sábado, 29 de março de 2014

Alguma coisa (Martha Medeiros)


Recebi o e-mail de uma mulher madura revelando que ela e o marido estão praticamente vivendo um para o outro, pois estão decepcionados com os demais semelhantes – cuja semelhança ela não vê, aliás. Resumo aqui suas palavras: “Somos instruídos e temos ótimo pique, porém estamos cada vez mais isolados, os filhos moram longe e as demais pessoas não nos dizem nada. Gostamos de coisas que ninguém gosta. Nosso nível de tolerância é mínimo diante da hipocrisia humana, do politicamente correto, do bairrismo, dos fanáticos, dos mal-educados, dos ridículos, dos sem noção, dos burros, dos ignorantes e da manipulação da massa através dos meios de comunicação”.

Escapei não sei como. Ela diz que comigo até que gostaria de conversar, e me pediu opinião sobre sua ansiedade. “Se meu marido morrer, ficarei perdida”.

Bom, eis um caso de uma mulher que cruzou com sua alma gêmea, o que a coloca em vantagem. Mas, pelo visto, procura almas gêmeas também na vida social. Amiga, desista. Você já encontrou a sua e casou com ela, valorize a sua sorte, não seja fominha.

Brincadeiras à parte, dizer o quê? Afora os seres intragáveis, a maioria das pessoas possui alguma coisa que fecha com a gente. Alguma coisa. Não precisa fechar em tudo. Tem aquela amiga que é ótima para viajar, tem a santa que ouve nossos lamentos, aquela outra que é uma alegre parceira de indiadas, a que sempre tem uma bolsa de festa para emprestar, a que se oferece para dar carona, a que é companheira para assistir filmes iranianos, a que diz tanta bobagem que é impossível não rir. Alguma coisa, entende?

Minha leitora deveria diminuir o nível de exigência e extrair das pessoas o seu melhor, deixando o pior pra lá. A vizinha chata pode ser uma ótima professora de espanhol, a avarenta pode preparar um risoto caprichado, a cafona pode ser aquela que ficará na cabeceira da sua cama quando você estiver com um febrão. Todos têm seu lado A e B – nós, inclusive.

Compreendo que minha leitora tem um estilo de vida arrojado e uma cabeça cosmopolita que destoa da cidade onde vive, que não é nenhuma Nova York. Então por que não se muda para uma urbe mais vibrante? Se não der, baixe a guarda e procure as agulhas no palheiro, elas existem. Tive uma amiga que igualmente acreditava ter nascido no planeta errado, para ela todos também eram bairristas, ignorantes e ridículos – e quanto mais ela discursava sobre seu inconformismo, mais ela própria parecia bairrista, ignorante e ridícula. A falta de condescendência nos bitola.

Querida leitora, torço para que consiga encontrar pessoas afins e interagir com as menos afins sem tanto rigor. Você faz bem em grudar no seu marido – um companheiro que é seu melhor amigo é uma benção – mas não julgue tão severamente os que estão em volta. Eles podem ser úteis, nem que seja para exercitar sua humildade.


terça-feira, 18 de março de 2014

HOMEM SE APAIXONA FÁCIL, MAS AMA DIFÍCIL (Fabrício Carpinejar)


Homem se apaixona fácil, o que ele tem medo é de amar.

Mulher não se apaixona fácil, mas não tem medo de amar.

São dois fusos diferentes. São duas realidades em desacordo.

Homem logo se entrega para um relacionamento, não mede esforços para ficar com alguém, renuncia sua vida e seus prazeres mais essenciais, altera sua rotina. Na paixão, sua generosidade é corajosa. Facilita as saídas aos bares e restaurantes, facilita a intimidade na casa, facilita o arrebatamento. Nada incomoda, nada atrapalha, nenhum defeito é contabilizado.

Sua complicação é quando passa a amar, quando larga a fase da aventura e do desconhecimento dos meses iniciais para fazer plano junto. Daí ele estaciona, emperra. Tanto que sofre horrores para dizer o primeiro eu te amo. Tanto que sofre horrores para misturar as escovas de dente. Tanto que sofre horrores para dividir as prateleiras. É como se não pensasse até aquele momento.

Na paixão, ele não avalia as separações anteriores, suas falhas de sistema, suas fobias de convivência. Explode por intuição, desmemoriado. É vir o amor que ele recua, entra em julgamento, contrai o olhar e economiza as palavras. É consolidar os laços que se confunde, acumula receios e inventa desculpas.

A mulher é exatamente o contrário, e bem mais coerente. Leva tempo para se apegar, questiona de saída, é desconfiada na paixão, cética na paixão, contida na paixão. Sofre passo a passo. Empenha malha fina da personalidade na apresentação. Sua instabilidade é de imediato, sua crise de consciência é no começo. Quando descobre que gosta realmente, é que se liberta e derruba suas defesas. É realizar projetos e formular expectativas que se solta e se desinibe. Para ela, o amor acontece mais natural do que a paixão. Paixão é choque, dói; amor é costume, cicatriza.

Homem diz “Não quero me envolver”. A mulher diz “não quero me apaixonar”. As declarações são representativas. Ele recusa intimidade após o contato, ela pretende evitar qualquer contato, já que a intimidade não a assusta.

Homem mergulha para reclamar da água. A mulher experimenta a água antes de entrar.

Homem tem primeiro certeza para depois duvidar. A mulher duvida até cansar sua cautela.

Homem oferece tudo para retirar gradualmente. A mulher esconde tudo para oferecer aos poucos.

Homem se mostra desembaraçado e, em seguida temeroso. Mulher se apresenta temerosa e, em seguida, desembaraçada.

Homem decide rápido para desmanchar lentamente sua convicção. Mulher demora a se decidir, mas não volta atrás.

Homem é paixão. Mulher é amor.

sábado, 15 de março de 2014

De onde vem a nossa dor (Martha Medeiros)

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A dor nas costas vem das costas, a dor de estômago vem do estômago, a dor de cabeça vem da cabeça. E sua dor existencial, vem de onde?

Ela vem da história que você meio que viveu, meio que criou – é sabido que contamos para nós mesmos uma narrativa que nem sempre bate com os fatos. Nossa memória da infância está repleta de fantasias e leituras distorcidas da realidade. Mesmo assim, é a história que decidimos oficializar e passar adiante, e dela resultam muitas de nossas fraturas emocionais.

Nossa dor existencial vem também do quanto levamos a sério o que dizem os outros, o que fazem os outros e o que pensam os outros – uma insanidade, pois quem é que realmente sabe o que pensam os outros? Pensamos no lugar deles e sofremos por esse pensamento imaginado. Nossa dor existencial vem dessa transferência descabida.

Nossa dor existencial, além disso, vem de modelos projetados como ideais, a saber: é melhor ser vegetariano do que comer carne, fazer faculdade de Medicina do que Hotelaria, namorar do que ficar sozinho, ter filhos do que não ter, e isso tudo vai gerando uma briga interna entre quem você é e entre quem gostariam que você fosse, a ponto de confundi-lo: existe mesmo uma lógica nas escolhas?

Como se não bastasse, nossa dor existencial vem do que não é escolha, mas destino: quem é muito baixinho, ou é pobre de amargar, ou tem dificuldade de perder peso vai transformar isso em uma pergunta irrespondível – por que eu? – e a falta de resposta será uma cruz a ser carregada.

Nossa dor existencial vem da quantidade de nãos que recebemos, esquecidos de que o “não” é apenas isso, uma proposta negada, um beijo recusado, um adiamento dos nossos sonhos, uma conscientização das coisas como elas são, sem a obrigatoriedade de virarem traumas ou convites à desistência.

Nossa dor existencial vem do bebê bem tratado que fomos, nada nos faltava, éramos amamentados, tínhamos as fraldas trocadas, ninavam nosso sono, até que um dia crescemos e o mundo nos comunicou: agora se vire, meu bem. Injustiça fazer isso com uma criança – alguém aí por acaso deixou totalmente de ser criança?

Nossa dor existencial vem da incompreensão dos absurdos, da nossa revolta pelos menos favorecidos, da inveja pelos mais favorecidos, da raiva por não atenderem nossos chamados, por cada amanhecer cheio de promessas, pela precariedade das nossas melhores intenções e pela invisibilidade que nos outorgamos: por que nunca ninguém nos enxerga como realmente somos?

Dor de dente vem do dente, dor no joelho vem do joelho, dor nas juntas vem das juntas. Nossa dor existencial vem da existência, que nenhum plano de saúde cobre, de tão difícil que é encontrar seu foco e sua cura.


domingo, 9 de março de 2014

Quisera ser um gato (FERREIRA GULLAR)


Alegra-me a confiança de um bicho que não fala a minha língua, que não sabe quem sou eu
Fora os fantasmas que me acompanham e me fazem refletir sobre o sentido da vida, vivo eu, neste apartamento, com uma gatinha siamesa. Que é linda, não preciso dizer, mas, além disso, é especial: quase nunca mia e, quando soa a campainha da porta, se arranca. Nem eu sei onde ela se esconde.
Ela é, portanto, muito diferente do gatinho que, antes dela, me fazia companhia e que se foi. Morreu de velho, já que nunca havia adoecido durante seus 16 anos de vida. Quando adoeceu, foi para morrer. Não preciso dizer que fiquei traumatizado e não quis mais saber de outro gato. Amigas e amigos me ofereceram um substituto para o meu gatinho, e eu respondia que amigo não se substitui.
Os anos se passaram, a dor foi se apagando, até que um belo dia, minha amiga Adriana Calcanhotto chegou aqui em casa com um presente para mim: era uma gatinha siamesa. Faltou-me coragem para dizer não, mesmo porque a bichinha me encantou à primeira vista. Manteve-se arredia por algum tempo, mas logo me aceitou e nos tornamos amigos.
Hoje me sinto praticamente lisonjeado pelo fato de que, por medo ou desconfiança, enquanto ela foge de todo mundo, me busca pela casa, sobe em minhas pernas e ali se deita, isso sem falar que, todas as noites, dorme em minha cama.
Confia em mim, sabe que gosto dela e que pode contar comigo para o que der e vier. Essa confiança de um bicho que não fala a minha língua, que não sabe quem sou eu, mas só o que sou dentro desta casa, me alegra.
E às vezes, olhando-a dormir na poltrona da sala, lembro que para ela a morte não existe, como existe para nós, gente. Ela é mortal, mas não sabe, logo é imortal. A morte, no caso dela, é apenas um acidente como outro qualquer, dormir, comer, brincar, correr; só existirá quando acontecer, sem que ela saiba o que está acontecendo.
Neste ponto é que a invejo. Já pensou como a vida seria leve se não tivéssemos consciência de que ela acaba? Seria como viver para sempre, tal como ocorre com a gatinha.
E enquanto penso essas tolices, ela --que se chama Gatinha-- se levanta, vem até mim e começa a se roçar nas minhas pernas, insistentemente. Só então me dou conta de que está pedindo que eu vá até a cozinha e ponha ração no seu prato. Ela não sabe que é mortal, mas sabe muito bem que necessita comer e que quem lhe providencia a comida sou eu.
A verdade é que vivemos os dois neste apartamento cheio de livros, quadros e móbiles (feitos por mim, não por Calder, ou seja, falsos móbiles) e nos entendemos bem. A Gatinha é diferente do Gatinho, é de outra geração, a geração do pet shop. Por isso mesmo, ela não come carne nem peixe, só come ração.
Consequentemente, ao contrário do Gatito, que subia na mesa para xeretar meu almoço, ela não está nem aí para comida de gente, só quer saber de ração. E tem mais: só pode ser aquela ração; se mudar, ela não come, cheira e vai embora.
Aliás, isso criou um problema sério, quando a ração que Adriana trouxera terminou. Como não entendia de rações, ao ver que a dela acabara, fui a um pet shop aqui perto para comprar e, como não tinha a dela, decidi comprar qualquer outra, mas fui advertido pela dona da loja de que teria que ser da mesma ração.
Fui a outra loja, bem mais longe, e lá também não tinha a tal ração. Pedi a meu neto que a comprasse num pet shop do Humaitá, bairro onde ele mora, e nada, lá também não havia. Desesperado, liguei para Adriana que, imediatamente, me fez chegar aqui em casa dois pacotes com a raríssima ração que a gatinha comia. Respirei, aliviado.
Depois aprendi que para evitar que ela morra de fome, no caso de faltar sua ração exclusiva, há que ter em casa uma ração parecida e ir misturando à sua até que se acostume. Coisas de gatos modernos, muito diferentes daqueles que, outrora, vagabundeavam aqui pelos telhados e pela rua.
Mas, se mudou a ração, não mudou a razão que me fez adotá-la como minha companheira de todas as horas, que me acorda, pontualmente, às seis horas da manhã, vindo cheirar meu rosto sob o lençol. E agora a vejo, ali, a poucos metros de mim, deitada na poltrona, livre da morte, nesta tarde de março, num determinado ponto da Via Láctea, onde moramos.

sábado, 8 de março de 2014

Que fim levou Bo Derek? (Martha Medeiros)

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Eu estava em plena adolescência quando assisti no cinema ao filme Mulher Nota 10 com uma estreante chamada Bo Derek. A comédia contava a história de um cantor que um dia viu uma loira espetacular vestida de noiva e ficou obcecado por ela. O que aquela mulher tinha de nota 10? Que eu lembre, apenas um tremendo corpaço. Mas foi o que bastou para eu e mais umas tantas meninas da minha idade desejarem ser 10 também. Mal sabíamos que estava em curso uma revolução que iria nos exigir muito mais do que um corpaço: iria nos exigir independência financeira, atitude, cultura, talento, sucesso profissional, inteligência acima da média, um bom casamento, filhos notáveis, um farto círculo de amigos, um apartamento bem decorado, uma ótima mão para a cozinha, conhecimento sobre política, economia, artes plásticas, jardinagem e comércio exterior, muita feminilidade, um guarda-roupa de matar de inveja a editora da Vogue, um rosto lisinho, um cabelo lisinho, dotes sexuais de humilhar o Kama Sutra e, para aguentar o tranco, o tal corpaço de parar o trânsito, claro.

Nem titubeamos. Parecia fácil. Daríamos conta. E demos, se abstrairmos o padrão cinematográfico das exigências.

Até que descobrimos que tínhamos tudo, menos a coisa mais importante do mundo: tempo. Deixamos de ser donas dos nossos dias, viramos escravas da perfeição, passamos a buscar a nota 10 em todos os quesitos, feito uma escola de samba, e ganhamos o quê? Um stress gigantesco e uma tremenda frustração por não conseguir manter tudo no topo: o casamento, a profissão, os seios. Nunca mais uma escapada de três dias num sítio, nunca mais pegar uma matinê num dia da semana, nunca mais passar a tarde conversando na casa de uma amiga, nunca mais deitar no sofá para ouvir nossa música preferida.
Tic-tac, tic-tac. Proibido relaxar.

Trégua, por favor. Não estamos numa competição. Ninguém está contabilizando nossos recordes. A intenção não é virar uma campeã, e sim desfrutar a delícia de ser uma mulher divertida e desestressada. Por que isso precisa conflitar com a independência? Proponho uma pequena subversão: agrade a si mesmo e a mais ninguém. E não brigue com o espelho, pois ter saúde é o único item de beleza indispensável, e isso só se enxerga por dentro. Trabalhe no que lhe dá gosto, aprenda a dizer não, invente sua própria maneira de ser quem é, e se for gorda, fumante, esquisita e sozinha, qual o problema? Aliás, sendo você mesma, dificilmente ficará sozinha.

Lembra das garotas nota 10 da sua sala de aula? Cá entre nós, umas chatas. Não aproveitavam a hora do recreio, não deixavam a blusa para fora da saia, não matavam as aulas de religião, só pensavam em ser exemplares. Pois tiveram o mesmo fim da Bo Derek: nunca mais se ouviu falar delas.