domingo, 31 de março de 2013

Dialogando com a dor (Martha Medeiros)



  • Não simpatizo nada com a ideia de sentir dor. Para minha sorte, elas foram raras. Vivi dois partos normais que pareceram um passeio no parque, nada doeu, sobrou relaxamento e prazer. Quando penso em dor física, o que me vem à lembrança são as idas ao dentista quando era criança. Começava a sofrer já na noite anterior, sentia enjoos fortíssimos, não conseguia dormir, passava a madrugada chorando só de imaginar que no dia seguinte teria que enfrentar a broca e seu barulho aterrorizante. Estou falando de uma época em que crianças tinham cárie – hoje muitas nem sabem o que é isso, bendito flúor.


    Mas o que fazer em relação a esse tipo de dor? Se nos pega de surpresa (um tombo, uma cabeçada, um corte), suportar. Se for uma dor interna, tomar um analgésico e esperar que passe. Não se pode dialogar com a dor física. Músculos, nervos, órgãos, pele, essa turma não escuta ninguém. Ainda bem que não são dores constantes, e sim pontuais. De repente, somem.

    Já a dor psíquica não é tão breve. Pode durar semanas. Meses. Sem querer ser alarmista, pode durar uma vida. Porém, é mais elegante que a dor física: nos dá a chance de duelar com ela, ao contrário da outra, que é um ataque covarde. A dor psíquica possibilita um diálogo, e isso torna a luta menos desigual. São dois pesos-pesados, sendo que você é o favorito. Escolha suas armas para vencê-la.

    Armas?

    Por exemplo: redija cartas para si mesmo. Console-se escrevendo sobre o que você sente e depois planeje seus próximos passos. Escrever exorciza, invoca energia. Cartas e cartas para si mesmo, estabelecendo uma relação íntima entre você e sua dor – amanse-a.

    Terapia. A cura pela fala. Você buscando explicar em palavras como foi que permitiu que ela ganhasse espaço para se instalar, de onde você imagina que ela veio, quem a ajudou a se apoderar de você. Uma investigação minuciosa sobre como ela se desenvolveu e sobre a acolhida que recebeu: sim, nós e nossas dores muitas vezes nos tornamos um só. É difícil a gente se apartar do que nos dói, pois às vezes é a única coisa que dá sentido à nossa vida.

    Livros. O mais deslumbrante canal de comunicação com a dor, pois através de histórias alheias reescrevemos a nossa própria e suavizamos os efeitos colaterais de estar vivo. Ler é o diálogo silencioso com nossos fantasmas. A leitura subverte nossas certezas, redimensiona nossos dramas, nos emociona, faz rir, pensar, lembrar. Catarses intimidam a dor.

    Meditação. Religião. Contato com a natureza. Viagens. Amigos. Solidão. Você decide por qual caminho irá dialogar com a sua dor, num enfrentamento que, mesmo que você não saia vitorioso, ao menos fortalecerá seu caráter.

    Quem não dialoga com sua dor psíquica, não a reconhece como a inimiga admirável que é, capaz de torná-lo um ser humano melhor. A reduz a uma simples dor de dente e, como uma criança, desespera-se sozinho no escuro.

quinta-feira, 21 de março de 2013

O amor não acaba, nós é que mudamos (Martha Medeiros)



Um homem e uma mulher vivem uma intensa relação de amor, e depois de
alguns anos se separam, cada um vai em busca do próprio caminho, saem
do raio de visão um do outro. Que fim levou aquele sentimento? O amor
realmente acaba?

O que acaba são algumas de nossas expectativas e desejos, que são
substituídos por outros no decorrer da vida. As pessoas não mudam na
sua essência, mas mudam muito de sonhos, mudam de pontos de vista e de
necessidades, principalmente de necessidades. O amor costuma ser
amoldado à nossa carência de envolvimento afetivo, porém essa carência
não é estática, ela se modifica à medida que vamos tendo novas
experiências, à medida que vamos aprendendo com as dores, com os
remorsos e com nossos erros todos. O amor se mantém o mesmo apenas
para aqueles que se mantém os mesmos.

Se nada muda dentro de você, o amor que você sente, ou que você sofre,
também não muda. Amores eternos só existem para dois grupos de
pessoas. O primeiro é formado por aqueles que se recusam a
experimentar a vida, para aqueles que não querem investigar mais nada
sobre si mesmo, estão contentes com o que estabeleceram como verdade
numa determinada época e seguem com esta verdade até os 120 anos. O
outro grupo é o dos sortudos: aqueles que amam alguém, e mesmo tendo
evoluído com o tempo, descobrem que o parceiro também evoluiu, e essa
evolução se deu com a mesma intensidade e seguiu na mesma direção.
Sendo assim, conseguem renovar o amor, pois a renovação particular de
cada um foi tão parecida que não gerou conflito.

O amor não acaba. O amor apenas sai do centro das nossas atenções. O
tempo desenvolve nossas defesas, nos oferece outras possibilidades e a
gente avança porque é da natureza humana avançar. Não é o sentimento
que se esgota, somos nós que ficamos esgotados de sofrer, ou esgotados
de esperar, ou esgotados da mesmice. Paixão termina, amor não. Amor é
aquilo que a gente deixa ocupar todos os nossos espaços, enquanto for
bem-vindo, e que transferimos para o quartinho dos fundos quando não
funciona mais, mas que nunca expulsamos definitivamente de casa.

sábado, 16 de março de 2013

A bota amarela (Martha Medeiros)



Houve um tempo que eu detestava roupas amarelas. O que não deixava de ser estranho, uma vez que essa cor tem uma energia que combina com meu estado de espírito. Mas me fechei para o amarelo de uma forma ranzinza e implicante, e nesse fechamento creio que enclausurei uma parte importante de mim que passou a fazer falta. A parte em que deixo de imitar a mim mesma a fim de permitir que eu me surpreenda.

Explico. Durante a vida, a gente vai assimilando ideias, cultivando gostos, estabelecendo maneiras de ser, até que vira um ser humano aparentemente acabado: sou desse jeito, prefiro isso, não suporto aquilo, minha turma é essa, daqui não saio. Instalamo-nos numa bolha confortável e já temos as respostas prontas para quem vier bater à nossa porta. Na hora de enfrentar as demandas do dia a dia, nada mais simples: é só imitar aquela criatura com a qual nos habituamos. Já temos o manual de instruções decorado. Sou desse jeito, prefiro isso, não suporto aquilo, etc, etc.

Até que chega um momento em que você se dá conta de que parece um boneco em que deram corda e que vive repetindo as mesmas frases, os mesmos gestos, sem nenhuma reflexão a respeito. Está há anos imitando a si mesmo, pois é fácil e rápido, um modelo pra lá de conhecido. No entanto, você tem uma reserva de imaginação, ainda sem uso, que deve ser acionada para o que, às vezes, se faz necessário: rasgar o manual e escrever uma nova história a partir do zero.

Pois então estava eu, caminhando por uma calçada, de bobeira, quando passei por uma vitrine e vi um desses manequins sem rosto vestindo um casaco colorido, uma calça jeans e uma bota amarela. Meu olhar de Cyborg (ninguém foi criança impunemente) focalizou a bota, deu-lhe ampliação e fez com que ela se destacasse do conjunto. Eu não enxergava mais nada, só aquela bota amarela. E, como num transe, entrei na loja, pedi meu número e provei a bota, sem ter a mínima ideia onde, quando e com que coragem a usaria um dia. Eu simplesmente saquei meu cartão de crédito e comprei a metáfora da vida que eu pretendia levar dali por diante.

Se não usá-la, poderei colocá-la numa prateleira da parede para que ela me lembre de que não precisamos ter uma cor preferida, que nossas convicções podem ser reavaliadas sem prejuízo à nossa imagem, que o que a gente gostava antes não precisa ser aniquilado em detrimento de nossos novos e frívolos amores, que ninguém perderá sua essência só porque resolveu variar de personagem.

Insistir nas próprias convicções é um perigo. A certeza nem sempre é amiga da sanidade. Se eu fosse uma fashionista, ninguém estranharia, mas não sendo, há quem vá me achar meio maluca desfilando de bota amarela por aí. Não importa. Ela estará me conduzindo justamente ao saudável mundo do des

sábado, 9 de março de 2013

O que é ser mulher? (Martha Medeiros)



Sempre que chega essa época do ano, prometo a mim mesma: minhas próximas férias serão tiradas em março. Vou alugar um chalé em Ushuaia e só volto quando pararem de falar no Dia da Mulher. Sei que a data desperta reflexões, debates e tudo mais, porém me dou o direito de tentar evitar a pergunta que tantos pedem que a gente responda: “O que é ser mulher?”.

Basicamente, ser mulher é ter nascido com os cromossomos XX. Mas isso responde a questão? Responde, só que de um modo desaforado. Espera-se que colaboremos: “Ser mulher é ser mãe, esposa, profissional... “ Alguém ainda aguenta essa churumela?

Se é para refletir sobre o assunto, sejamos francos: ninguém mais sabe direito o que é ser mulher. Sofremos uma descaracterização. Necessária, porém inquietante. Entramos no mercado de trabalho, passamos a ter liberdade sexual e deixamos para ter filhos mais tarde, se calhar. Somos presidentes, diretoras, empresárias, ministras. Sustentamos a casa. Escolhemos nossos carros. Viajamos a serviço. Saímos à noite com as amigas. Praticamos boxe. O que é ser mulher, nos perguntam. Pois hoje, ser mulher é praticamente ser um homem.

Nossa masculinização é um fato. Ok, nenhuma mulher arredará o pé da zona de conforto que conquistou. Nossa independência é um ganho real para nós, para nossa família e para a sociedade. Saímos da sombra e passamos a existir de forma plena. E o mundo se tornou mais heterogêneo e democrático, mais dinâmico e afetivo, em suma: muito mais interessante. Mas não nos deram nada de mão beijada, ganhamos posições no grito, falando grosso. E agora está difícil reconhecer nossa própria voz.

“Sou mais macho que muito homem” não é apenas o verso de uma música de Rita Lee, é o pensamento recorrente de cérebros femininos. Alguém ainda conhece uma mulher reprimida, omissa, sem opinião, sem pulso? Foram extintas e deram lugar às eloquentes.

Nada de errado, repito. Acumulamos uma energia bivolt e isso tem nos trazido inúmeros benefícios – deixamos de ser um simples acessório, nos integralizamos. Mas essa nova mulher ainda se permitirá um segundinho de “cuida de mim”? Se os homens estão se permitindo ser frágeis, por que raios não nos permitimos também, nós que temos os royalties dessa condição?

É no amor que a mulher recupera sua feminilidade. É na relação a dois. É na autorização que dá a si mesma de se sentir cansada e de permitir que o outro tome decisões e a surpreenda. É no amor que voltamos a confiar cegamente, a baixar a guarda e a deixar que nos seduzam – sem sentirmo-nos ofendidas. Muitas mulheres estão desistindo de investir num relacionamento por se julgarem incapazes de jogar o jogo ancestral: eu, provedor; você, minha fêmea. Os homens sabem que não iremos mais nos contentar em receber mesada e ficar em casa guardando a ninhada, mas, na intimidade, que tal deixarmos a testosterona e o estrogênio interpretarem seus papeis convencionais?

Um amor sem tanta racionalidade, sem demarcação de território, sem guerra pelo poder. Amolecer de vez em quando, e com gosto. É onde ainda podemos ressuscitar a mulher que fomos, sem prejuízo a mulher que somos.

sexta-feira, 8 de março de 2013

O homem e a mulher (Victor Hugo)


O homem é a mais elevada das criaturas;
A mulher é o mais sublime dos ideais.
O homem é o cérebro;
A mulher é o coração.
O cérebro fabrica a luz;
O coração, o AMOR.
A luz fecunda, o amor ressuscita.
O homem é forte pela razão;
A mulher é invencível pelas lágrimas.
A razão convence, as lágrimas comovem.
O homem é capaz de todos os heroísmos;
A mulher, de todos os martírios.
O heroísmo enobrece, o martírio sublima.
O homem é um código;
A mulher é um evangelho.
O código corrige; o evangelho aperfeiçoa.
O homem é um templo; a mulher é o sacrário.
Ante o templo nos descobrimos;
Ante o sacrário nos ajoelhamos.
O homem pensa; a mulher sonha.
Pensar é ter , no crânio, uma larva;
Sonhar é ter , na fronte, uma auréola.
O homem é um oceano; a mulher é um lago.
O oceano tem a pérola que adorna;
O lago, a poesia que deslumbra.
O homem é a águia que voa;
A mulher é o rouxinol que canta.
Voar é dominar o espaço;
Cantar é conquistar a alma.
Enfim, o homem está colocado onde termina a terra;
A mulher, onde começa o céu.
Victor Hugo

quarta-feira, 6 de março de 2013

Amores maduros (Martha Medeiros)



  • Participei de um evento em São Paulo em que foi debatida a sexualidade nos dias atuais. Para não chegar lá com um blablablá muito pessoal, fiz o tema de casa: li o que psicanalistas e ensaístas tinham a dizer sobre o assunto. Encontrei muita coisa interessante, mas um aspecto me chamou a atenção: ao falar de amor e sexo, a visão da maioria dos teóricos abrange apenas o jovem e suas expectativas, principalmente no que diz respeito à importância da procriação na escolha do parceiro.


    O assunto é visto pela ótica de quem planeja construir um relacionamento e tudo o que isso inclui: a herança emocional deixada pelos pais, a pressão social de formar uma família, a influência da religião, a interferência dos filhos no convívio do casal, as regras impostas pela coletividade, a necessidade de firmar-se profissionalmente para alcançar estabilidade, enfim, todo o projeto de vida de quem está dando os primeiros passos nesse admirável mundo das convenções e ética comportamental.

    Tudo muito bem fundamentado, mas há um personagem que fica de fora desses estudos: é a pessoa de meia-idade que já se apaixonou umas 10 vezes, que já casou e descasou, teve filhos e talvez netos e que hoje está livre para iniciar um novo relacionamento, e de um jeito bem mais desencanado do que qualquer jovem de 20 anos.

    Ora, esse homem ou essa mulher já atravessou o desfiladeiro: pulou para o lado de lá. Os filhos estão criados, a vida estabilizada, as expectativas do tipo “até que a morte os separe” já foram arquivadas, não carece mais de aprovação externa e está dando uma banana para as convenções: chegou a hora de se divertir. Quem escreve sobre eles? Melhor dizendo: quem escreve sobre nós?

    Circulam por aí muitas interrogações sobre amor e sexo que pessoas vividas já responderam para si mesmas. Depois de terem cumprido boa parte das regras pré-estabelecidas, agora é o momento de viver 24 horas de cada vez, sem idealizações. Querem um amor descomplicado e sem amarras.

    Estamos com pouco suporte teórico, mas existimos. Não fazemos questão de endereço compartilhado, troca de alianças, contrato assinado. Não nos debulhamos diante de juras de amor eterno porque já entendemos “que o pra sempre, sempre acaba”.

    Não precisamos de um ninho de amor financiado para pagar a perder de vista, nem de vestido de noiva, nem de anel de compromisso, nem de muitos planos. Estamos quites com nossa juventude, já gastamos as ilusões, agora nos restou o melhor da vida: ela própria, simplesmente. A vida que temos na mão para consumo imediato. Sem discussões excessivas sobre moral, sem excesso de argumentações psicológicas, sociológicas ou com qualquer lógica.