percebemos que o comprometimento vem antes da promessa, que o amor vem antes do pedido de casamento, que a conexão vem antes da razão. Na ânsia de controlar, colocamos o carro na frente dos bois e definimos formatos de relações para garantir segurança, enquanto ironicamente evitamos nos expor ao contato pra valer, sem garantias. Abertos.
Em minha própria experiência constato cada vez mais que os verdadeiros vínculos são mantidos por pura naturalidade e relaxamento, quando a promessa já está acontecendo e não precisamos oficializá-la, quando o sexo é praticado e não investigado, quando a disposição existe mesmo diante de condições externas desfavoráveis.
“There’s nothing to decide. There’s just walking forward.”
Miranda July
Então a “fidelidade” pode ser estar na relação 100% com tudo que faz parte dela, independentemente de exclusividade, pois a conexão estabelecida tem um sentido mais amplo e profundo. A “infidelidade” é justamente o oposto: não é um caso extraconjugal ou não, é uma manobra do desejo, uma artificialidade, é oferecer seus pedaços, é mentir descaradamente, para você mesmo.
Os enganos que mascaramos são como fingir um orgasmo: nós mesmos recebemos de volta aquilo que nos insatisfaz enquanto tentamos fazer o outro acreditar que nos contenta.
Se olharmos as relações como parcerias, em que estamos compartilhando com o outro nosso caminho, espaço, ideias, sentimentos e momentos, não como burocracia, onde temos de cumprir um roteiro pré-estabelecido, podemos vivê-las com mais leveza. Precisamos entender que o outro anda pelo mesmo espaço de liberdade que temos sozinhos, e que juntos esses espaços deveriam se ampliar ainda mais e não se restringir para que haja uma manutenção e durabilidade que atenda nossas pequenas expectativas de controle. Quanto mais relaxados estivermos diante das surpresas e aventuras do terreno de se relacionar com alguém, mais abertos estaremos ao que vier pela frente.
Da próxima vez em que tiver dúvidas sobre qual tipo de relação está vivendo, parta do seguinte ponto: todas.
Alessandra Marcuzzi

Formada em Comunição pela Faap e em Decoração na EPA. Já trabalhou com TV e fotografia. Hoje é florista de coração. Escreve no blogTransmutando. Pratica trekking e trampolim acrobático. Pode ser encontrada imersa em algum lugar com natureza e silêncio, ou em alguma pista de dança do circuito indie rock de SP.

terça-feira, 20 de maio de 2014

Gente fina (Martha Medeiros)




Gente fina, é aquela que é tão especial, que a gente
nem percebe se é gorda, magra, velha, moça,
loira, morena, alta ou baixa.
Ela é gente fina, ou seja, está acima de
qualquer classificação.Todos a querem por perto.
Tem um astral leve, mas sabe aprofundar as questões, 
quando necessário.É simpática, mas não bobalhona.
É uma pessoa direita, mas não escravizada 
pelos certos e errados: sabe transgredir, sem agredir.
Gente fina é aquela que é generosa, mas não banana.
Te ajuda, mas permite que você cresça sozinho.
Gente fina diz mais sim do que não, e faz isso 
naturalmente, não é para agradar.
Gente fina se sente confortável em qualquer ambiente:
num boteco de beira de estrada
e num castelo no interior da Escócia.
Gente fina não julga ninguém - tem opinião, apenas.
"Um novo começo de era, com gente fina,
elegante e sincera".
O que mais se pode querer?
Gente fina, não esnoba, não humilha, não trapaceia, 
não compete e,como o próprio nome diz, não engrossa.
Não veio ao mundo pra colocar areia no projeto dos outros.
Ela não pesa, mesmo sendo gorda, e não é leviana, mesmo sendo magra.
Gente fina é que tinha que virar tendência.
Porque, colocando na balança, é quem faz toda a diferença.



Martha Medeiros

Fascínio e Admiração (Fabrício Carpinejar)




Quando começa o amor? Certamente quando o fascínio encontra a verdade de cada um. Aí, é pegar ou largar.

Amor não é fascínio, amor é depois do fascínio, amor é compreensão.

O fascínio ainda é arrebatamento, tudo agrada, tudo é elogiado porque é inédito.

Não queremos perder nossa companhia, é só o que interessa, então não mostramos nenhuma resistência. 
Não nos incomodamos. Desligamos o senso crítico.

Há também a liberdade de não ter futuro. Não nos enxergamos morando com a pessoa. 
Não nos enxergamos descascando os problemas e a rotina com a pessoa. Não nos enxergamos discutindo longas madrugadas com a pessoa. 

Não nos enxergamos defendendo os nossos pequenos hábitos, antes naturais e automáticos, diante do olhar espantado.

O fascínio não inclui projetos, é fruição.
O fascínio não envolve julgamento.

Fascínio é a lua de mel das virtudes.
É se deixar levar. É não pensar demais.

Fascínio é hipnose, transe, mergulho sem os pés medindo a temperatura e a fundura da água.

Todos começam fascinados e terminam decepcionados no relacionamento.

Surge a dúvida: Será que é ele? Será que é ela? A dúvida não é ruim, a dúvida é quando passamos a praticar a verdade.

O fascínio é o éden, já a sinceridade é a maçã mordida.

No fascínio, o certo e o errado não existem, apenas a vontade imperiosa de ficar junto.

É preciso cair para se vincular. É preciso questionar para confirmar.

A decepção é que desenvolve o amor.
A frustração é que amadurece o amor.

É quando percebemos que o outro não está nem na nossa cabeça, nem no nosso coração, e que temos que percorrer um longo caminho a cada manhã para conhecê-lo. Aquele que parecia tão nosso é um estranho: vem o medo, a angústia, a ansiedade que destroem a inteireza das palavras. É quando o outro mente, é quando o outro comete uma falha, é quando o outro é grosseiro, e então o fascínio desaparece, e somos reais de novo e temos que tomar uma decisão pesando pontos positivos e negativos.

E a escolha é perdoar os erros e, mais do que isso, entender os erros e considerá-los naturais. Perdoar os erros de quem nos acompanha como perdoamos os nossos próprios erros.

É concluir que ele ou ela não acerta sempre, mas acerta mais do que erra e vale a pena continuar.

Troca-se a invencibilidade pela fragilidade. Troca-se a projeção pela introspecção.

Da morte do fascínio (a inconsciência da paixão), nasce a admiração (a consciência do amor) – esta, sim, será pela vida afora.

quarta-feira, 7 de maio de 2014

Mães de hospital (Jairo Marques)


Elas possuem no organismo o analgésico mais poderoso, aquele que enfrenta e apazigua as dores da incerteza do futuro
Não há sinônimo melhor para doação do que mães que vivem em hospitais no aguardo incansável e angustiante de chegar o grande dia no qual poderão levar suas crias de volta para casa, mesmo que elas já tenham sua plumagem bem frondosa, mesmo que elas jamais consigam pular amarelinhas de forma independente dali em diante.
Ter o filho novamente em casa após uma internação pode ser mais significativo do que o dia da formatura, o da primeira peça de teatro, o da primeira palavra balbuciada, pois significa uma chance nova de criar outras histórias incríveis e lindas para os porta-retratos e para a literatura de viver.
Mães de hospital não têm coluna, porque são capazes de dormir meses em um sofazinho sinuoso e desconfortável que guarda displicente o leito do filho enfermo. Possuem no organismo o analgésico mais poderoso, aquele que enfrenta e apazigua as dores da incerteza do futuro e de um ligeiro descaso do pessoal que serve as refeições, quando ela tanto esperava para seu pequeno um cuidado particular.
Elas choram pelos cantos para não fazer barulho e não comprometer os corações sensíveis de seus meninos. Ao mesmo tempo, são capazes dos melhores e mais largos sorrisos para os médicos que "prometerem" aquela visita mais longa, mais detalhada e mais otimista.
Mães de hospital não veem feiura em queimadura ou em má-formação, não sentem arrepios de sangue entrando ou saindo pelas veias --afinal, trata-se da busca da cura--, sabem tudo a respeito de erisipela, imunodeficiência, interação medicamentosa e quimioterapia.
A antessala de um centro de cirurgia pode ser mais dramática que os próprios acontecimentos da unidade se lá estiver uma mãe. Ela é capaz de ficar dez, 12 horas em pé, imóvel, para apenas "emanar energias boas" para que a mão do médico não trema, para que a sutura amarre de vez os problemas e os leve para bem longe de seus filhos amados.
Não existe possibilidades de mães de hospital almejarem o título da "melhor mãe do mundo", porque elas só estão interessadas em promover para si o básico: um banho rápido, um telefonema para o filho do meio pedindo a ele que estude e um afago na companheira do quarto 31, cuja menina piorou durante a madrugada.
E elas são firmes diante de choros aterradores vindos da dor de agulha, de dores nos ossos, na pele, na cabeça, no pensamento. O seu papel é passar segurança e confiança em que aquilo será para melhor, em que aquilo irá trazer de volta os momentos felizes das tardes de domingo.
Em mães de hospital, apenas as dores na alma são incontroláveis, mas essas elas teimam em resolver sozinha durante intermináveis insônias ou em um diabo chamado sono vigilante.
Por tudo isso, quando vir uma mãe de hospital, só dê a ela esperança, flores do campo e olhares de ternura. Não queira dar um toque de razão, uma frase de efeito ao coração ou se atreva a julgar o que, a seus olhos, parece "sacrifício".
Todo o esforço valerá a pena se for reconquistado pela mãe o direito de, logo cedinho, dar aqueles abraços de puro chamego e aqueles beijos estalados, meio lambidos e barulhentos, que nunquinha o clima da melhor enfermaria do mundo iria permitir.

quinta-feira, 17 de abril de 2014

Paliativos (Francisco Daudt)

Sofro (ou deveria dizer "desfruto") de associações musicais. Do nada, me vi cantando "Nature boy", de Éden Ahbez ("a maior coisa que você pode aprender é amar e ser amado de volta"). Em seguida apareceu "quem eu quero não me quer, quem me quer mandei embora", de Jorge Silva. Nessas horas me pergunto o que me contam as associações.
No caso, não foi difícil interpretá-las. É evidente que o maior sonho de todos nós é amar alguém e por esse alguém ser amado. Ou, de forma precisa, ser a prioridade erótico-afetiva de alguém que é nossa prioridade erótico-afetiva.
Mas, eta coisinha difícil de acontecer. E quando acontece, é fugaz como um raio, mesmo que caia mais de uma vez no mesmo lugar. Não importa, o desejo nos assombra como um vácuo a ser preenchido.
Como qualquer obsessivo, vivi olhando os 20% que faltavam e desdenhando dos 80% que tinha.
Ou, nas palavras de Vicente de Carvalho, "a felicidade está onde nós a pomos, e nunca a pomos onde nós estamos".
Aqui entra Leibnitz (filósofo alemão, século 17) com sua mal compreendida tese de que nós vivemos o melhor dos mundos possíveis, num aparente otimismo doentio que levou Voltaire a ficar furioso, e escrever "Candide", um cômico deboche sobre um otimista incurável a quem todas as desgraças imagináveis aconteciam.
Porque, se nosso maior sonho é tão raro, é melhor que vivamos sem contar com ele. Este será o nosso "melhor dos mundos possíveis". E se aquele encontro da cara-metade platônica é assim como a mega-sena, bem, podemos comprar o bilhete, mas não vivermos obcecados por nosso "azar", já que o normal é que o prêmio não saia.
É a vez de falar dos estóicos, outro grupo filosófico mal compreendido. Eles não são "os que sofrem em silêncio", como se costuma entendê-los, mas os que acolhem sem discussão suas realidades imutáveis.
Assim, fará tanto sentido para um estóico se lamentar por só ter uma perna quanto você se lamentar por ter duas.
Ele não se referencia como "alguém de uma perna só", mas como alguém que vive no melhor de seus mundos possíveis.
Um estóico nunca será um coitadista, a faturar em cima de sua desgraça, já que ele não vê o fato de só ter uma perna como tal.
Então o estóico é um "resignado", um "conformado"? Não! Isto seria se referenciar pela falta da perna, coisa que ele não faz. E se surgir uma prótese legal, o melhor de seus mundos possíveis se ampliará, e ele vai se valer da prótese.
Ou seja, ele não ignora que só tem uma perna, ele só não vive em função disso.
Quer dizer que, na falta do sonho de amar e ser amado, da fantasia romântica de filme, só nos restam paliativos?
Ora, chamar de paliativos o amor companheiro, a amizade, a camaradagem, a ética, a leitura, o fazer o bem, o cuidar da família, o cultivo do espírito, os erotismos possíveis, a conservação de valores prezados (disso, sou conservador, com muita honra), a crítica de valores desprezados, a interação com a cultura, o lazer e o ócio criativo, novamente é se referenciar pela falta do prêmio lotérico.
Mas eu compro bilhete...

sábado, 29 de março de 2014

Alguma coisa (Martha Medeiros)


Recebi o e-mail de uma mulher madura revelando que ela e o marido estão praticamente vivendo um para o outro, pois estão decepcionados com os demais semelhantes – cuja semelhança ela não vê, aliás. Resumo aqui suas palavras: “Somos instruídos e temos ótimo pique, porém estamos cada vez mais isolados, os filhos moram longe e as demais pessoas não nos dizem nada. Gostamos de coisas que ninguém gosta. Nosso nível de tolerância é mínimo diante da hipocrisia humana, do politicamente correto, do bairrismo, dos fanáticos, dos mal-educados, dos ridículos, dos sem noção, dos burros, dos ignorantes e da manipulação da massa através dos meios de comunicação”.

Escapei não sei como. Ela diz que comigo até que gostaria de conversar, e me pediu opinião sobre sua ansiedade. “Se meu marido morrer, ficarei perdida”.

Bom, eis um caso de uma mulher que cruzou com sua alma gêmea, o que a coloca em vantagem. Mas, pelo visto, procura almas gêmeas também na vida social. Amiga, desista. Você já encontrou a sua e casou com ela, valorize a sua sorte, não seja fominha.

Brincadeiras à parte, dizer o quê? Afora os seres intragáveis, a maioria das pessoas possui alguma coisa que fecha com a gente. Alguma coisa. Não precisa fechar em tudo. Tem aquela amiga que é ótima para viajar, tem a santa que ouve nossos lamentos, aquela outra que é uma alegre parceira de indiadas, a que sempre tem uma bolsa de festa para emprestar, a que se oferece para dar carona, a que é companheira para assistir filmes iranianos, a que diz tanta bobagem que é impossível não rir. Alguma coisa, entende?

Minha leitora deveria diminuir o nível de exigência e extrair das pessoas o seu melhor, deixando o pior pra lá. A vizinha chata pode ser uma ótima professora de espanhol, a avarenta pode preparar um risoto caprichado, a cafona pode ser aquela que ficará na cabeceira da sua cama quando você estiver com um febrão. Todos têm seu lado A e B – nós, inclusive.

Compreendo que minha leitora tem um estilo de vida arrojado e uma cabeça cosmopolita que destoa da cidade onde vive, que não é nenhuma Nova York. Então por que não se muda para uma urbe mais vibrante? Se não der, baixe a guarda e procure as agulhas no palheiro, elas existem. Tive uma amiga que igualmente acreditava ter nascido no planeta errado, para ela todos também eram bairristas, ignorantes e ridículos – e quanto mais ela discursava sobre seu inconformismo, mais ela própria parecia bairrista, ignorante e ridícula. A falta de condescendência nos bitola.

Querida leitora, torço para que consiga encontrar pessoas afins e interagir com as menos afins sem tanto rigor. Você faz bem em grudar no seu marido – um companheiro que é seu melhor amigo é uma benção – mas não julgue tão severamente os que estão em volta. Eles podem ser úteis, nem que seja para exercitar sua humildade.


terça-feira, 18 de março de 2014

HOMEM SE APAIXONA FÁCIL, MAS AMA DIFÍCIL (Fabrício Carpinejar)


Homem se apaixona fácil, o que ele tem medo é de amar.

Mulher não se apaixona fácil, mas não tem medo de amar.

São dois fusos diferentes. São duas realidades em desacordo.

Homem logo se entrega para um relacionamento, não mede esforços para ficar com alguém, renuncia sua vida e seus prazeres mais essenciais, altera sua rotina. Na paixão, sua generosidade é corajosa. Facilita as saídas aos bares e restaurantes, facilita a intimidade na casa, facilita o arrebatamento. Nada incomoda, nada atrapalha, nenhum defeito é contabilizado.

Sua complicação é quando passa a amar, quando larga a fase da aventura e do desconhecimento dos meses iniciais para fazer plano junto. Daí ele estaciona, emperra. Tanto que sofre horrores para dizer o primeiro eu te amo. Tanto que sofre horrores para misturar as escovas de dente. Tanto que sofre horrores para dividir as prateleiras. É como se não pensasse até aquele momento.

Na paixão, ele não avalia as separações anteriores, suas falhas de sistema, suas fobias de convivência. Explode por intuição, desmemoriado. É vir o amor que ele recua, entra em julgamento, contrai o olhar e economiza as palavras. É consolidar os laços que se confunde, acumula receios e inventa desculpas.

A mulher é exatamente o contrário, e bem mais coerente. Leva tempo para se apegar, questiona de saída, é desconfiada na paixão, cética na paixão, contida na paixão. Sofre passo a passo. Empenha malha fina da personalidade na apresentação. Sua instabilidade é de imediato, sua crise de consciência é no começo. Quando descobre que gosta realmente, é que se liberta e derruba suas defesas. É realizar projetos e formular expectativas que se solta e se desinibe. Para ela, o amor acontece mais natural do que a paixão. Paixão é choque, dói; amor é costume, cicatriza.

Homem diz “Não quero me envolver”. A mulher diz “não quero me apaixonar”. As declarações são representativas. Ele recusa intimidade após o contato, ela pretende evitar qualquer contato, já que a intimidade não a assusta.

Homem mergulha para reclamar da água. A mulher experimenta a água antes de entrar.

Homem tem primeiro certeza para depois duvidar. A mulher duvida até cansar sua cautela.

Homem oferece tudo para retirar gradualmente. A mulher esconde tudo para oferecer aos poucos.

Homem se mostra desembaraçado e, em seguida temeroso. Mulher se apresenta temerosa e, em seguida, desembaraçada.

Homem decide rápido para desmanchar lentamente sua convicção. Mulher demora a se decidir, mas não volta atrás.

Homem é paixão. Mulher é amor.

sábado, 15 de março de 2014

De onde vem a nossa dor (Martha Medeiros)

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A dor nas costas vem das costas, a dor de estômago vem do estômago, a dor de cabeça vem da cabeça. E sua dor existencial, vem de onde?

Ela vem da história que você meio que viveu, meio que criou – é sabido que contamos para nós mesmos uma narrativa que nem sempre bate com os fatos. Nossa memória da infância está repleta de fantasias e leituras distorcidas da realidade. Mesmo assim, é a história que decidimos oficializar e passar adiante, e dela resultam muitas de nossas fraturas emocionais.

Nossa dor existencial vem também do quanto levamos a sério o que dizem os outros, o que fazem os outros e o que pensam os outros – uma insanidade, pois quem é que realmente sabe o que pensam os outros? Pensamos no lugar deles e sofremos por esse pensamento imaginado. Nossa dor existencial vem dessa transferência descabida.

Nossa dor existencial, além disso, vem de modelos projetados como ideais, a saber: é melhor ser vegetariano do que comer carne, fazer faculdade de Medicina do que Hotelaria, namorar do que ficar sozinho, ter filhos do que não ter, e isso tudo vai gerando uma briga interna entre quem você é e entre quem gostariam que você fosse, a ponto de confundi-lo: existe mesmo uma lógica nas escolhas?

Como se não bastasse, nossa dor existencial vem do que não é escolha, mas destino: quem é muito baixinho, ou é pobre de amargar, ou tem dificuldade de perder peso vai transformar isso em uma pergunta irrespondível – por que eu? – e a falta de resposta será uma cruz a ser carregada.

Nossa dor existencial vem da quantidade de nãos que recebemos, esquecidos de que o “não” é apenas isso, uma proposta negada, um beijo recusado, um adiamento dos nossos sonhos, uma conscientização das coisas como elas são, sem a obrigatoriedade de virarem traumas ou convites à desistência.

Nossa dor existencial vem do bebê bem tratado que fomos, nada nos faltava, éramos amamentados, tínhamos as fraldas trocadas, ninavam nosso sono, até que um dia crescemos e o mundo nos comunicou: agora se vire, meu bem. Injustiça fazer isso com uma criança – alguém aí por acaso deixou totalmente de ser criança?

Nossa dor existencial vem da incompreensão dos absurdos, da nossa revolta pelos menos favorecidos, da inveja pelos mais favorecidos, da raiva por não atenderem nossos chamados, por cada amanhecer cheio de promessas, pela precariedade das nossas melhores intenções e pela invisibilidade que nos outorgamos: por que nunca ninguém nos enxerga como realmente somos?

Dor de dente vem do dente, dor no joelho vem do joelho, dor nas juntas vem das juntas. Nossa dor existencial vem da existência, que nenhum plano de saúde cobre, de tão difícil que é encontrar seu foco e sua cura.


domingo, 9 de março de 2014

Quisera ser um gato (FERREIRA GULLAR)


Alegra-me a confiança de um bicho que não fala a minha língua, que não sabe quem sou eu
Fora os fantasmas que me acompanham e me fazem refletir sobre o sentido da vida, vivo eu, neste apartamento, com uma gatinha siamesa. Que é linda, não preciso dizer, mas, além disso, é especial: quase nunca mia e, quando soa a campainha da porta, se arranca. Nem eu sei onde ela se esconde.
Ela é, portanto, muito diferente do gatinho que, antes dela, me fazia companhia e que se foi. Morreu de velho, já que nunca havia adoecido durante seus 16 anos de vida. Quando adoeceu, foi para morrer. Não preciso dizer que fiquei traumatizado e não quis mais saber de outro gato. Amigas e amigos me ofereceram um substituto para o meu gatinho, e eu respondia que amigo não se substitui.
Os anos se passaram, a dor foi se apagando, até que um belo dia, minha amiga Adriana Calcanhotto chegou aqui em casa com um presente para mim: era uma gatinha siamesa. Faltou-me coragem para dizer não, mesmo porque a bichinha me encantou à primeira vista. Manteve-se arredia por algum tempo, mas logo me aceitou e nos tornamos amigos.
Hoje me sinto praticamente lisonjeado pelo fato de que, por medo ou desconfiança, enquanto ela foge de todo mundo, me busca pela casa, sobe em minhas pernas e ali se deita, isso sem falar que, todas as noites, dorme em minha cama.
Confia em mim, sabe que gosto dela e que pode contar comigo para o que der e vier. Essa confiança de um bicho que não fala a minha língua, que não sabe quem sou eu, mas só o que sou dentro desta casa, me alegra.
E às vezes, olhando-a dormir na poltrona da sala, lembro que para ela a morte não existe, como existe para nós, gente. Ela é mortal, mas não sabe, logo é imortal. A morte, no caso dela, é apenas um acidente como outro qualquer, dormir, comer, brincar, correr; só existirá quando acontecer, sem que ela saiba o que está acontecendo.
Neste ponto é que a invejo. Já pensou como a vida seria leve se não tivéssemos consciência de que ela acaba? Seria como viver para sempre, tal como ocorre com a gatinha.
E enquanto penso essas tolices, ela --que se chama Gatinha-- se levanta, vem até mim e começa a se roçar nas minhas pernas, insistentemente. Só então me dou conta de que está pedindo que eu vá até a cozinha e ponha ração no seu prato. Ela não sabe que é mortal, mas sabe muito bem que necessita comer e que quem lhe providencia a comida sou eu.
A verdade é que vivemos os dois neste apartamento cheio de livros, quadros e móbiles (feitos por mim, não por Calder, ou seja, falsos móbiles) e nos entendemos bem. A Gatinha é diferente do Gatinho, é de outra geração, a geração do pet shop. Por isso mesmo, ela não come carne nem peixe, só come ração.
Consequentemente, ao contrário do Gatito, que subia na mesa para xeretar meu almoço, ela não está nem aí para comida de gente, só quer saber de ração. E tem mais: só pode ser aquela ração; se mudar, ela não come, cheira e vai embora.
Aliás, isso criou um problema sério, quando a ração que Adriana trouxera terminou. Como não entendia de rações, ao ver que a dela acabara, fui a um pet shop aqui perto para comprar e, como não tinha a dela, decidi comprar qualquer outra, mas fui advertido pela dona da loja de que teria que ser da mesma ração.
Fui a outra loja, bem mais longe, e lá também não tinha a tal ração. Pedi a meu neto que a comprasse num pet shop do Humaitá, bairro onde ele mora, e nada, lá também não havia. Desesperado, liguei para Adriana que, imediatamente, me fez chegar aqui em casa dois pacotes com a raríssima ração que a gatinha comia. Respirei, aliviado.
Depois aprendi que para evitar que ela morra de fome, no caso de faltar sua ração exclusiva, há que ter em casa uma ração parecida e ir misturando à sua até que se acostume. Coisas de gatos modernos, muito diferentes daqueles que, outrora, vagabundeavam aqui pelos telhados e pela rua.
Mas, se mudou a ração, não mudou a razão que me fez adotá-la como minha companheira de todas as horas, que me acorda, pontualmente, às seis horas da manhã, vindo cheirar meu rosto sob o lençol. E agora a vejo, ali, a poucos metros de mim, deitada na poltrona, livre da morte, nesta tarde de março, num determinado ponto da Via Láctea, onde moramos.

sábado, 8 de março de 2014

Que fim levou Bo Derek? (Martha Medeiros)

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Eu estava em plena adolescência quando assisti no cinema ao filme Mulher Nota 10 com uma estreante chamada Bo Derek. A comédia contava a história de um cantor que um dia viu uma loira espetacular vestida de noiva e ficou obcecado por ela. O que aquela mulher tinha de nota 10? Que eu lembre, apenas um tremendo corpaço. Mas foi o que bastou para eu e mais umas tantas meninas da minha idade desejarem ser 10 também. Mal sabíamos que estava em curso uma revolução que iria nos exigir muito mais do que um corpaço: iria nos exigir independência financeira, atitude, cultura, talento, sucesso profissional, inteligência acima da média, um bom casamento, filhos notáveis, um farto círculo de amigos, um apartamento bem decorado, uma ótima mão para a cozinha, conhecimento sobre política, economia, artes plásticas, jardinagem e comércio exterior, muita feminilidade, um guarda-roupa de matar de inveja a editora da Vogue, um rosto lisinho, um cabelo lisinho, dotes sexuais de humilhar o Kama Sutra e, para aguentar o tranco, o tal corpaço de parar o trânsito, claro.

Nem titubeamos. Parecia fácil. Daríamos conta. E demos, se abstrairmos o padrão cinematográfico das exigências.

Até que descobrimos que tínhamos tudo, menos a coisa mais importante do mundo: tempo. Deixamos de ser donas dos nossos dias, viramos escravas da perfeição, passamos a buscar a nota 10 em todos os quesitos, feito uma escola de samba, e ganhamos o quê? Um stress gigantesco e uma tremenda frustração por não conseguir manter tudo no topo: o casamento, a profissão, os seios. Nunca mais uma escapada de três dias num sítio, nunca mais pegar uma matinê num dia da semana, nunca mais passar a tarde conversando na casa de uma amiga, nunca mais deitar no sofá para ouvir nossa música preferida.
Tic-tac, tic-tac. Proibido relaxar.

Trégua, por favor. Não estamos numa competição. Ninguém está contabilizando nossos recordes. A intenção não é virar uma campeã, e sim desfrutar a delícia de ser uma mulher divertida e desestressada. Por que isso precisa conflitar com a independência? Proponho uma pequena subversão: agrade a si mesmo e a mais ninguém. E não brigue com o espelho, pois ter saúde é o único item de beleza indispensável, e isso só se enxerga por dentro. Trabalhe no que lhe dá gosto, aprenda a dizer não, invente sua própria maneira de ser quem é, e se for gorda, fumante, esquisita e sozinha, qual o problema? Aliás, sendo você mesma, dificilmente ficará sozinha.

Lembra das garotas nota 10 da sua sala de aula? Cá entre nós, umas chatas. Não aproveitavam a hora do recreio, não deixavam a blusa para fora da saia, não matavam as aulas de religião, só pensavam em ser exemplares. Pois tiveram o mesmo fim da Bo Derek: nunca mais se ouviu falar delas.


sexta-feira, 14 de fevereiro de 2014

Falar (Martha Medeiros)

FALAR

Já fui de esconder o que sentia, e sofri com isso. Hoje não escondo nada do que sinto e penso, e às vezes também sofro com isso, mas ao menos não compactuo mais com um tipo de silêncio nocivo: o silêncio que tortura o outro, que confunde, o silêncio a fim de manter o poder num relacionamento.

Assisti ao filme Mentiras sinceras com uma pontinha de decepção – os comentários haviam sido ótimos, porém a contenção inglesa do filme me irritou um pouco. Nos momentos finais, no entanto, uma cena aparentemente simples redimiu minha frustração. Embaixo de um guarda-chuva, numa noite fria e molhada, um homem diz para uma mulher o que ela sempre precisou ouvir. E eu pensei: como é fácil libertar alguém de seus fantasmas e, libertando-o, abrir uma possibilidade de tê-lo de volta, mais inteiro.

Falar o que se sente é considerado uma fraqueza. Ao sermos absolutamente sinceros, a vulnerabilidade se instala. Perde-se o mistério que nos veste tão bem, ficamos nus. E não é esse tipo de nudez que nos atrai.

Se a verdade pode parecer perturbadora para quem fala, é extremamente libertadora para quem ouve. É como se uma mão gigantesca varresse num segundo todas as nossas dúvidas. Finalmente, se sabe.

Mas sabe-se o quê? O que todos nós, no fundo, queremos saber: se somos amados.

Tão banal, não?

E no entanto essa banalidade é fomentadora das maiores carências, de traumas que nos aleijam, nos paralisam e nos afastam das pessoas que nos são mais caras. Por que a dificuldade de dizer para alguém o quanto ela é – ou foi – importante? Dizer não como recurso de sedução, mas como um ato de generosidade, dizer sem esperar nada em troca. Dizer, simplesmente.

A maioria das relações – entre amantes, entre pais e filhos, e mesmo entre amigos – se ampara em mentiras parciais e verdades pela metade. Pode-se passar anos ao lado de alguém falando coisas inteligentes, citando poemas, esbanjando presença de espírito, sem ter a delicadeza de fazer a aguardada declaração que daria ao outro uma certeza e, com a certeza, a liberdade. Parece que só conseguimos manter as pessoas ao nosso lado se elas não souberem tudo. Ou, ao menos, se não souberem o essencial. E assim, através da manipulação, a relação passa a ficar doentia, inquieta, frágil. Em vez de uma vida a dois, passa-se a ter uma sobrevida a dois.

Deixar o outro inseguro é uma maneira de prendê-lo a nós – e este “a nós” inspira um providencial duplo sentido. Mesmo que ele tente se libertar, estará amarrado aos pontos de interrogação que colecionou. Somos sádicos e avaros ao economizar nossos “eu te perdôo”, “eu te compreendo”, “eu te aceito como és” e o nosso mais profundo “eu te amo” – não o “eu te amo” dito às pressas no final de uma ligação telefônica, por força do hábito, e sim o “eu te amo” que significa: “Seja feliz da maneira que você escolher, meu sentimento permanecerá o mesmo”.

Libertar uma pessoa pode levar menos de um minuto. Oprimi-la é trabalho para uma vida. Mais que as mentiras, o silêncio é que é a verdadeira arma letal das relações humanas.

terça-feira, 11 de fevereiro de 2014

Um Deus que Sorri (Martha Medeiros)


Eu acredito em Deus. Mas não sei se o Deus em que eu acredito é o mesmo Deus em que acredita o balconista, a professora, o porteiro. O Deus em que acredito não foi globalizado.
O Deus com quem converso não é uma pessoa, não é pai de ninguém. É uma idéia, uma energia, uma eminência. Não tem rosto, portanto não tem barba. Não caminha, portanto não carrega um cajado. Não está cansado, portanto não tem trono.
O Deus que me acompanha não é bíblico. Jamais se deixaria resumir por dez mandamentos, algumas parábolas e um pensamento que não se renova. O meu Deus é tão superior quanto o Deus dos outros, mas sua superioridade está na compreensão das diferenças, na aceitação das fraquezas e no estímulo à felicidade.
O Deus em que acredito me ensina a guerrear conforme as armas que tenho e detecta em mim a honestidade dos atos. Não distribui culpas a granel: as minhas são umas, as do vizinho são outras, e nossa penitência é a reflexão. Ave Maria, Pai Nosso, isso qualquer um decora sem saber o que está dizendo. Para o Deus em que acredito só vale o que se está sentindo.
O Deus em que acredito não condena o prazer. Se ele não tem controle sobre enchentes, guerrilhas e violência, se não tem controle sobre traficantes, corruptos e vigaristas, se não tem controle sobre a miséria, o câncer e as mágoas, então que Deus seria ele se ainda por cima condenasse o que nos resta: o lúdico, o sensorial, a libido que nasce com toda criança e se desenvolve livre, se assim o permitirem?
O Deus em que acredito não é tão bonzinho: me castiga e me deixa uns tempos sozinha. Não me abandona, mas me exige mais do que uma visita à igreja, uma flexão de joelhos e uma doação aos pobres: cobra caro pelos meus erros e não aceita promessas performáticas, como carregar uma cruz gigante nos ombros. A cruz pesa onde tem que pesar: dentro. É onde tudo acontece e tudo se resolve.
Este é o Deus que me acompanha. Um Deus simples. Deus que é Deus não precisa ser difícil e distante, sabe-tudo e vê-tudo. Meu Deus é discreto e otimista. Não se esconde, ao contrário, aparece principalmente nas horas boas para incentivar, para me fazer sentir o quanto vale um pequeno momento grandioso: um abraço numa amiga, uma música na hora certa, um silêncio. É onipresente, mas não onipotente. Meu Deus é humilde. Não posso imaginar um Deus repressor e um Deus que não sorri. Quem não te sorri não é cúmplice.

sábado, 8 de fevereiro de 2014

Conversa por dedução (Matha Medeiros)


Sabe a... a... aquela, você sabe... a loirinha... prima da... como é mesmo o nome... aquela que morava na rua atrás do clube... aquele clube que teu irmão jogava futebol com o... tsk, que futebol, o quê. Tênis, jogava tênis! Sabe?

Antes era só com minha mãe que eu conversava desse modo, tentando preencher os pontinhos deixados em branco. Mas hoje em dia tem sido com as amigas também. Entramos na fase da conversa por dedução. E dessa fase não sairemos mais. Não vivas.

Vocês já foram nesse restaurante novo que abriu? Esse que foi matéria ontem no... Vocês sabem, me ajudem, esse que foi superbem comentado pela... Ah, não importa, andam dizendo que é onde se come o melhor linguado ao molho de maracujá. Não: de manga. Linguado nada, eu quis dizer salmão. Salmão ao molho de manga. Isso. Já foram lá?

Completar uma frase tem sido tarefa de adivinhação. Não sei com você, mas eu não consigo mais lembrar o nome de artistas, de filmes, de lugares. Mal consigo dizer corretamente o nome das filhas, e são apenas duas. Quem tem três – e acerta – vira meu herói.

É sabido que nosso cérebro está com lotação esgotada. É informação demais para processar, não há como manter o estoque, é preciso jogar no lixo o que não serve mais. Aquela atriz... aquela bonitona... me escapa o nome agora. Pois bem, em sua biografia, ela comenta que quando esquecemos um nome, o melhor é deixar pra lá e seguir em frente, mais adiante a lembrança retorna espontaneamente. Muito bem. Assim tenho levado a vida, aguardando a volta de palavras que debandaram.

Sim, quero o CPF na nota. É 439136... não, 37... esquece, esse é meu RG. O CPF é 30055082... calma, acabei de te dar o telefone do meu escritório.

Aguardo a volta dos números também.

Caduquice de velha? Olha: não é. Tenho visto muita criança de 30 anos que também está custando para levar uma frase até o final sem se perder nos “como é mesmo?”. A questão é que estamos sobrecarregados de tal forma que esquecer passou a ser mais comum do que lembrar. E os bate-papos agora são assim, um tentando adivinhar o que o outro está querendo dizer.

Estou indo para Ibiraquera, aluguei uma casa. Falei Ibiraquera? Perequê, Perequê! Fica ali pertinho de... de... Porto Belo, obrigada. Só voltaremos depois do Natal. Depois do carnaval, isso. Muito tempo, né? Estou levando quatro livros... Esse novo da Fernanda Montenegro... Hein? Torres. Fernanda Torres. Um de um australiano, canadense, uma coisa assim. Um sobre a vida da Jane Fonda. E outro daquele cara que tu gosta, o Stephen... Philip Roth, esse aí. E um monte de palavras cruzadas, prescrição médica.

Jane Fonda, claro. Como é que pude esquecer?

quarta-feira, 5 de fevereiro de 2014

Acima de mim (Francisco Daudt)


O Superego continua sendo o ideal de perfeição "Acima de nós" com poderes de nos ameaçar com a vergonha
Superego, conceito de Freud, é tradução latina do alemão corrente (das überich; le surmoi) e tem uma história evolutiva fascinante. Qualquer mamífero, em graus variados de complexidade, tem um programa mental para detectar perigo e oportunidades. Nasce com eles, nasce conosco, faz parte dos programas herdados nos genes.
Somos capazes de entrar em contato com suas origens primitivas se encontramos uma cobra no caminho. "Algo", mais forte do que nós, aciona um pânico imediato.
Observo o Flap (cão da minha filha) e vejo seu programa perigo-oportunidade funcionando de maneira complexa. Ele bajula, se submete, pede atenção --na parte da oportunidade-- e se enfia debaixo da cama à simples menção de "banho" (perigo).
Mas nada se compara ao nosso programa de base e à sofisticação que ele desenvolveu.
Pelo fato de sermos bichos capazes de consciência e reflexão, além de absorvermos ensinamentos como nenhum outro, o nosso Superego vai se tornando mais e mais complexo pela vida afora.
Para evitar o perigo, ele desenvolve busca de controle. Para controlar, ele passa a buscar sentido em tudo, a procurar entender e dominar o funcionamento do mundo.
Um dos primeiros exemplos disso é também a primeira mostra de consciência em nossa espécie: nossos ancestrais perceberam que, assim como seus pares, eles também iriam morrer, logo, era preciso controlar a morte. Aí começaram os ritos fúnebres e as mitologias de vida após a morte, comum em todas as religiões desde então.
Já se vê que o medo pediu controle, o controle inventou uma história que explicasse o perigo, a história ganhou status de crença inabalável. Estava inventado o dogma: algo "Acima de mim" que não aceita questionamentos.
Como eu justamente estou questionando o dogma, por contar sua história, prevejo rancores levantados nos que o defendem. Lembro então que, mesmo para os religiosos, a teologia anda no fio da navalha entre a fé e a heresia.
Mas a evolução não parou por aí. Agora o programa é algo "Acima de mim", descolado do Eu, que olha para ele com reverência e temor.
Não por acaso muitos religiosos se proclamam "tementes a Deus" (têm medo dele e o reverenciam no mesmo termo).
Outra atribuição dada ao Superego é seu caráter de perfeição ideal e pureza absoluta, diante da qual estamos sempre em falta, sempre abaixo.
Platão, o filósofo grego de há 2400 anos, formalizou uma teoria antecessora do Superego, ao dizer que o mundo da matéria (nós) vive atolado numa caverna obscura que, do luminoso e perfeito mundo das ideias que lá fora vive, só pode enxergar as sombras projetadas no fosso.
Tudo o que conseguimos não passa de cópias inferiores do Ideal. Todos os deuses criados pelo homem à sua imagem e semelhança tiveram essa característica de Ideal.
O Superego, em sua versão atual, continua sendo o ideal de perfeição "Acima de nós", com poderes de nos ameaçar com a vergonha, a culpa, a perda do amor das pessoas queridas, a "sifudência", de nos criticar, julgar e condenar.
Se a consciência é uma graça, essa é sua desgraça.

terça-feira, 4 de fevereiro de 2014

Profissionais e amadores (João Pereira Coutinho)


Como o corpo não é bicho confiável, haverá sempre qualquer dissonância na orquestra para os perturbar
Uma amiga minha, mãe solteira, fez-me um pedido dramático: se ela não sobreviver a um linfoma, estarei disposto a cuidar do filho de oito anos? Caí do céu: pela doença e pela responsabilidade do pedido.
Mas primeiro concentrei-me na doença: que dizem os médicos? Que tratamentos existem? Que perspectivas de cura?
Ela respondeu-me que ainda não sabia. Mas os sintomas --gânglios linfáticos inchados, fadiga extrema, febre persistente etc.-- apontavam para o pior. Ela própria, furando noites e noites de insônias, lera a respeito na internet e até conversara com vários doentes nos fóruns respectivos. Gente com os mesmos sintomas, a mesma doença, os mesmos terrores futuros.
Voltei a cair do céu. E, antes de aconselhar ajuda psiquiátrica, perguntei com medo: e que tal esquecer a internet e consultar um médico verdadeiro? Um daqueles personagens que fazem exames e avaliam resultados com base na "ciência" e na "experiência"?
E foi assim que o linfoma se transformou num caso tratável de mononucleose infecciosa. E foi assim que a promessa de quimioterapia, ou radioterapia, ou ambas, se transformou em simples repouso. E foi assim que eu conheci os "cibercondríacos", uma nova forma de hipocondria que a internet promoveu e disseminou.
Quando li pela primeira vez a respeito, confesso que não comprei o diagnóstico: os "cibercondríacos" são hipocondríacos que usam a internet para pesquisarem todas as doenças que existem no cardápio?
Estranho. Sei do que falo. Sou um hipocondríaco profissional há 37 anos. E qualquer hipocondríaco profissional sabe que só existe uma coisa pior do que as doenças; é a informação sobre elas.
Porque um hipocondríaco profissional é um camaleão natural: se ele ler literatura médica com regularidade, ele pode ter câncer à segunda-feira, esclerose à terça, insuficiência renal à quarta e princípios de Alzheimer à quinta. Ou talvez à sexta, já não sei bem.
É a ignorância que protege o hipocondríaco profissional, não o conhecimento. Qualquer hipocondríaco profissional, quando compra um novo remédio, sabe que a primeira coisa a jogar fora é a bula do medicamento. Cometer a imprudência de a ler é começar a sentir todos os efeitos adversos --da simples coceira às crises psicóticas-- o que por vezes agrava a doença real que se procura tratar.
Os "cibercondríacos" não passam de amadores que só dão mau nome ao fascinante mundo da hipocondria. Mas o pior é que o futuro será deles.
A revista "The Economist" dedicou uma matéria extensa aos futuros "gadgets" que prometem revolucionar a medicina. Falo de brinquedos para usar no pulso, no peito, até nos olhos e que servem para medir a pressão sanguínea, o batimento cardíaco, os níveis de glicose nas lágrimas. De preferência, várias vezes ao dia, como quem toma um cafezinho ou fuma cigarro na pausa do trabalho.
Depois, os dados são enviados para o celular e o celular encaminha os ditos cujos para o médico especialista.
Os Estados Unidos estão na vanguarda do investimento e a "Economist", aplaudindo os avanços, pergunta se eles não irão soterrar os profissionais de saúde com quantidades avassaladoras de informação. Não apenas de doentes comprovados, mas de hipocondríacos amadores.
A revista não precisa sequer perguntar. Com o declínio das religiões tradicionais no Ocidente e o fim de qualquer possibilidade de transcendência, tudo que resta aos homens modernos é a tirania da imanência: os seus corpos, as suas patéticas carcaças --e o medo permanente de que a Deusa Saúde, a única que resistiu no Panteão, os possa atraiçoar a qualquer momento.
Por isso imagino esses hipocondríacos amadores, com brinquedos no pulso, no peito ou nos olhos, em vigilância permanente, medindo o comportamento do corpo com paranoica obsessão.
Qualquer sinal de alarme será uma nova preocupação, um novo temor, um novo terror. E como o corpo não é bicho confiável, haverá sempre qualquer dissonância na orquestra para os perturbar, entristecer, angustiar.
Nós, os hipocondríacos profissionais, renunciamos a esses brinquedos como um ex-alcoólatra recusa a mais inocente das cervejas.
Mas o futuro é dos amadores: gente tão preocupada em ser saudável que passará pela vida na perpétua condição de doentes.