sábado, 26 de janeiro de 2013

Aprendendo a viver (Danuza Leão)



Não seria melhor viver só e ter a liberdade de só poder ferir a si mesma, sofrendo as consequências de seus atos?




O TEMPO PASSA, a gente se pergunta e não consegue saber a resposta certa: afinal, homem e mulher nasceram para viver juntos, sim ou não?
Difícil saber; depois do tempo da paixão, grande parte das mulheres casadas anseia por um marido que viaje regularmente, chegue bem tarde em casa e não perca um jogo de futebol aos domingos.
Não, elas não querem necessariamente namorar, nem necessariamente viver sozinhas, mas bem que gostam, pelo menos às vezes, de serem donas de seu nariz e não terem que dar satisfação de suas vidas a ninguém -muito menos para os maridos. E comandar o controle remoto da televisão, coisa impossível quando se mora com um homem.
Elas vivem a vida em dois turnos: um quando estão com eles, outro quando estão sem, e até os assuntos são diferentes. Adoram almoçar com as amigas, dizer bobagens, fingir que são solteiras e não têm hora para chegar, coisa que todos exigem das esposas -e a palavra no caso é essa mesma: exigem.
Não passa pela cabeça delas o adultério, não pela de todas. Mas que dá vontade de ser paquerada como nos antigos tempos -ah, que coisa boa. E mesmo adorando os filhos, que delícia seria ir para Búzios no fim de semana sem um pingo de responsabilidade, podendo tomar todas as caipirinhas que tiver vontade, sem pensar que na segunda-feira o caçula tem judô às oito e meia.
Responsabilidade: o maior fardo que existe no mundo, seja no trabalho, na família, na condução de uma casa. Tudo começa do começo, quando se vira uma pessoa adulta, portanto responsável por si mesma. Ah, como era bom ser criança e ter alguém para marcar a hora do dentista, por o termômetro, dar o antibiótico de oito em oito horas, telefonar para o médico e contar da febre, da dor de garganta.
Como é difícil ter que se cuidar, saber que se não fizer as coisas direito e tudo der errado, a culpa é só sua. A responsabilidade de ter um marido e manter um comportamento impecável para nunca deixá-lo mal diante da família, dos amigos, dos companheiros de trabalho; e a maior de todas, ter alguém que te ama e cujo sentimento você deve respeitar, passando tantas vezes por cima dos seus próprios, para não machucar, não ferir.
Não seria melhor viver inteiramente só e ter a liberdade suprema de só poder ferir a si mesma, sofrendo as consequências de todos os seus atos, mesmo os mais delirantes? Ter o direito de ser louca e totalmente irresponsável, quando der na telha?
Mas também seria tão bom ter alguém ao lado para dividir as dúvidas e os sofrimentos, as alegrias e as felicidades -se é que esse "dividir" existe mesmo, não é coisa inventada.
O problema é que, quando se está com alguém, se sonha com a solidão; por outro lado, quando se está só, fica-se imaginando o quanto seria bom estar com alguém, sobretudo quando o telefone não toca e não aparece um amigo para convidar para tomar um chope.
Mas para tudo na vida é preciso ser inteligente, até para ser feliz; por isso, se você está sozinha, lembre-se de todas as coisas insuportáveis da vida em comum. E quando estiver debaixo do edredom com o homem amado, pense no quanto é horrível a solidão, quando se está sem um amor.
Apenas uma maneira de ser prática e viv

segunda-feira, 21 de janeiro de 2013

Batalha entre duas generosidades - Martha Medeiros


Quando vejo reportagens femininas que buscam desvendar o que as mulheres levam na bolsa, sempre me surpreende a falta de um objeto de uso fundamental. Está lá o batom, o celular, o iPod, mas e um livro? Nem pensar? O mercado editorial já assimilou a potencialidade dos pockets books e, até onde sei, eles vendem bem. Como não venderiam? São pequenos, baratos e oferecem títulos de primeira. Eu sempre carrego um dentro da bolsa, porque nunca se sabe quando terei que encarar uma fila ou uma sala de espera.

O último livro que andou partilhando a intimidade da minha bolsa foi A Felicidade Conjugal, de Tolstoi. Com essa obra, o russo, além de exterminar de vez a discussão boba sobre diferenças entre literatura feminina e masculina (a gente jura que é uma mulher escrevendo), consegue revelar de forma brilhante (e ao mesmo tempo, perturbadora) o segredo que mantém tantos casais unidos: homens se sacrificam, mulheres se sacrificam, e fica mais tempo junto o casal que tiver o maior potencial de generosidade.

Parece, mas não é uma notícia alentadora. É literariamente bonito, daria uma boa novela das seis, mas, de minha parte, meu sonho não é um homem que sacrifique seus desejos em detrimento dos meus, e vice-e-versa. O que Tolstoi define elegantemente como uma “uma batalha entre duas generosidades”, nós, os mundanos, chamamos de “concessões”. Essa palavra mais sugere uma batalha jurídica do que de generosidade, mas é tudo a mesma coisa.

Óbvio que temos que conceder. O tempo inteiro, desde que nascemos. A começar pelo âmbito familiar, ainda que nesse ringue as regras sejam criadas coletivamente. Mas quando casamos com o senhor fulano de tal, ou com a dona sicrana da silva, que vieram sabe-se lá de onde e amparados por quais fundamentos, a concessão vira o calcanhar de Aquiles do contrato. Ele adora dançar, você odeia música alta. Ela adora natureza, você não suporta passarinho. Mas se amam, olha que situação. Quem cede quanto?

A felicidade conjugal só sobrevive quando os dois dão sua cota de sacrifício da forma menos dolorida possível. Ninguém morre se tiver que dançar um pouquinho ou se tiver que passar um final de semana no sítio, isso é cláusula previamente acertada e nem comporta a rigidez da palavra “sacrifício”.

Mas e se você tiver que enfrentar uns “nunca mais” pela frente? E se os seus sonhos de juventude tiverem que ser enterrados? E se o seu trabalho ficar comprometido? E se sua vida virar um palco e você tiver que assumir um personagem 24 horas por dia? E se sentir saudades de alguém que você já não é mais? Não pense que isso é dramatismo. É mais comum do que se imagina. Tem pessoas que renunciam a si mesmas e só percebem isso quando não há mais retorno possível.

Generosidade, mesmo, é você permitir e incentivar que o amor da sua vida seja exatamente como ele é, e ele retribuir na mesma moeda, sem querer mudar você nem um naquinho assim.

Mas esse romance ainda está para ser escrito.

segunda-feira, 14 de janeiro de 2013

Filósofo Simon May fala sobre o amor



Viver dignamente traz mais alegria que a busca pelo par ideal, diz filósofo

Depois de publicar "Amor - Uma História", o filósofo Simon May, professor do King's College, em Londres, prepara seu próximo livro: "Love - A Phenomenology" (amor, uma fenomenologia). May é conhecido fora do Brasil pela obra "Thinking Aloud" (pensando em voz alta, 2009), que, na época, foi escolhida como um dos livros do ano pelo jornal "Financial Times". Em entrevista à Folha, ele fala como a filosofia pode dar respostas sobre o amor.
Folha - São Paulo está cheia de cartazes pedindo "mais amor". Essas manifestações tem a ver com a sua tese sobre o amor enquanto religião?
Simon May - Sim, isso tem a ver com enxergar o amor como a solução para todos os problemas. Uma cidade como São Paulo deve ter problemas bem maiores que a falta de amor, mas hoje as pessoas subestimam o poder das questões sociais como componentes da felicidade. Viver em paz, com emprego e dignidade, provavelmente traz mais alegria duradoura que o amor.
Se o amor é uma religião, como você explica o troca-troca de parceiros? Crentes não trocam de igreja muitas vezes.
Trocar muito de parceiro não contradiz a tese de que o amor é uma religião. Um dos motivos para tanta troca é que estamos tentando encontrar o par perfeito, a pessoa que irá preencher a ânsia por um amor incondicional, eterno. Como a ideia toda é impossível, trocamos de par a vida inteira. Quando os relacionamentos terminam, em vez de culpar o modelo, culpamos a outra pessoa.
Você escreve que tudo mudou no último século, menos a visão sobre o amor. O sentimento não é mais valorizado hoje?
O amor fica cada vez mais valorizado à medida que a sociedade se torna mais individualista e outras formas de pertencimento no mundo declinam. O que não mudou é a tentativa de comparar o amor humano ao amor divino. Isso gera pensamentos do tipo "se você me amasse incondicionalmente, não faria x e y".
Existe um modelo de amor mais saudável?
O amor é a paixão que sentimos por aqueles que suscitam em nós a esperança de uma fundamentação indestrutível para a nossa vida. É uma necessidade de raízes, de encontrar um sentido para nossa própria existência. Poucas pessoas podem nos dar essa segurança, e é por isso que o amor é tão raro.
A solução é compreender o sentimento do modo correto e, assim, não ficar tão arrasado quando o amor se mostrar destrutivo ou não correspondido. Também é preciso buscar o amor em outros lugares, não só em um parceiro sexual.
Hoje, amor é tema de livros de autoajuda: as pessoas querem resolver seus problemas. É papel da filosofia dar respostas?
Faz tempo que o amor não é um tema central para a filosofia. Até o século 17 era importante para os grandes filósofos: Platão, Aristóteles, Agostinho e outros trabalharam em definições detalhadas sobre a natureza do amor. Hoje, só questionamos qual seria a melhor forma de alcançá-lo ou de mantê-lo.
Acho que é papel da filosofia sugerir alguns caminhos, sim. O mais importante é: certifique-se de que você e seu parceiro têm um profundo sentimento de enraizamento um no outro. Esse sentimento é inconfundível, é como se os dois fossem maçãs da mesma cesta, mesmo que cada um tenha vindo de uma origem muito diferente.

    sexta-feira, 11 de janeiro de 2013

    AMOR - LINHA DO TEMPO (Folha Equilíbrio)



    Pré-história
    Desconhecia-se o vínculo entre sexo e procriação e a noção de casal. O matrimônio funcionava por grupos: dentro de uma mesma tribo todos pertenciam a todos. As crianças tinham vários pais e várias mães
    Grécia
    A figura feminina era desvalorizada, só o homem podia ser amado. Surge a efebia, relação entre um homem mais velho e um adolescente. O cidadão grego tinha à sua disposição a mulher, a concubina e os efebos
    Roma
    Surge a ideia de que o homem deve ser prudente e controlado. O romano evitava sentimentos apaixonados. Homens não podiam fazer sexo oral em mulheres, afinal, um soldado não deveria servir a uma mulher
    Antiguidade tardia
    A mulher passa a ser vista como má. Acredita-se que a ela seja sexualmente insaciável por isso precise de muitos homens. O cristianismo começa a valorizar a castidade e a considerar o ato sexual imundo
    Idade Média
    Berço do amor cortês, pai do amor romântico. O homem devia servir à dama, suplicar por sua atenção. O amor é calcado na idealização da pessoa amada, que deve ser perfeita e inacessível. Não se pode casar por amor
    Renascença
    A mulher ainda só tem duas opções: ou é santa ou é feiticeira, objeto de adoração ou depósito de uma luxúria abominável, mas surgem precursoras do feminismo, como a poeta francesa Louise Labé
    Iluminismo
    O amor sai de moda entre as pessoas mais instruídas. É preciso deixar que a razão guie todas as decisões. Surge a galanteria, uma rotina socialmente exigida e cheia de rituais que envolviam sedução e adultério
    Romantismo
    A sociedade burguesa passa a valorizar a sensibilidade, um estado de espírito hiperemocional. Era bonito estar pálido, sofrer de insônia ou de melancolia. Havia manuais que ensinavam as mulheres a desmaiar
    Primeira metade do século 20
    O carro e o telefone mudaram a forma como os casais se relacionavam. Finalmente, é possível marcar um encontro e ter um pouco de privacidade, longe dos portões das casas e dos olhares das famílias
    Pós-guerra
    O casamento por amor vira regra. A busca, agora, é por um par ideal. Inconscientemente, predetermina-se como deve ser o relacionamento, o que cada pessoa deve sentir e como reagir
    Anos 60
    É a década da evolução sexual: surge a pílula, popularizam-se os movimentos gay e feminista. A busca pelo prazer compete com a busca pelo amor. Surgem novos tipos de relacionamento como o casamento aberto

      terça-feira, 8 de janeiro de 2013

      Sentimental demais (Folha Equilíbrio)



      Para filósofo britânico, é preciso rever os conceitos sobre o amor romântico, hoje tão valorizado que chega a ocupar o lugar da religião no mundo ocidental
      Fotos Danilo Verpa/Folhapress
      Arte sobre foto de pichação em muro no bairro de Perdizes, em SP
      Arte sobre foto de pichação em muro no bairro de Perdizes, em SP
      JULIANA CUNHACOLABORAÇÃO PARA A FOLHAO amor está longe de ser a solução para o fim do sofrimento humano. Pelo menos aquele amor romântico de filmes e novelas.
      Quem defende essa ideia é o filósofo Simon May, professor do King's College, em Londres, e autor de "Amor - Uma História", lançado aqui no fim do ano passado.
      Para ele, o sentimento está supervalorizado: ocupou o espaço deixado pela religião e se tornou o novo deus do Ocidente.
      "Somos todos fanáticos. Exigimos que nosso sentimento seja eterno e incondicional e camuflamos sua natureza condicional e efêmera. É a mais nova tentativa humana de roubar um poder divino", disse, em entrevista à Folha.
      De acordo com o filósofo, a religião do amor incondicional é reforçada pela cultura. Ele cita filmes em que um dos personagens não quer saber de namorar e só pensa na carreira. No final, ele sempre descobre que sem uma paixão sua vida não será completa.
      Tanta pressão em cima de um sentimento frágil e humano, para o autor, termina em frustração coletiva. "Nada humano é verdadeiramente incondicional, eterno e completamente bom. Essa é uma forma de amor que só Deus pode ter. Esse entendimento gera expectativas altas, que relacionamentos cotidianos não são capazes de suprir."
      O mesmo defende o filósofo alemão Richard David Precht, autor de "Amor - Um Sentimento Desordenado". "O papel de nos aceitar por inteiro, com todos os nossos defeitos e limitações, cabia a Deus. Hoje buscamos alguém que possa cumprir essa função e ainda dormir conosco. É realmente pedir demais", diz.
      ROMANTISMO
      No livro, Simon May traça um histórico das diferentes concepções de amor ao longo da história e atribui ao romantismo do século 19 a culpa pela supervalorização do sentimento.
      Segundo ele, desde então, enquanto a sociedade mudou, a idealização do sentimento continua como no passado. Inovações como a liberação sexual, a pílula e a luta pelos direitos dos gays só possibilitaram que mais pessoas passassem a perseguir o amor ideal ao incluir homossexuais e divorciados no jogo.
      A psicanalista Regina Navarro Lins também pesquisou a história do sentimento, mas chegou a uma conclusão diferente. "O amor romântico está com os dias contados. Domina filmes e novelas, mas está saindo de cena na vida real", afirma ela, que em 2012 publicou "O Livro do Amor", obra em dois volumes.
      Para a psicanalista, o futuro aponta para o "poliamor" e para formas menos convencionais que o casamento. "As pessoas estão mais individualistas, buscam sua própria satisfação. Isso irrita os conservadores, mas aumenta as chances de cada um ser feliz", diz.
      Navarro Lins, no entanto, concorda com Simon May ao considerar o amor romântico irreal. "Você conhece uma pessoa, atribui a ela características que ela não possui e passa a vida infernizando a criatura, querendo que ela seja como você imaginou", diz a psicanalista.
      A troca de exigências gera um "rancor matrimonial", uma sensação de que o parceiro nos enganou ao não cumprir nossas expectativas.
      Simon May não acredita que a solução seja dar menos importância ao sentimento, mas rever os conceitos. "Precisamos mudar nossas expectativas, não reduzi-las. É preciso abandonar a ideia de que amor implica em intimidade incondicional, benevolência e altruísmo. Para mim, amor é algo completamente condicional. Ele só existe enquanto a outra pessoa parece dar sentido à nossa existência."

        domingo, 6 de janeiro de 2013

        O pensamento nas pernas (Martha Medeiros)



        Sempre acreditei que, se eu quisesse transformar alguma coisa, ou a mim mesma, teria antes que passar por uma racionalização profunda e, posteriormente, por uma compreensão dos fatos. Ou seja, primeiro, pensar bastante para, então, compreender. Cumprindo essas duas etapas, atingiria a serenidade buscada, fosse nas questões amorosas, familiares, profissionais, existenciais. A compreensão, como num passe de mágica, soltaria os fios enovelados e só então eu poderia me modificar.

        Acontece que pensar demais cansa. Afirmo com a experiência de uma maratonista cerebral: eu vivia sempre no módulo on, com o cérebro ligado na tomada, descansando só quando dormia, e ainda assim com um olho fechado e outro aberto. Se pensar conduzia à compreensão, bora pensar, para poder entender. Sem entender, acreditava que meu barco ficaria à deriva, noites e dias sob as intempéries, sem atracar em lugar algum.

        Tanta coisa serve de cais: um casamento, uma promoção, uma cura, um projeto, uma bolada, um filho. Estamos sempre indo ao encontro de alguma coisa sensacional que ainda não sabemos o que é, nem se iremos encontrar mesmo. Pois, diante desse imenso ponto de interrogação que é o futuro de todos nós, reformulei minhas crenças: estou me dando o direito de não pensar tanto, de me cobrar menos ainda, e deixar para compreender depois. Desisti de atracar o barco e resolvi aproveitar a paisagem.

        Primeiro mude, a compreensão virá depois. É mais ou menos o que a filosofia de Nietzsche sugere. Ninguém muda apenas através do pensamento. A transformação meramente intelectual é uma presunção, não existe de fato. É preciso colocar o pensamento nas pernas e agir. O corpo é que nos leva para uma nova vida, e não a razão, diz o filósofo.

        Recentemente os integrantes do programa Saia Justa discutiram o que é drama e o que é tragédia, e chegaram à conclusão de que o drama te encarcera, enquanto a tragédia, por mais dolorosa que seja, te coloca em movimento: você sai dela diferente. Do drama você não sai: você fica remoendo, remoendo, remoendo. Excesso de racionalização engessa o sentimento e não te leva pra fora, pra frente.

        De Nietzsche a Saia Justa é uma distância e tanto, reconheço, mas toda filosofia é bem-vinda, seja acadêmica ou de mesa de bar, de programa de tevê, de coluna de jornal. Viemos ao mundo para aquilo que os intelectuais rejeitam que se fale em público (mas falo, baixinho: ser feliz). E a felicidade não é uma ilha paradisíaca onde nosso barco um dia atracará. A felicidade não é terra firme: ela é o próprio mar.

        Passamos a vida inteira perseguindo a felicidade, sem reparar que ela está justamente na perseguição. O pensamento nas pernas. O movimento. A ação. Não há muito a compreender além disso.

        quinta-feira, 3 de janeiro de 2013

        Me engana que eu gosto (FERREIRA GULLAR)



        O próprio Lula admitiu que houve o mensalão ao pedir desculpas publicamente em discurso à nação
        Muitos de vocês, como eu também, hão de se perguntar por que, depois de tantos escândalos envolvendo os dois governos petistas, a popularidade de Dilma e Lula se mantém alta e o PT cresceu nas últimas eleições municipais. Seria muita pretensão dizer que sei a resposta a essa pergunta. Não sei, mas, porque me pergunto, tento respondê-la ou, pelo menos, examinar os diversos fatores que influem nela.
        Assim, a primeira coisa a fazer é levar em conta as particularidades do eleitorado do país e o momento histórico em que vivemos. Sem pretender aprofundar-me na matéria, diria que um dos traços marcantes do nosso eleitorado é ser constituído, em grande parte, por pessoas de poucas posses e trabalhadores de baixos salários, sem falar nos que passam fome.
        Isso o distingue, por exemplo, do eleitorado europeu, e se reflete consequentemente no conteúdo das campanhas eleitorais e no resultado das urnas. Lá, o neopopulismo latino-americano não tem vez. Hugo Chávez e Lula nem pensar.
        Historicamente, o neopopulismo é resultante da deterioração do esquerdismo revolucionário que teve seu auge na primeira metade do século 20 e, na América Latina, culminaria com a Revolução Cubana. A queda do Muro de Berlim e o fim da União Soviética deixaram, como herança residual, a exploração da desigualdade social, já não como conflito entre o operariado e a burguesia, mas, sim, entre pobres e ricos. O PT é exemplo disso: nasceu prometendo fazer no Brasil uma revolução equivalente à de Fidel em Cuba e terminou como partido da Bolsa Família e da aliança com Maluf e com os evangélicos.
        Esses são fatos indiscutíveis, que tampouco Lula tentou ocultar: sua aliança com os evangélicos é pública e notória, pois chegou a nomear um integrante da seita do bispo Macedo para um de seus ministérios. A aliança com Paulo Maluf foi difundida pela televisão para todo o país. Mas nada disso alterou o prestígio eleitoral de Lula, tanto que Haddad foi eleito prefeito da cidade de São Paulo folgadamente.
        E o julgamento do mensalão? Nenhum escândalo político foi tão difundido e comprovado quanto esse, que resultou na condenação de figuras do primeiro escalão do PT e do governo Lula. Não obstante, o número de vereadores petistas aumentou em quase todo o país.
        E tem mais. Mal o STF decidiu pela condenação de José Dirceu, José Genoino e Delúbio Soares, estourava um novo escândalo, envolvendo, entre outros, altos funcionários do governo, Rose Noronha, chefe do gabinete da Presidência da República em São Paulo e pessoa da confiança e da intimidade de Lula.
        Em seguida, as revelações feitas por Marcos Valério vieram demonstrar a participação direta de Lula no mensalão. Apesar de tudo isso, a última pesquisa de opinião da Datafolha mostrou que Dilma e Lula continuam na preferência de mais de 50 % da opinião pública.
        Como explicá-lo? É que essa gente que os apoia aprova a corrupção? Não creio. Afora os que apoiam Lula por gratidão, já que ele lhes concedeu tantas benesses, há aqueles que o apoiam, digamos, ideologicamente, ainda que essa ideologia quase nada signifique.
        Esse é um ponto que mereceria a análise dos psicólogos sociais. O cara acha que Lula encarna a luta contra a desigualdade, identifica-se com ele e, por isso, não pode acreditar que ele seja corrupto. Consequentemente, a única opção é admitir que o Supremo Tribunal Federal não julgou os mensaleiros com isenção e que a imprensa mente quando divulga os escândalos.
        O que ele não pode é aceitar que errou todos esses anos, confiando no líder. Quando no governo Fernando Henrique surgiu o medicamento genérico, os lulistas propalaram que aquilo era falso remédio, que os compridos continham farinha. E não os compravam, ainda que fossem muito mais baratos. Esse tipo de eleitor mente até para si mesmo.
        Não obstante, uma coisa é inegável: os dirigentes petistas sabem que tudo é verdade. O próprio Lula admitiu que houve o mensalão ao pedir desculpas publicamente em discurso à nação.
        Por isso, só lhes resta, agora, fingirem-se de indignados, apresentarem-se como vítimas inocentes, prometendo ir às ruas para denunciar os caluniadores. Mas quem são os caluniadores, o Supremo Tribunal e a Polícia Federal? Essa é uma comédia que nem graça tem.