terça-feira, 21 de janeiro de 2014

MUDAREMOS (Fabrício Carpinejar)



Arte Faturi

Era aquele que dizia que não bebeu nada, apesar do bafo de cerveja.

Era aquele que dizia que não fumou, apesar do cheiro de cigarro.

Era aquele que dizia que não pegou as chaves, apesar de ter sido o último a sair com elas.

Era aquele que negava antes de ouvir a pergunta. Das situações mais triviais às mais complexas.

Desprezava as pequenas mentiras. Acreditava que representavam lapsos necessários, pequenas omissões imprescindíveis para viver a dois.

Eu me transformei por amor. Busco ser honesto sempre, assumindo as mancadas e as falhas.

Mentir não me tornava imperfeito, mentia porque não admitia errar. Não aceitava arranhar a minha imagem. Somente mente quem se julga perfeito, e quer esconder seus vacilos.

Atravessei um tabu de décadas, deixei para trás antigas crenças que não entendo de onde tirei.

Todo homem é conservador e resiste às metamorfoses. Até se apaixonar.

“Não vou mudar”, portanto, é uma frase falsa. Apague de seu vocabulário.

Por amor, mudaremos sim. É só mudando que amadurecemos.

Por amor, nos revolucionamos sim.

Pode vir com sua teimosia, com seu orgulho, com sua arrogância, afirmando que é imutável, que não mexerá em seu temperamento, que tem seus hábitos, que foi assim toda a vida, mas mudará sim.

A convivência influencia, abre as ideias, destrói intolerâncias, força a mutação emocional.

Amor é exceção. É quando praticamos a exceção. Pode deixar as regras para os outros.

Quer uma maior declaração do que tentar fazer o que não admitia ou apreciar o que recusava?

Se você mantinha distância de água, por amor fará natação.

Se você alertou que jamais dirigiria um carro, por amor entrará numa autoescola.

Se você alimentava horror de avião, atravessará o oceano atlântico de seu medo.

No relacionamento que dá certo, promessa não é maldição. Ainda que tenha lavrado verdades no cartório, elas serão lavadas dentro de casa: vão desbotar, vão amarelar, vão desaparecer.

Já vi gente parar de beber, parar de fumar, parar de trapacear, parar de trair.

Vícios são abolidos, virtudes são regeneradas: mudaremos sim.

Encontraremos coragem no olhar terno e confiante de nossa esposa. Localizaremos vontade na cumplicidade ingênua do filho.

Mudaremos sempre. Mudaremos vários fins enquanto não vem nossa morte.

domingo, 12 de janeiro de 2014

Ai que preguiça (Drauzio Varela)


Nenhum animal desperdiça energia. Só o fazem atrás de alimento, sexo ou para escapar de predadores
O corpo humano é uma máquina desenhada para o movimento.
É dotado de dobradiças, músculos que formam alavancas capazes de deslocar o esqueleto em qualquer direção, ossos resistentes, ligamentos elásticos que amortecem choques e sistemas de alta complexidade para mobilizar energia, consumir oxigênio e manter a temperatura interna constante.
Em 6 milhões de anos, a seleção natural se encarregou de eliminar os portadores de características genéticas que dificultavam a movimentação necessária para ir atrás de alimentos, construir abrigos e fugir de predadores.
Se o corpo humano fosse projetado para os usos de hoje, para que pernas tão compridas e braços tão longos? Se é só para ir de um assento a outro, elas poderiam ter metade do comprimento. Se os braços servem apenas para alcançar o teclado do computador, para que antebraços? Seríamos anões de membros atrofiados, mas com um traseiro enorme, acolchoado, para nos dar conforto nas cadeiras.
A possibilidade de ganharmos a vida sem andar é aquisição dos últimos 50 anos. A disponibilidade de alimentos de qualidade acessíveis a grandes massas populacionais, mais recente ainda. A mesa farta e as comodidades em que viviam os nobres da Antiguidade estão ao alcance da classe média, em condições de higiene bem superiores.
Para quem já morou em cavernas, a adaptação a um meio com vacinas, saneamento básico, antibióticos, alimentação rica em nutrientes e tecnologia para fazer chegar em nossas mãos tudo de que necessitamos foi imediata. Em boa parte dos países, a expectativa de vida atingiu 70 anos, privilégio de poucos no tempo de nossos avós.
Os efeitos adversos desse estilo de vida, no entanto, não demoraram para surgir: sedentarismo, obesidade e seu cortejo nefasto: complicações cardiovasculares, diabetes, câncer, degenerações neurológicas, doenças reumáticas e muitas outras.
Se todos reconhecem que a atividade física faz bem para o organismo, por que ninguém se exercita com regularidade?
Por uma razão simples: descontadas as brincadeiras da infância, fase de aprendizado, nenhum animal desperdiça energia. Só o fazem atrás de alimento, sexo ou para escapar de predadores. Satisfeitas as três necessidades, permanecem em repouso até que uma delas volte a ser premente.
Vá ao zoológico. Você verá uma onça dando um pique para manter a forma? Um chimpanzé --com quem compartilhamos 99% de nossos genes-- correndo para perder a barriga?
É tão difícil abandonar a vida sedentária porque desperdiçar energia vai contra a natureza humana. Os planos para andar, correr ou ir à academia naufragam no dia seguinte sob o peso dos 6 milhões de anos de evolução, que desaba sobre nossos ombros.
Quando você ouvir alguém dizendo que pula da cama louco de disposição para o exercício, pode ter certeza: é mentira. Essa vontade pode nos visitar num sítio ou na praia com os amigos, na rotina diária jamais.
Digo por experiência própria. Há 20 anos corro maratonas, provas de 42 quilômetros que me obrigam a levantar às cinco e meia para treinar. Tenho tanta confiança na integridade de meu caráter que fiz um trato comigo mesmo: ao acordar, só posso desistir de correr depois de vestir calção, camiseta e calçar o tênis.
Se me permitir tomar essa decisão deitado na cama, cada manhã terei uma desculpa. Não há limite para as justificativas que a preguiça é capaz de inventar nessa hora.
Ao contrário do que os treinadores preconizam, não faço alongamento antes, já saio correndo, única maneira de resistir ao ímpeto de voltar para a cama. O primeiro quilômetro é dominado por um pensamento recorrente: "Não há o que justifique um homem a passar pelo que estou passando".
Vencido esse martírio inicial, a corrida se torna suportável. Boa mesmo, só fica quando acaba. Nessa hora, a circulação inundada de endorfinas traz uma sensação de paz celestial, um barato igual ao de drogas que nunca experimentei.


Por isso, caro leitor, se você está à espera da chegada da disposição física para sair da vagabundagem em 2014, tire o cavalo da chuva: ela não virá. Praticar exercícios com regularidade exige disciplina militar, a mesma que você tem na hora de ir para o trabalho.

Por um fio (ANTONIO PRATA)


Ninguém percebeu que o golpe das engrenagens já estava em marcha, na surdina, há mais de cem anos
Não foram poucos os cineastas que filmaram o levante das máquinas contra o Homem. Em "2001 - Uma Odisseia no Espaço", o computador HAL se cansava de computar e partia pra um motim solitário, dominando a nave com sua melancólica agressividade. Em "Blade Runner", androides superinteligentes saíam matando quem fosse preciso, em busca de uma recarga que estendesse seus curtos dias sobre a Terra. Em "O Exterminador do Futuro", os robôs se davam conta de que já não precisavam mais da gente pra passar WD-40 nas juntas e, sem muita explicação, resolviam nos eliminar do planeta. Nos três casos, o embate se dava no futuro distante e o pega pra capar (ou pra desparafusar) era explícito. Ninguém percebeu que o golpe das engrenagens já estava em marcha -e na surdina- há mais de cem anos. E como perceberia? Que mente anticlimática criaria filme tão triste em que os humanos seriam dominados não por gigantescos computadores, por replicantes perfeitos ou robôs soltando mísseis pelas ventas, mas por este aparelhinho ridículo chamado telefone?
Agora, olhando pra trás, tudo faz sentido; quase podemos ouvir o ruído da nossa liberdade sendo sugada, pouco a pouco, pelos furinhos do bucal. Ora, uma geringonça que permite que você seja encontrado em casa, a qualquer momento, por qualquer pessoa, só podia estar mal-intencionada. Eis o plano inicial do telefone: jogar uns contra os outros, deixando os funcionários sob o controle dos chefes, as sogras próximas das noras, as ex-namoradas a poucos cliques dos bêbados; os chatos experimentaram um salto no poder de alcance inédito desde a invenção da roda.
Felizmente, enquanto o inimigo estava preso à parede, como um cão à coleira, ladrava, mas não mordia. Bastava sair de casa e o cidadão tornava-se inatingível. Ah, as novas gerações não conhecem o Éden perdido! "Onde está fulano?", "Saiu", "Pra onde?", "Não sei" -e lá ia você com as mãos no bolso, assoviando, livre para beber sua cerveja no bar, para jogar boliche em Mongaguá ou fazer amor em Guadalupe.
Incapaz de nos seguir por aí, a máquina recrutou capangas: secretárias eletrônicas que esperavam o incauto cidadão voltar de suas errâncias para, como bombas-relógio, explodir afazeres, cobranças e más notícias. Bipes que, como drones, podiam bombardear um dos nossos em qualquer canto do globo.
Mesmo com bombas e drones, no entanto, até uns 20 anos atrás, ainda era possível escapar, não ouvir os recados, viver sem bipe. Então veio o golpe mortal, assustador como Daryl Hannah piruetando em direção ao Caçador de Androides, traiçoeiro como o dedo-espeto de mercúrio do Exterminador: o celular. O verdugo não estava mais apenas em nossos lares: morava em nosso corpo. Não só falava e ouvia como fotografava, filmava, enviava cartas, bilhetes, contas, planilhas, demitia funcionários, terminava casamentos, passava clipes do Justin Bieber, sermões do Edir Macedo e oferecia promoções de operadoras às 8h11 da manhã de domingo.
Lá por 2017, o celular já era ubíquo. Pelas ruas e ônibus, pelas escolas e repartições, parques e praias, só se viam seres humanos curvados, de cabeça baixa, servis como cachorrinhos a babar sobre as telas de cristal líquido, para onde quer que se olhasse -mas quem olhava?

quarta-feira, 8 de janeiro de 2014

Oferendas ao nada (Martha Medeiros)

·                                 Ao reler o livro A Alma Imoral, do rabino Nilton Bonder, encasquetei com uma expressão que, na primeira leitura, feita anos antes, não havia me despertado a atenção – e isso explica a razão de releituras serem necessárias, pois acontecem num outro momento da vida, em que o que não era relevante passa a ser. E nem preciso dizer que essa predisposição à releitura deveria existir para tudo, não só para livros.

Mas retornando ao ponto.

No livro, o rabino diz que muitos dos nossos sacrifícios e esforços são oferendas ao nada. Oferendas ao nada. Foi esta a expressão que me fez refletir sobre a quantidade de privações e abstinências a que nos submetemos e que têm serventia nula. Zero.

Todo novo ano que inicia é um convite a uma releitura de si mesmo. Você já passou pelos mesmos janeiros e fevereiros e marços que aí vêm, os mesmos carnavais e páscoas, as mesmas mordidas do Leão, as mesmas estações, o mesmo do mesmo. Se daqui para frente queremos extrair alguma novidade de fato, ela virá da nossa maneira de encarar a vida, de desfrutá-la com mais proveito.

Então, que se oferende flores a Iemanjá, já que rituais de otimismo e fé não fazem mal a ninguém, e que se oferte abraços e bons votos aos amigos, já que a alegria é uma energia que vale a pena ser trocada, e que a gente doe sempre o que temos de melhor, aquilo que nos movimenta – e não o que nos trava.

A timidez, por exemplo. O que a timidez tem feito por você? Ela impede que você se relacione olho no olho, que arrisque uma conversa com um desconhecido, que apresente aos outros seu trabalho, suas propostas, suas ideias. Orgulhar-se da sua timidez, colocando-a num altar, é fazer uma oferenda ao nada.

O que a culpa tem feito por você? Tem impedido você de se responsabilizar pelos seus atos e renegociar com a vida, tem trancafiado você em casa, obrigando-o a lidar incessantemente com questões passadas, tem envelhecido você, consumido você, paralisado você, e você ainda se ajoelha e reza para cultuá-la. Outra oferenda ao nada.

O que a insegurança tem feito por você? Nada. O que o medo tem feito por você? Nada.

O narcisismo, menos ainda. Cultuando esse deus chamado “Eu”, você não olha para fora, não exercita a solidariedade, não considera o sentimento dos outros, não compreende, não perdoa, não evolui. Oferece a si próprio uma homenagem patética, fica preso a uma energia que não circula, não realiza troca alguma. Joga flores para a solidão.

Que em 2014 consigamos romper com nossos receios sobre o que os outros irão pensar de nós, com o que não nos traz retorno, com o que não nos insere no universo de uma forma mais efetiva e bonita. Chega de cultuar impedimentos. Façamos, para variar, oferendas ao risco.


Eu.2 (FRANCISCO DAUDT)


Tal unidade não existe. São meus desejos acionados a cada momento que tirarão um rosto desse poliedro

"Carlos, eu não sou três, nem trinta e três, sou trezentos e trinta e três", escrevia Mário de Andrade para seu amigo, o poeta Carlos Drummond de Andrade ("A lição do amigo", 1982).
Ele se dava conta de como é difícil (e inútil) responder à pergunta "Quem sou eu?". Tal unidade não existe. São meus desejos acionados a cada momento que tirarão um rosto desse poliedro multifacetadíssimo, que é como roda o programa Eu em nossa mente.
Quem sou eu que te escreve, leitor? Acionado por desejos que contêm vaidade, vontade de cuidar, de ser claro e me fazer entender, de raiva dos psicogentes que falam enrolado e que se escondem atrás de um silêncio que lhes dê uma aura de importância (que não têm).
Pela vontade que a psicanálise cumpra um papel social, já que, como terapia, ela é irremediavelmente elitista (ok, um pouco atrás da neurocirurgia).
Enfim, essa é a cara que aqui se dá a tapa, que põe o bacalhau na porta da venda para o freguês ver se ele presta ou não, é este um Eu aqui presente.
"Eu" (Ego; Le moi; das ich) está em permanente risco de construção ou de consumição.
Ele se encontra entre poderosas forças internas e externas. As internas o pressionam com o desejo de agregar e de desagregar (Eros e o impulso de morte), esses desejos ardem por satisfação, de formas que "Eu" não considera possível, já que outro programa, o superego (o acima de mim; Le surmoi; das überich), vem com todo o seu poder de crítica, de culpa, de exigências de pureza e perfeição, como um censor cruel a dizer, "como você ousou pensar nesse desejo?".
Sim, para um superego poderoso existe pecado de pensamento, e seu poder vem de suas ferramentas punitivas (ameaças físicas, de "sifudências", de ridículo, e a pior delas, de culpa) a dizer, "olha só o que vai te acontecer se..."
As forças externas acabam por ser internas também, já que não temos outro jeito de lê-las senão por nossos sentidos, que as jogam para dentro e as modificam: ora para pior (baratas monstruosas), ora para menos (negação: um elefante na sala varrido para debaixo do tapete).
Tendo que atender esses guichês todos, nosso "Eu" vira um reles diplomata atarantado, ou, nas palavras de Fernando Pessoa: "Começo a conhecer-me. Não existo. / Sou o intervalo entre o que desejo ser e os outros me fizeram".
Já temos então um caminho para que o Eu exista, e não seja só um chinês dos pratos, eternamente apavorado e correndo de um lado para o outro para não deixar que nenhum deles caia.
É preciso que ele conheça seus inimigos, como dizia Sun Tzu, ou, como na síntese de Spinoza, que ele saiba mais sobre os cordéis que o manipulam.
Essa é a função da psicanálise e do conhecimento da natureza humana, de como a genética influencia nosso comportamento.
É o que meu Eu vem tentando fazer, primeiro em meu próprio benefício, depois em cada espaço que me abrem, seja aqui, seja no consultório, seja na TV.
A ética com que mais simpatizo é a utilitarista, de John Stuart Mill: a infelicidade dos outros atrapalha a minha felicidade, donde, quero que todos possam ser felizes.