quinta-feira, 18 de dezembro de 2014

Carta ao Gael


Carta do Vovô Óz para o Gael

Gael, na cerimônia de casamento dos seus pais, li um texto que fala dos nossos sentimentos quando  percebemos que os filhos cresceram sem que esgotássemos neles todo o nosso afeto, e que o jeito era esperar que viessem os netos, pois o neto é a hora do carinho ocioso e estocado, não exercido nos próprios filhos, e que não pode morrer conosco. Então, fica fácil para você imaginar o tamanho da minha alegria com a sua chegada.

Bem vindo, Gael. O mundo é legal, desde que a gente saiba lidar com suas contradições. Tem muita beleza e miséria, dias de sol e temporal, tem  gente que nos diz não, mas faz isso para o nosso bem, e tem gente que nos diz sim, mas faz isso mais por preguiça do que por amor.

Tomara que você goste de futebol, porque a esta altura você já sabe em que família  foi se meter. Uma ala é corintiana  fanática e a outra é palmeirense doente, não queria estar no seu lugar. Mas sempre é possível escapar para o tênis, que também é um esporte fascinante. Aliás, acaba de ser inaugurada uma quadra novinha no seu condomínio, que espero um dia desfrutarmos juntos.

Desde que você saiu da barriga, está escutando votos de saúde e felicidade (mesmo que, por enquanto, tudo não passe de um barulho incompreensível e que você já esteja com saudade do silêncio uterino). Pois saiba que são votos clichês, mas os clichês são sábios: saúde e felicidade é tudo o que você precisa nessa vida. Só que tem que dar uma mãozinha. Então, pratique esportes, se alimente bem e não fume: a saúde já estará 50% garantida, o resto é sorte. Quanto à felicidade, o jeito é tentar fazer boas escolhas. Como fazê-las? Ninguém sabe ao certo, mas ser íntegro e não se deixar levar por vaidades e preconceitos promove uma certa paz de espírito. Ser feliz não é muito difícil, basta não ficar obcecado com esse assunto e tratar de viver. Quem pensa demais, não vive.

Você vai ser louco, apaixonado, babão por sua mãe. É natural. Mas não deixe que suas namoradas percebam.

Cada vez mais o dinheiro controla os desejos. É importante ganhá-lo, porque sem independência não somos donos de nós mesmos, mas para ganhá-lo você não precisa perder nada: nem escrúpulos, nem caráter, ou você estará se deixando comprar. Não se deixe controlar por ele. Pelo dinheiro, digo, porque pelos desejos você não só pode como deve se render. Mas não seja um heartbreaker profissional, a mulher da sua vida pode lhe escapar das mãos.

Ia esquecendo: estude inglês.

Uma vida sem arte é uma vida árida, sem transcendência, um convite à mediocridade. Então desfrute de muita música e cinema, e quando suas garotas tentarem lhe arrastar para um teatro, vá sem reclamar, há 30% de chance de você gostar. Importante: se alguém disser que ler é chato, mande se entender comigo.

Tédio é para os sem inspiração. O mundo oferece estradas, passeatas, eleições, aeroportos, ondas, montanhas, campeonatos, vestibulares, desafios, churrascos, festivais, feriadões, roubadas, gargalhadas, madrugadas e declarações de amor. É assim mesmo, tudo misturado e barulhento. A saudade do silêncio uterino vai lhe surpreender muitas outras vezes. Busque esse silêncio dentro de você.

Então é isso, Gael, seja corajoso e grato: nascer é um privilégio concedido a poucos, ainda que sejamos bilhões. Não desperdice a chance e esteja consciente de uma coisa: que sem alegria não vale a pena.

(*) Adaptado do texto "Carta ao Rafael", de Martha Medeiros