sexta-feira, 27 de janeiro de 2012

Não canse quem te quer bem (Martha Medeiros)

Uns mais, outros menos, todos passam dos limites na arte de encher os tubos

Foi durante o programa Saia Justa que a atriz Camila Morgado, discutindo sobre a chatice dos outros (e a nossa própria), lançou a frase: Não canse quem te quer bem. Diz ela que ouviu isso em algum lugar, mas enquanto não consegue lembrar a fonte, dou a ela a posse provisória desse achado.

Não canse quem te quer bem. Ah, se conseguíssemos manter sob controle nosso ímpeto de apoquentar. Mas não. Uns mais, outros menos, todos passam do limite na arte de encher os tubos. Ou contando uma história que não acaba nunca, ou pior: contando uma história que não acaba nunca cujos protagonistas ninguém ouviu falar. Deveria ser crime inafiançável ficar contando longos causos sobre gente que não conhecemos e por quem não temos o menor interesse. Se for história de doença, então, cadeira elétrica.

Não canse quem te quer bem. Evite repetir sempre a mesma queixa. Desabafar com amigos, ok. Pedir conselho, ok também, é uma demonstração de carinho e confiança. Agora, ficar anos alugando os ouvidos alheios com as mesmas reclamações, dá licença. Troque o disco. Seus amigos gostam tanto de você, merecem saber que você é capaz de diversificar suas lamúrias.

Não canse quem te quer bem. Garçons foram treinados para te querer bem. Então não peça para trocar todos os ingredientes do risoto que você solicitou – escolha uma pizza e fim.

Seu namorado te quer muito bem. Não o obrigue a esperar pelos 20 vestidos que você vai experimentar antes de sair – pense antes no que vai usar. E discutir a relação, só uma vez por ano, se não houver outra saída.

Sua namorada também te quer muito bem. Não a amole pedindo para ela posar para 297 fotos no fim de semana em Gramado. Todo mundo já sabe como é Gramado. Tirem duas, como lembrança, e aproveitem o resto do tempo.

Não canse quem te quer bem. Não peça dinheiro emprestado pra quem vai ficar constrangido em negar. Não exija uma dedicatória especial só porque você é parente do autor do livro. E não exagere ao mostrar fotografias. Se o local que você visitou é realmente incrível, mostre três, quatro no máximo. Na verdade, fotografia a gente só mostra pra mãe e para aqueles que também aparecem na foto.

Não canse quem te quer bem. Não faça seus filhos demonstrarem dotes artísticos (cantar, dançar, tocar violão) na frente das visitas. Por amor a eles e pelas visitas.

Implicâncias quase sempre são demonstrações de afeto. Você não implica com quem te esnoba, apenas com quem possui laços fraternos. Se um amigo é barrigudo, será sobre a barriga dele que faremos piada. Se temos uma amiga que sempre chega atrasada, o atraso dela será brindado com sarcasmo. Se nosso filho é cabeludo, “quando é que tu vai cortar esse cabelo, guri?” será a pergunta que faremos de segunda a domingo. Implicar é uma maneira de confirmar a intimidade. Mas os íntimos poderiam se elogiar, pra variar.

Não canse quem te quer bem. Se não consegue resistir a dar uma chateada, seja mala com pessoas que não te conhecem. Só esses poderão se afastar, cortar o assunto, te dar um chega pra lá. Quem te quer bem vai te ouvir até o fim e ainda vai fazer de conta que está se divertindo. Coitado. Prive-o desse infortúnio. Ele não tem culpa de gostar de você.

segunda-feira, 23 de janeiro de 2012

"Seu Catatumba" (Luiz Felipe Pondé)


Ríamos juntos, o 'sobrenatural' e eu, levando um papo sobre mulher. Já falou com um exu?
Conversava eu com um exu numa festa num terreiro de candomblé quando, de repente, ele começou a falar de mulher. Grande especialista. Para quem é "consumidor" do sexo frágil, exus são grandes mestres. Você já conversou com um exu?
Recomendo conversar. Pura sabedoria popular, daquelas que marxistas menos obcecados chamariam de espírito menos alienado porque mais "orgânico". No caso, a palavra "espírito" tem duplo sentido, e um deles é espírito como "fantasma incorporado".
Não, exus não são demônios, são mais uma espécie de orixá que media as relações entre nós e os deuses. Alguns os relacionam a Hermes (Grécia), Mercúrio (Roma) e Thot (Egito), todos os três deuses mensageiros entre os homens e os deuses.
Como ele está em meio ao nosso mundo, é "melado" com ele, claro. Ocupa-se de nossas demandas e, por isso, são famosos por "trancarem ou abrirem as encruzilhadas da vida".
Claro que existe aí um sincretismo, porque este exu também tem um nome próprio de "quando viveu na Terra", e orixá africano "puro" nunca "viveu na Terra" como um encarnado.
As parceiras dos exus são as "pombagiras", mulheres que gostam de falar de amor e sexo, que, quando vivas, tiveram muitos amantes e que representam, assim como os exus, a dimensão mais carnal e erótica da vida.
Quando elas "descem" e começam a dançar, é bonito de ver e de escutar suas músicas de lamento de amor e de desejo de sexo.
Incrível como também nessa religião de origem africana, as mulheres são especialistas em amor e sexo e só pensam "naquilo".
Ingenuidade masculina pensar que somos mais obcecados por sexo do que elas. Se um dia você, meu caro leitor, tiver a chance de ouvir um papinho entre mulheres, você provavelmente vai se sentir um santinho inexperiente.
Então me dizia "Seu Catatumba", o nome que ele escolheu para si mesmo depois de assumir sua função na "falange" dos exus: "Não dá para entender as mulheres!". Imagine só: o cara é um deus numa religião africana e me disse isso num papo em que ele e eu fumávamos charutos cubanos e bebíamos cerveja.
Até os deuses sabem disso, menos elas. As mulheres são incompreensíveis. Mas essa incompreensibilidade não as atinge prioritariamente quando atuam como profissionais, mas principalmente quando relações de afeto estão envolvidas.
Dizia "Seu Catatumba": "Quando você está dizendo a verdade, ela não acredita; quando você está mentindo, ela acredita; quando chora, é porque ri por dentro; quando ri, é porque está triste; quando você acha assim, ela acha assado, quando você acha assado, ela acha assim; quando você vai para cá, ela vai para lá; quando você vai para lá, ela vem para cá; quando diz sim, é não; quando diz não, é sim".
Ríamos juntos, o "sobrenatural" e eu. Uma delícia levar um papo sobre mulher com o "sobrenatural", fumando legítimos cubanos (presente meu para ele) e cerveja, e ver que nem ele sabe nada sobre o que as mulheres querem.
Meu caro Freud, você está perdoado: nem deuses africanos sabem o que a mulher quer.
"Seu Catatumba", pelo que me disse, "morreu de mulher" (por causa de mulher). Aliás, morte bem dramática e digna de ópera: esfaqueado pelas costas. Como se dizia antigamente, "crime passional", hoje seria apenas "crime de gênero".
Teoria de gênero é a teoria segundo a qual não existe mulher e homem, mas sim "construções sociais" a serviço da opressão, assim como o mito do Papai Noel está a serviço das lojas de brinquedos. Para os tarados da teoria de gênero, um exu é apenas mais um machista.
Continuava "Seu Catatumba": "Morri de mulher; passei a vida atrás delas; tentei sempre fazer o que elas queriam; sempre amei as mulheres; sempre no meio delas, atrás delas; coisa gostosa é mulher; a gente homem é bicho bobo por mulher, e sempre acaba morrendo por causa de uma".
Não é novo o que me disse o exu, mas é encantadora a ideia de que mesmo ele, meio homem, meio deus, aliás, como uma espécie de Eros platônico em versão africana, confirma: não dá para entender as mulheres.
Você pergunta se eu acredito em exus? "Yo no creo en las brujas pero que las hay las hay."

Chegadas e partidas (Martha Medeiros)

Quem se queixa de que não há mais afeto no mundo precisa dar uma espiada no programa Chegadas e Partidas, que vai ao ar às quartas (hoje!), pelo canal GNT. Mais que merecido o prêmio que levou de Melhor Programa de Televisão em 2011, dado pela Associação Paulista de Críticos de Arte (APCA).

A apresentadora Astrid Fontenelle grava o programa dentro de um aeroporto, onde colhe depoimentos de pessoas que estão esperando alguém ou se despedindo de alguém. As histórias são simples e comoventes, provando que nossos dramas e alegrias particulares ainda são o que há de mais rico e raro por aí (sem falar que a trilha sonora é de primeira).

Na quarta passada, Astrid mostrou duas irmãs se despedindo de uma senhora de 80 anos que estava embarcando para Rondônia, sua terra natal. As duas irmãs conheciam essa senhora havia apenas três meses, quando se ofereceram em uma instituição de idosos para cuidar dela por um dia, como voluntárias.

Porém, se apegaram à senhora e a levaram para casa até que ficasse curada. A hóspede tinha um aneurisma e sofrera um AVC, apenas isso. Essas garotas são filhas de um motorista de ônibus, que também estava no aeroporto para acompanhar pessoalmente o retorno da senhora ao lar. Seria o primeiro voo de ambos – passagem paga através de uma cotização de vizinhos.

Esse pai e suas duas filhas se mobilizaram por uma senhora que não conheciam e choraram sua partida como se fosse alguém com quem tivessem convivido desde a infância. Como disse Astrid, tem gente que não cuida de uma mãe ou de um irmão doente, e no entanto essa família humilde assumiu a responsabilidade de cuidar de uma estranha, dando-lhe remédios e algo ainda mais terapêutico: amor.

Credo, escrever essa palavra – amor – me fez sentir um Tiranossauro rex. Constranger-se em falar de amor é um mau sintoma.

Chegadas e partidas. Um filho que nasce, um filho que morre. Uma paixão que brota na quinta-feira, uma paixão que termina no domingo. Desconhecidos que viram amigos de uma hora para outra, e amigos que somem no mundo sem dar mais notícias. Nossa vida é uma espécie de rodoviária – ou aeroporto, hoje dá no mesmo.

Todos esperando alguém que virá matar a saudade, que irá preencher um vazio, ou então se despedindo de alguém que buscará a felicidade em outro lugar, que irá trabalhar longe de casa. Pouco temos nos comovido no dia a dia, atucanados em ganhar tempo e em cumprir metas, então nosso afeto só tem transbordado, pra valer, no momento crucial de uma separação ou de um reencontro.

Um ano está partindo, outro ano está chegando. Eu, dentro da minha “rodoviária”, fico com os olhos marejados tanto pelo que deixo para trás quanto pelo que aguardo. Ou virei um merengue, ou estou ficando velha. Que seja. A boa notícia é que ainda me emociono.

terça-feira, 17 de janeiro de 2012

CONSELHOS DE UM CHAPELEIRO MALUCO

"Sim, Alice, abra as portas trancadas. E não tenha medo de entrar por elas: ter medo é sofrer por antecipação. Ponha o chapéu certo para cada ocasião e siga em frente. Não se preocupe se ele não combinar com suas roupas: o importante é proteger a cabeça.
Às vezes, você vai sentir que caiu no chão e o estrondo pode ser bem grande. Além disso, dependendo do tamanho que você tenha, a queda pode machucar muito. Acredite... é uma sensação pior do que encolher...
Quando isso acontecer (é inevitável que aconteça um dia), respire bem fundo e nunca, jamais, culpe a vida. A culpa é do mundo, que gira sempre mais e mais rápido, e pode nos causar tonturas e vertigens. Não existe fórmula mágica que evite isso. É só se levantar e recomeçar o caminho de onde estiver.
Deixar-se guiar pelo medo é usufruir apenas do azul num espectro multicor: é tentar achar o caminho olhando para o céu-sem-nuvens-do-sertão, ao meio-dia. Você vai queimar o nariz e ainda estará perdida.
Se o medo aparecer, coloque-o no bolso, e siga em frente. De vez em quando o olhe, como a um relógio, mas em seguida guarde-o de novo. Fora do bolso, o medo tende a crescer e engolir quem o segura. O bolso, Alice, o bolso é o lugar dele, não se esqueça.
E não ache que uma pessoa é só aquilo que mostra ser neste instante, lembre-se: por baixo da tinta, algumas rosas vermelhas são brancas. É só o tempo passar e isso se torna visível. Até com você, Alice. Até comigo.
Há quem ordene decapitações por todos os lados, é gente que não sabe para que servem os chapéus. Não se preocupe em excesso com essas pessoas, elas também jogam jogos cheios de regras. Basta que uma regrinha pequena mude e perdem a cabeça, você não precisará cortá-las (sim, Alice, porque as regras estão sempre mudando).
Não tenha medo de falar o que sente: palavras guardadas se liquefazem e, quando você menos esperar, estará se afogando nas suas lágrimas. Quando amar alguém, diga-lhe isso.
Vou contar uma coisa: existe a chance de, depois de confessar amor, vir a vertigem e a temível queda. Se acontecer, tome chá: faz bem à saúde. Não gosta de chá? Tome café, então. Ou chocolate quente. O importante é ter uma xícara e alguém que acompanhe você: nem podemos imaginar as conversas que duas pessoas podem ter em frente às suas xícaras. E quantos anos a mais de vida terão por isso.
Anotou tudo? Não se preocupe, o que eu disse não fará sentido algum se você não for capaz de traduzi-lo para sua língua interna.
Nunca ouviu falar nisso? Ah, você ainda tem muito o que aprender...
Numa sociedade, só se fala a língua nacional em eventos sociais. Mas cada um tem sua língua própria e se expressa nela de si para si. É um idioma muito pessoal, que nos faz compreender as coisas, tirar conclusões, apreender os sentidos ocultos das cores e dos sons. É uma língua sem palavras, como música de violinos.
Alguns nunca se apercebem dessa verdade e deixam de saber as respostas a muitas perguntas... Outros passam a vida tentando fazer traduções da língua interna para a língua materna... E escrevem poemas, contos, romances. São uns loucos, Alice, de uma loucura adorável.
E não ligue se as coisas não fizerem sentido: a vida pode acontecer em recortes... Agora não sabemos como juntá-los, mas um dia saberemos. Por isso, Alice, não jogue os retalhos fora, viver é uni-los, um a um."

quinta-feira, 12 de janeiro de 2012

CONTARDO CALLIGARIS - Agir para fazer bonito


Não agimos segundo princípios, mas para fazer bonito e para evitar punições. É decadência?

Os psicólogos desconfiam um pouco da expressão "força de vontade", à qual todo mundo recorre (sobretudo para denunciar as fraquezas -as nossas e as dos outros), mas sem que a gente saiba direito o que ela designa.
Por isso, estou lendo "Willpower, Rediscovering the Greatest Human Strength" (a força de vontade, redescobrindo a maior força humana), de R. Baumeister (um psicólogo que aprecio) e J. Tierney (jornalista do "New York Times"), ed. Penguin. O livro (p. 152) me fez conhecer o site www.stickK.com (que foi criado, aliás, para servir de amostra para pesquisas).
No site, o usuário se engaja contratualmente a cumprir um plano que implique um engajamento sério, se não uma reorientação de vida -desde o trivial, como emagrecer ou parar de roer as unhas, até metas, aspirações, desejos e ambições que justificam uma existência, passando por aquelas experiências irrenunciáveis que alguém quer ter ao menos uma vez, antes de morrer.
Ao escolher sua resolução, o usuário é convidado a nomear um árbitro: alguém que lhe seja próximo, que não seja um cúmplice qualquer e que possa, portanto, confirmar honestamente os progressos que o usuário declarará conseguir, no diário de seus esforços, que será acessível no site.
Além do árbitro, o usuário é também encorajado a escolher um número indefinido de amigos, que serão informados de seu propósito inicial e de seus avanços ou fracassos (eles terão acesso ao diário e aos comentários do árbitro).
Na hora em que ele declara seu propósito, o usuário também estabelece uma punição para si mesmo, caso ele fracasse.
Essa punição pode ser moral (um e-mail contando a história do malogro para uma lista de amigos e conhecidos) e/ou financeira -por exemplo, uma doação para a instituição que o usuário mais deteste (imaginemos que você pertença a uma igreja que é ferozmente contra a ideia do casamento gay e que você não consiga, sei lá, estudar seis horas por dia; pois bem, você passara a contribuir ao Grupo Gay da Bahia, de acordo com suas possibilidades financeiras).
A análise de 125.000 contratos feitos nos últimos três anos indica que os usuários que não nomearam um árbitro ou não se impuseram punições financeiras chegaram a um resultado positivo só em 35% dos casos. E a porcentagem de sucessos foi de 80% quando houve árbitro, amigos e punição financeira.
Existem experiências similares. Nas Filipinas, houve fumantes que depositavam a cada dia um dinheiro que eles perderiam se, depois de seis meses, houvesse rastos de nicotina em sua urina (o cigarro é poderoso: mais da metade perdeu seu depósito -em compensação, os que conseguiram pararam de fumar de vez). E houve a "Dieta da Humilhação Pública" de Drew Magary, que se engajou a tuitar seu peso a cada dia e conseguiu assim perder 30 quilos em cinco meses.
À primeira vista, em suma, não agimos segundo o que achamos certo, por "força de vontade", mas para evitar punições e vergonhas. Ou seja, não somos nunca verdadeira e corajosamente bons, apenas queremos fazer bonito e não perder dinheiro (ainda menos em prol de nossos inimigos).
Haverá moralistas para dizer que a sociedade contemporânea nos transforma nesses invertebrados morais -sem princípios, apenas interessados na opinião dos outros e em nosso interesse imediato. Mas, nos exemplos de Baumeister e Tierney, eu não vejo um sinal de decadência moral -ao contrário.
Claro, como muitos, eu mesmo acharia mais fácil ser dotado de um caroço moral, do qual eu pudesse dizer: "Este sou eu, quer os outros me reconheçam ou não, e tanto faz que eu seja recompensado ou punido por isso".
Mas não é o caso de sermos nostálgicos: nas sociedades tradicionais (presentes, passadas ou futuras), menos ainda do que hoje, os cidadãos tampouco dispõem de um caroço moral. Eles agem por medo da punição -agora ou no além. E eles agem por vergonha, diante de grupos instituídos de anciões, padres, pastores ou notáveis.
No conjunto, quanto à punição, eu prefiro arriscar o que eu mesmo apostei ao assinar meus contratos. E, quanto à vergonha, prefiro que seja diante dos pares com quem eu me engajei, ou então, diante da sociedade inteira.
Ou seja, sem ironia, como penso há tempos, nossa época é mais de progresso do que de decadência moral.

segunda-feira, 9 de janeiro de 2012

LUIZ FELIPE PONDE - Francesca


O adultério é um pecado, principalmente quando há amor; talvez, somente quando há amor

Lia eu o livro do marxista Terry Eagleton, "O Debate sobre Deus" (ed. Nova Fronteira, 232 págs., R$ 39,90), recém-publicado entre nós, quando topei com sua crítica ao cineasta Clint Eastwood.
Eagleton é um bom pensador, mas ninguém é perfeito. Seu livro é muito bom e merece ser lido, mas o que ele diz sobre Eastwood é uma grande bobagem.
Bobagem, aliás, comumente repetida por gente de bem, mas contaminada pelo que há de pior nos maus hábitos da esquerda: falar mal de algo que não conhece.
Eastwood não é um cineasta machão (como supõem Eagleton e quase toda a esquerda, que nada entende de ser humano, porque pensa o tempo todo na bobagem de luta de classes e oprimido x opressor). Pelo contrário, talvez ele seja um dos artistas que melhor entendem o desespero humano (masculino ou feminino), assim como suas virtudes mais sagradas, como a coragem, o autossacrifício e a generosidade.
Recentemente, revi seu maravilhoso filme "As Pontes de Madison" (1995), um longa feito para as mulheres, como muitos dizem.
Provavelmente ele pegou muita mulher por conta desse filme. Mulheres comumente não resistem a homens que parecem entendê-las. Uma das coisas mais lindas na mulher é a sua capacidade de erotizar o intelecto masculino.
Concordo que "As Pontes de Madison" seja um filme sobre o desejo feminino atado à rotina esmagadora de um casamento sem amor, mas nem tanto. Ele vai muito além de um drama especificamente feminino.
Sua personagem feminina principal, Francesca, vivida por Meryl Streep, não representa apenas as mulheres entediadas de casamentos conservadores (apesar de que sim, também as representa), mas sim todos os homens e mulheres que abrem mão de suas vidas afetivas em nome da família sem reclamar.
Se é verdade que Gustave Flaubert (1821-80), autor do clássico "Madame Bovary" (1857), disse um dia a famosa frase "Emma Bovary sou eu" (referindo-se à personagem principal de seu romance como representante universal da infelicidade humana), acho que muitos homens poderiam dizer, parafraseando esse grande romancista francês do século 19, "Francesca sou eu".
É um erro comum pensarmos que as angústias femininas não são universais. Tal erro é comum principalmente nas feministas, que, na realidade, não entendem nada de mulher nem de homem. Essa tendência a achar que os fantasmas femininos são "coisa de mulher", assim como menstruação e menopausa, é comum mesmo em gente capaz.
Vejamos. No filme em questão, ao final, Francesca (casada e mãe de dois filhos) abre mão de ir embora com Kinkaid, fotógrafo da "National Geographic", vivido pelo próprio Eastwood, e que se tornará seu amante por alguns dias, mas de quem ela jamais se esquecerá (nem ele se esquecerá dela).
No marasmo de uma vida interiorana americana, Francesca vive por poucos dias o pecado do adultério. Não se faz de vítima, mas sabe que peca. Peço aos inteligentinhos que nada entendem do conceito de pecado que vão brincar no parque.
O adultério é um pecado, principalmente quando há amor envolvido; talvez, somente quando há amor envolvido. E pecado aqui significa a consciência de que você não é dono de si mesmo. Suas reações, pensamentos e esquemas rotineiros de enfrentamento da vida entram em colapso. E dói.
E mais: é pecado porque o adultério faz você ver que existe alguém dentro de você que é despertado do sono por outra pessoa que não aquela que divide honestamente e cotidianamente o dia a dia da sua vida.
Aquela pessoa que envelhece com você ao longo de uma vida de "pequenos detalhes" (como diz nossa heroína Francesca) que, ao serem somados, representam uma parceria de confiança, retribuição e generosidade. A grandeza da pecadora Francesca só pode ser medida contra seu sacrifício em nome dos filhos e do fiel e dedicado marido.
A alma de um pecador é a sua consciência de que faz algo contra alguém que não merece. A pior tragédia do adultério se dá quando o traído é inocente.
Ao contrário do que muitas mulheres casadas pensam, muitos homens sacrificam suas vidas afetivas em nome delas e dos filhos, em silêncio. A virtude é sempre discreta.

domingo, 8 de janeiro de 2012

O que será que será? (Danuza Leão)


Quando uma mulher e um homem se veem pela primeira vez, pode acontecer uma faísca; é quando bate.
Ela surge de uma imediata e inconsciente avaliação de parte a parte; pode ser com o cunhado, o feirante, o padre, o marido da maior amiga, e independe de beleza, charme ou classe social.
Essa estranha sensação pode não dar em nada, mas quanto mais intimidade você tiver com você mesma -e com seus pensamentos-, mais rapidamente vai perceber o que está acontecendo, o que, aliás, é raro; a maioria das pessoas não identifica o que sente, até porque essa avaliação passa por uma fina peneira de censuras mentais -morais e sociais.
Desde que a pessoa seja do outro sexo -ou do sexo que lhe interessa-, perigo existe. É difícil botar em palavras sensações, mas tudo parte dessa faísca ser positiva ou não.
Se ela não acontece, nem se pensa no assunto; mas se é positiva e se tem tempo e coragem para brincar, a fantasia pode ir longe. Se estiver tomando uma bebida, aí então ela é ilimitada.
Algum dia você largou seu freio de mão mental e deixou sua imaginação livre, como devem ser as imaginações? Vamos admitir: é difícil.
E as convenções sociais, e os preconceitos, e o medo? Como aprendemos que se peca até em pensamentos, brecamos a maioria deles e depois não sabemos por que nossa cabeça é um nó. Mas se deixarmos eles correrem soltos, será que as coisas ficam mais fáceis? Há quem diga que sim.
Logo no primeiro olhar fica definido se o outro é ou não possível. A sensação não precisa ser recíproca, mas quando acontece, é imediatamente percebida pelos dois. Estabelece-se então uma energia que faz com que esse momento seja diferente, especial; o corpo fica tenso, o olho brilha, e você sente o prazer supremo, que é o de se saber viva.
Para alguns isso nunca acontece, e existe quem nunca soube, nem nunca vai saber, do que se trata.
Já com outros, acontece até no leito de morte; basta entrar uma enfermeira gostosa, que a corrente se estabelece.
Atenção: essa eletricidade é contagiosa, por isso tantos passam a vida sendo desejados, enquanto outros sofrem de um incurável desinteresse do sexo oposto.
Os mais corajosos, quando têm consciência do que está acontecendo, se deixam levar; aí começa o perigo, que para a mulher é sempre maior. Um homem que segue seu impulso e arrasta com ele alguém de classe inferior, digamos, é sempre compreendido -até porque eles sabem até onde podem ir.
Já se a mulher tiver um caso com um motorista de caminhão, será um escândalo (fora que elas têm a mania de se apaixonar, o que faz toda a diferença).
Aliás, pense nas coisas que devem acontecer na vida de nossos amigos mais íntimos e que nem podemos imaginar.
O tema é interessante, aliás, interessantíssimo, e vale sempre a pena saber a quantas se anda; se está viva ou se respira ligada nos aparelhos, que são a educação, a moral, a religião e os bons costumes.
Sendo assim, por mais que uma mulher seja um poço de virtudes, é temerário que ela fique perto de qualquer homem, porque homem e mulher, quando se juntam, ninguém sabe o que pode acontecer.
Esse é o perigo, e a graça. É a pulsão da vida.

quarta-feira, 4 de janeiro de 2012

2012 – O fim do mundo (KLEDIR RAMIL)

Segundo as leituras que andam fazendo do calendário Maia, em 2012 estaremos chegando ao fim do mundo. Gostaria de aproveitar a oportunidade e me despedir de todos. Foi um prazer ter vocês como companheiros de viagem durante esses anos em que estivemos nos equilibrando sobre essa bola simpática, que gira pelo céu a uma velocidade espantosa de 1.674 km/h.

Isso mesmo, é mais que a velocidade do som. Nunca consegui entender como é que a gente não cai e nem perde o equilíbrio, o que, a essas alturas, já não importa mais.

Eu achava que iria acabar antes do mundo e já estava me preparando para receber a recompensa que me foi prometida. Todas as religiões afirmam que a gente vai sair dessa pra outra melhor, desde que se comporte direito.

Fiz meu dever como um aluno aplicado e abri mão de tudo que era proibido. Me dediquei à prática das virtudes e, com enorme esforço, evitei os pecados. Alguns bem interessantes. Levei uma vida de santo, com o objetivo claro de alcançar a vida eterna, num quarto com vista pro infinito, um mínimo de conforto e regalias, sem ter que me preocupar com contas para pagar.

Agora, comecei a ficar preocupado. Caso se confirmem essas previsões de uma grande catástrofe definitiva, não sei se as promessas das igrejas serão cumpridas. Sim, porque uma coisa é morrer sozinho e ser recebido no céu com carinho e atenção.

Outra coisa é chegar um bando de 7 bilhões de almas querendo entrar no portão. Quem vai organizar isso? Será que tem lugar pra todo mundo? Será que o pessoal está preparado? Se em um teatro com lotação esgotada já é difícil segurar o público que ficou sem ingresso, imagina uma situação dessas.

Estou começando a me sentir como aquele cara que apostou na bolsa tudo o que tinha e saiu lesado. Tenho um patrimônio de vida que me daria direito a uma série de privilégios para todo o sempre. Mas se a coisa sair do controle, quem me garante? Mesmo que consigam organizar o engarrafamento do registro de entrada, periga eu ficar numa fila interminável com gente exaltada gritando “Isso é o fim do mundo!”. O que não deixaria de ser verdade.

Era só o que me faltava. Acho uma maldade com um cara que teve uma vida exemplar. Não era isso que eu esperava da vida eterna.

Tomara que as previsões estejam erradas.

segunda-feira, 2 de janeiro de 2012

2012, me surpreenda (Martha Medeiros)


  • Ano Novo é uma convenção. Os dias correm em sequência. De 31 de dezembro para 1º de janeiro ocorrerá apenas mais uma sucessão de 24 horas em que nada mudará, tudo seguirá do mesmo jeito. Pois é, sei disso, mas é um ponto de vista sem nenhuma alegria. Sou das que compram o pacote de Ano Novo com tudo que ele traz em seu imaginário: balanço de vida, reafirmação de votos, desejos manifestos e esperança de uma etapa promissora pela frente. Faço lista de projetos e tudo mais. Só que, quando chega o fim do ano e avalio o que consegui cumprir, descubro que o inesperado superou de longe o esperado. As melhores coisas do ano sempre foram aquelas que eu não previ. Então tomei uma decisão: nessa virada, não vou planejar coisa alguma e aguardar as resoluções que 2012 tomará para mim, à minha revelia.


    Mas poderia dar algumas sugestões?

    2012, anote aí: que as coisas mudem, mas não alterem meu estado de espírito. Não deixe que eu me torne uma pessoa ranzinza, mal-humorada, desconfiada, sem tolerância para as diferenças. Aconteça o que acontecer, que eu me mantenha aberta, leve e consciente de que tudo é provisório.

    Não quero mais. Quero menos. Menos preocupações, menos culpa, menos racionalismo. Pode cortar os extras. Mantenha apenas o estritamente necessário para me manter atenta.

    Está anotando?

    Espero que você esteja com ótimos planos para sua amiga aqui. Lançarei livro novo? Permita que eu seja abusada: dois. Sendo que nenhuma coletânea de crônicas, nem romance. Me ajude a variar.

    Que lugares conhecerei que ainda não conheço? Que pessoas entrarão na minha vida que, quando cruzo com elas na rua, ainda não as identifico? Que boas notícias ouvirei das minhas filhas? Quantos shows terei o prazer de assistir? Estou curiosa para saber o que você está aprontando para incrementar os meses que virão.

    Prometo que estarei preparada para receber o abraço afetuoso de quem antes me esnobava, para a frustração por tudo o que for cancelado, para voltar atrás nas minhas teimosias, para me dedicar a algo que nunca fiz antes. Estarei disposta a tirar de letra os espíritos de porco e assumir a responsabilidade pelas asneiras que eu mesma cometer. E estarei pronta também para uma grande surpresa, ou até duas. Três, meu coração não aguenta.

    Se a dor me alcançar, que me encontre com energia e sabedoria para enfrentá-la. Que eu não me torne dura diante dos horrores, nem sentimentaloide diante das emoções. 2012, os acontecimentos são da sua alçada. Da minha, cabe recepcioná-los com categoria.

    Quais são seus planos para mim, afinal? Talvez nem todos sejam do meu agrado, portanto, que eu não tenha constrangimento em dizer “não, obrigada”, caso seja preciso. Mas que eu me sinta mais predisposta para o sim.

    Se estamos de acordo, pode vir.