quarta-feira, 27 de novembro de 2013

O mito de Sísifo… “Quanto mais se economiza a vida, mais se encontra a morte”

(Texto do Prof. Dr. Viktor de Salis)

O mito conta-nos que Sísifo era o mais astuto dos mortais e o menos escrupuloso. Amava a vida, com todos os prazeres materiais que ela lhe pudesse oferecer, sendo sua maior tristeza saber que haveria de morrer deixando tudo aqui. Era filho de Éolo e este pertencia à raça de Deucalião e Pirra, considerados a origem da raça dos homens mortais. Era ainda fundador de Corinto e pai de Odisseu.
Traiu Zeus ao revelar uma de suas aventuras, quando este raptara Égina, filha do deus rio Asopo, dando-lhe a nascente de um rio para Corinto em troca. Zeus já estava encolerizado com Sísifo, pelo seu hedonismo (buscava o prazer na vida como um fim em si mesmo) e com seu desdém pelos deuses. Decidiu então enviar-lhe a Morte como castigo, mas o astuto Sísifo, apercebendo-se de sua aproximação, conseguiu aprisioná-la. Assim, não só ele, mas todos os mortais puderam continuar vivendo indefinidamente.
Acontece que o Hades (o mundo subterrâneo dos mortos) era um lugar por onde passavam e depois partiam em direção a seu astro guia, para se preparar para voltar a viver. Desse modo, lá não permaneciam, sendo que esse mundo devia receber sempre novos mortos para habitá-lo. Como a Morte estava aprisionada, os homens deixaram de morrer, o que acabou por esvaziar esse tenebroso local. Hades ou Plutão, que governava esse mundo, queixou-se para Zeus de que seu reino estava praticamente vazio; este imediatamente descobriu o ardil de Sísifo em aprisionar a Morte. Decidiu então dar-lhe o mais terrível dos castigos: fulminou-o com seu raio e após libertar a Morte, aprisionou-o no Hades condenando-o a eternamente rolar uma pedra colina acima e, quando esta estivesse quase no topo, ela rolasse abaixo para tudo começar de novo.
E aqui encontramos o significado central desse mito. A pedra rolando eternamente e sendo levada novamente colina acima simboliza a mais inglória das tarefas: é inútil rolá-la acima, pois ela retornará ao seu ponto de partida; mas, embora sem sentido, deverá rolá-la novamente. Isto representa o pior dos castigos que um homem pode ter: realizar um trabalho de modo insano e sem sentido. Para o pensamento antigo isto tinha um significado ainda maior. Permanecer no Hades, sem poder retornar para seu astro guia e voltar a viver, era o pior dos castigos, pois significava perder o mais sagrado dos direitos de uma alma: o direito de prosseguir em seu destino, evoluindo cada vez mais numa nova existência, para finalmente reconquistar a imortalidade perdida. Assim, Sísifo sofre o pior dos castigos, pois perde o direito de ter um destino a cumprir. Representa a perda da busca e da evolução; tudo que ele realiza é inútil e de nada serve para a sua elevação, ao contrário, ele ironicamente atingiu a “imortalidade”. Só que da pior forma e não vai a lugar algum. Podemos compreender que, mais uma vez, esse é o sentido e o destino daqueles que estão presos ao material e à busca incessante do prazer como um fim em si mesmo: Estão condenados a não ir a lugar algum, ou seja, estão rolando uma pedra sem sentido e só eles não foram avisados.

domingo, 24 de novembro de 2013

Piadas de salão (FERREIRA GULLAR)


Dirceu e Genoino se dizem presos políticos; para isso, seria preciso que o atual governo fosse uma ditadura

E agora, como ficam Lula e seu partido? O processo do mensalão chegou ao final, com a condenação dos responsáveis pela falcatrua levada a cabo por destacados membros do governo Lula e do PT: José Dirceu, ex-ministro da Casa Civil da Presidência; José Genoino, então presidente do Partido dos Trabalhadores; Delúbio Soares, ex-tesoureiro do partido, e João Paulo Cunha, ex-presidente da Câmara de Deputados.
Isso sem falar em Marcos Valério, operador do sistema, e um alto funcionário do Banco do Brasil, Henrique Pizzolato, que entregou R$ 73 milhões ao PT para a compra de deputados. A pergunta é como ficam Lula, seu partido e o governo petista agora, diante da nação.
Vou referir-me aqui a determinados fatos, de que o leitor talvez não se lembre, mas o ajudarão a entender como nasceu o mensalão. Os fatos são estes: quando Lula foi eleito presidente da República, José Dirceu disse-lhe que o PMDB estava disposto a apoiar seu governo, mas Lula não quis.
Sabem por quê? Porque o PMDB, com o peso que tinha no Congresso, iria exigir dele ministérios e a direção de empresas estatais. Preferia aliar-se a partidos pequenos que, em lugar de altos cargos, se contentariam como muito menos. E assim foi: em vez de ministérios ou empresas estatais, deu-lhes dinheiro. Falando claro, comprou-os com dinheiro público.
Não tenho dúvidas de que Lula não sujou suas mãos nessa tarefa. Encarregou disso, conforme ficou evidente na apuração processual, seu ministro José Dirceu, que, como disse o procurador-geral da República na época, era o chefe da quadrilha. E dela faziam parte, entre outros, além de Marcos Valério e do presidente do PT na época, José Genoino, o diretor da marketing do Banco do Brasil, Henrique Pizzolato, companheiro de partido.
A compra de deputados veio a público porque o então presidente do PTB, Roberto Jefferson, negou-se a aceitar dinheiro em troca do apoio ao governo: queria a direção de Furnas, mas José Dirceu disse não. Esse conflito entre os dois chegou a tal ponto que ele foi à imprensa e denunciou o que o governo fazia para ter apoio dos partidos de sua base parlamentar: comprava-os. Era o mensalão que vinha à tona.
Lula, pego de surpresa, declarou: "Fui traído". Ou seja, admitiu que a denúncia era verdadeira, mas ele ignorava a falcatrua. Isso ele disse naquela hora, para se safar, porque, pouco depois, refeito do susto, passou a afirmar que era tudo mentira, nunca houve mensalão nenhum. Sucede que, durante sete anos, a Justiça, por meio do exame de documentos, interrogatório e testemunhos, apurou o que realmente aconteceu e definiu o papel de cada um nesse grave crime.
O escândalo, ao eclodir, quase acaba com o PT e o governo Lula. Os membros efetivamente comprometidos com a ética deixaram o partido, e Lula, ao que tudo indica, chamou os executores do mensalão e os fez se deixarem acusar sem contar a verdade. Delúbio assumiu sozinho a culpa por tudo, disse que Lula não sabia de nada. Isso, mesmo estando todos os domingos com ele, na Granja do Torto, fazendo churrasco.
A verdade é que, embora eles pensassem que tudo ia acabar como piada de salão, não foi isso que aconteceu. Rompendo com a tradição de impunidade, que sempre favoreceu aos poderosos, o Supremo Tribunal Federal, num julgamento que foi realizado à vista da nação inteira, decidiu pela condenação e prisão de todos os que comprovadamente participaram da operação criminosa, cujo objetivo era dar apoio político ao presidente Lula.
Em consequência dessa decisão, José Dirceu, José Genoino, João Paulo Cunha e Delúbio Soares, entre outros, irão pagar na cadeia pelo crime que cometeram.
Condenados pela Suprema Corte da Justiça, num julgamento em que todos os ministros manifestaram suas opiniões e votaram conforme sua consciência, não tem cabimento dizer que se trata de um julgamento político. Não obstante, Dirceu e Genoino se fazem de vítima e se dizem "presos políticos". Para isso, seria preciso que o atual governo fosse uma ditadura e que Dilma é que tivesse mandado prendê-los. Isso, sim, é piada de salão.
Soube que, ao sair a ordem de prisão, Lula telefonou para Dirceu e Genoino e lhes disse: "Estamos juntos!". Só que os dois estão em cana e ele, solto. Outra piada.

sábado, 23 de novembro de 2013

CONSTRUÇÃO (MARTHA MEDEIROS)



Gosto demais do Fabricio Carpinejar, de quem tenho o privilégio de ser amiga. E é para prestigiá-lo que abro essa crônica com uma citação extraída da ótima entrevista que eledeu para a revista Joyce Pascowitch: “O início da paixão é estratosférico, as pessoas não param quietas exibindo tudo que podem fazer. Depois passam a confessar o que realmente querem. A paixão é mentir tudo o que você não é. O amor é começar a dizer a verdade”.

É mais ou menos isso. No começo, a sedução é despudorada, inclui, não diria mentiras, mas um esforço de conquista, uma demonstração quase acrobática de entusiasmo, necessidade de estar sempre junto, de falarem-se várias vezes por dia, de transar dia sim, outro também. A paixão nos aparta da realidade, é um período em que criamos um universo paralelo, é uma festa a dois em que, lógico, há sustos, brigas, desacordos, mas tudo na tentativa de se preparar para algo muito maior. O amor.

É aí que a cobra fuma. A paixão é para todos, o amor é para poucos.

Paixão é estágio, amor é profissionalização. Paixão é para ser sentida; o amor, além de ser sentido, precisa ser pensado. Por isso tem menos prestígio que a paixão, pois parece burocrático, um sentimento adulto demais, e quem quer deixar de ser adolescente?

A paixão não dura, só o amor pode ser eterno. Claro que alguns casais conseguem atingir o Éden – amarem-se apaixonadamente a vida inteira, sem distinção das duas “eras” sentimentais. Mas, para a maioria, chega o momento em que o êxtase dá lugar a uma relação mais calma, menos tórrida, quando as fantasias são substituídas pela realidade: afinal, o que se construiu durante aquele frenesi do início? Uma estrutura sólida ou um castelo de areia?

Quando a paixão e o sexo perdem a intensidade é que aparecem os pilares que sustentam a história – caso existam. O que alicerça de fato um relacionamento são as afinidades (não podem ser raras), as visões de mundo (não podem ser radicalmente opostas), a cumplicidade (o entendimento tem que ser quase telepático), a parceria (dois solitários não formam um casal), a alegria do compartilhamento (um não pode ser o inferno do outro), a admiração mútua (críticas não podem ser mais frequentes que elogios), e principalmente, a amizade (sem boas conversas, não há futuro). Compatibilidade plena é delírio, não existe, mas o amor requer ao menos uns 65% de consistência, senão o castelo vem abaixo.

O grande desafio dos casais é quando começa a migração do namoro para algo mais perene, que não precisa ser oficializado ou ter a obrigação de durar para sempre, mas que não pode continuar sendofrágil. Claro que todos querem se apaixonar, não há momento da vida mais vibrante. Mas que as “mentirinhas” sedutoras do início tenham a sorte de evoluir até se transformarem em verdades inabaláveis.

O sabor da vida (Martha Medeiros)


  • Dois anos atrás tive o prazer de ser entrevistada pelo querido chef Claude Troisgros, e lembro de que o encontro foi divertido e ao mesmo tempo inusitado para mim, já que minha relação com as caçarolas sempre foi de intimidade zero. Pois, meses atrás, recebi o convite da minha amiga Neka Menna Barreto para uma entrevista para a tevê que também ocorreria durante o preparativo de alguns quitutes, e lá fui eu de novo.

    Quanto mais me aproximo desse universo que desconheço, mais me dou conta do quanto perco por não saber cozinhar. Conversando com a Neka, percebi a filosofia envolvida no processo – ao menos no processo dela, que usa sua colher de pau como uma espécie de varinha de condão, transformando em mágica cada receita aparentemente prosaica.

    Seu talento está não apenas na criteriosa escolha dos ingredientes, mas na forma como explora todas as sensações envolvidas. Ela perfuma a cozinha com infusões de hortelã, “acorda” as sementes, encontra conexões entre rusticidade e sabor – de tudo Neka extrai um conceito. Cada alimento traz em si um benefício para a memória, para o humor, para a concentração. Ralar uma noz-moscada nos ensina a reconhecer limites. Triturar um bastão de canela fortalece os bíceps. Dissecar uma vagem seca de baunilha desperta a sensualidade – se você tem acesso à Neka, peça para ela contar os efeitos de esconder um galhinho de baunilha dentro do sutiã. Segundo ela, a mulher para instantaneamente de falar sobre si mesma e, silenciosa, passa a ser quem é. Viajandona? Pode ser, mas descobri com ela que o tempero que faz viajar é outro.

    Para quem só se interessa pelo concreto da vida, nada disso faz o menor sentido, porém é justamente sobre sentidos que se está falando aqui. Do amor que há em manusear tâmaras picadas, da energia que as ervas emanam, da estupidez de se consumir um prato megacalórico e depois passar uma tarde inteira digerindo-o. “Gastamos muito tempo com digestão, quando poderíamos estar caminhando mais, dançando, flanando, vivendo até os 100 anos com leveza”.

    Neka é uma alquimista de personalidade única. Tudo nela é inspirador, desde seus turbantes coloridos até seus pontos de vista. “Estamos nos acostumando com soluções instantâneas, enviando e-mails que chegam a Tóquio em um segundo, comprando comida pronta. Ninguém mais prepara, ninguém mais espera. Se vejo alguém muito agitado, correndo atrás do relógio, recomendo: cozinhe e recupere a noção do tempo real”.

    Não bastasse a delícia de suas criações gastronômicas, Nekinha também é craque em dar receitas para nossas almas desnutridas.

segunda-feira, 18 de novembro de 2013

As mentirinhas perversas (Fabrício Carpinejar)



Protegemos nossas pequenas mentiras em vez de cuidar do relacionamento.

— O que está pensando?

— Por que fez aquilo?

— O que deseja?

Não respondemos o que vem à cabeça, filtramos o que seria mais importante falar, o que daria mais ibope, o que nos fortaleceria naquela situação.

A vontade de agradar é maior do que a vontade de ser verdadeiro.

Não aceitamos nossas imperfeições, e mascaramos os defeitos com imprecisões. A vergonha de errar nos leva aos grandes erros.

Sem querer, já estamos mentindo. E mentimos porque a verdade não impressiona. A verdade não tem roupa de festa. Ela fica abandonada enquanto exercitamos as mentirinhas. Não nos sentimos culpados, pois ninguém conhece a nossa verdade.

Batemos o pé por bobagens, compramos brigas desnecessárias, geramos discussões à toa.

Usamos a toalha do outro por engano. Pode estar encharcada e sustentamos que não foi a gente. Comemos um doce reservado na geladeira e somos capazes de jamais admitir a autoria e desfazer o mal-entendido. Quebramos um objeto na sala e fingimos que ele sumiu de repente.

Era algo simples de ser assumido, e deixamos passar. Criamos uma avalanche a partir de uma pedra de gelo.

Não confessamos o que aconteceu, e o costume ainda é incriminar quem nos chamou atenção, invertendo o jogo: - Não acredita em mim?

Trocamos a espontaneidade pelo orgulho, a franqueza pela persuasão. Subestimamos quem nos escuta ou não nos julgamos dignos do que pensamos. Planejamos o nosso depoimento para soar natural. Premeditamos nossa conduta para receber somente elogios. Ao evitar os castigos e reprimendas, evitamos também a autenticidade.

Uma mentirinha é logo esquecida em nome de uma nova e não acompanhamos os juros.

A mentira é um modo de não ser julgado. Mas estamos nos condenando secretamente a nos afastar do que nos incomoda.

Nem é mentir no início de um relacionamento, o que é perdoável, é exagerar um pouco por dia. Sobre o emprego. Sobre o sexo. Sobre o amor. É falsificar nossa pobreza. Colocar uma manta para cobrir o sofá rasgado.

A partir de uma resposta mais agradável, desviamos o caminho, distorcemos algumas frases e somos obrigados a inventar todo um passado.

Prefiro estar acompanhado numa estrada real, ainda que penosa, do que viver sozinho em minha imaginação.

domingo, 17 de novembro de 2013

Separações (Antonio Prata)


Agora ele chega na sala, senta ao lado dela, no sofá, olha pra parede e diz que precisam conversar
Ele era engenheiro, gostava de filmes de ação e corria na esteira três vezes por semana. Encarava o sexo como uma necessidade fisiológica, uma exigência corporal que surgia mais intensa quanto mais descansado estivesse: ao acordar. À noite, exausto, só queria tomar uma cerveja e dormir.
Ela era pintora, detestava "filme de carro explodindo" e praticava hatha yoga. O sexo, para ela, era "cosa mentale": o desejo ia crescendo durante o dia, a fantasia se desenhando nas cochias do pensamento e só ao se deitar na cama, antes de dormir, começava o espetáculo.
Quando se conheceram, não atinaram para o problema de fuso horário --no jet lag da paixão, toda hora era hora--, mas, assim que o fogo abaixou e o sexo teve de encontrar seu escaninho no armário da rotina, as diferenças apareceram.
Separaram-se faz um mês. Ironicamente, ele sente mais falta dela à noite, enquanto toma sua cerveja e espera o sono; ela sofre mais ao acordar, só, de manhãzinha.
Da primeira vez que ela foi à casa dele, viu na cama desarrumada, nos vinis espalhados pelo chão e na geladeira vazia --meia garrafa de vinho e três sachês de ketchup (vencidos)-- uma postura rock'n'roll, um desprendimento libertador, uma superioridade quase beática.
Da primeira vez que ele foi à casa dela, viu nos tupperwares etiquetados, nas flores da jardineira e no mural do escritório sua possível salvação: sonhou com um futuro de refeições balanceadas, vinis em ordem alfabética e contas no débito automático.
Por seis meses, ela resistiu às toalhas molhadas na cama, aos discos espalhados pela casa e às caixas de pizza no sofá; "A única coisa que eu pedia era pra ele botar o telefone na base. Se você ama mesmo uma pessoa, é capaz de fazer esse mínimo esforço, não é?". Separaram-se faz uma semana. Ontem de madrugada, a caminho do banheiro, ela viu a luzinha verde da bateria, na base do sem fio, e caiu no choro.
Eles gostavam dos mesmos filmes, dos mesmos livros, das mesmas bandas, dos mesmos pratos nos mesmos restaurantes, riam das mesmas piadas, queriam conhecer os mesmos países e ter um filho chamado Frederico. Depois de cinco anos, contudo, se cansaram daquela mesmice. Ela disse que estava pensando em se separar, ele disse que vinha pensando o mesmo. Ontem, ao partir, ela o fez prometer que jamais teria um filho chamado Frederico. Ele prometeu --e pediu o mesmo.
Por dez anos, ele foi absolutamente fiel. Não transou, não beijou nem flertou com nenhuma outra mulher. Nos últimos meses, a retidão começou a pesar em seus ombros. Anda por aí olhando bundas com a voracidade de um remador das galés, deu pra implicar com pequenos atrasos da esposa e pra discordar de seus comentários durante o jornal.
Já ela, nesses dez anos, não foi absolutamente fiel. Transou com um colega de trabalho e com um ex-namorado de adolescência, que encontrou por acaso em Salvador. Nada sério, só desejo: ela tem certeza absoluta de estar ao lado do homem que ama e jamais cogitou trocá-lo por alguém.

A melhor vida possível (Martha Medeiros)


  • Quanto mais converso por aí, mais percebo que é inútil acreditar em verdades absolutas e fórmulas ideais de convivência. Cada pessoa tem familiares que influenciaram suas escolhas, medos herdados e medos adquiridos, sonhos altos demais ou mesmo nenhum, e um número incalculável de perguntas sem respostas, de desejos embaraçosos, de mágoas vitalícias. Quem vai decretar para mim o que é melhor para mim? E quem vai dizer o que é melhor para você? Com que topete?

    A melhor vida não é aquela que atende os mandamentos universais, as ordens celestes e os clichês eternizados, mas a que se tornou possível, a que você vem construindo a despeito de todas as suas dúvidas.

    A melhor vida seria a da Gisele Bündchen, pensa a menina feia. A melhor vida seria a da Dilma, pensa a vereadora de uma cidadezinha do interior. Enquanto isso, vivem a vida possível, sem perceber o quanto deveriam ser gratas por não precisarem arcar com consequências que desconhecem.

    A melhor vida para mim é bem diferente da melhor vida para você. Reúna o planeta inteiro e não se encontrará duas pessoas que planejem possuir a mesma vida, porque uns não querem ter horário para nada, outros se envaidecem de ter suas atitudes comentadas por estranhos, há os que se paralisam à primeira frustração, os que estão sempre inventando novos desafios, e a vida possível de cada um torna-se impossível para os demais, o que não deixa de ser uma piada termos que conviver intimamente uns com os outros apesar desse tabuleiro inesgotável de escolhas e destinos.

    Se eu almejar uma vida ideal, terei que me basear na vida dos outros, pois o ideal é fruto de uma racionalização coletiva e consagrada, enquanto que se eu me contentar com uma vida possível, volto a assumir algum controle sobre os royalties das minhas decisões. O que não impede que ela seja ótima, a mais adequada para o fôlego que tenho, a mais realizável dentro de minhas ambições, a menos sofrida, já que regulada pelo autoconhecimento que adquiri até aqui. Tenho como manejar uma vida possível de um jeito que jamais teria de manejar uma vida perfeita, até porque vida perfeita não é deste mundo, e o sobrenatural é matéria que não domino.

    A melhor vida não é a focada em suposições, fantasias, esperas, surpresas e demais previsões que raramente se confirmam. A melhor vida não é aquela que é cumprida feito um pagamento de dívida, como um acerto de contas com nossos antigos anseios juvenis. A melhor vida não é a que desenhamos quando criança na folha do caderno, a casinha de venezianas abertas, a fumaça saindo pela chaminé e os girassóis protegidos por uma cerquinha branca, e tudo o que isso sugere de proteção e vizinhança com os desejos comuns a todos. A melhor vida possível é aquela que você ainda vem desenhando, mesmo já com algumas pontas de lápis quebradas.

terça-feira, 12 de novembro de 2013

O que você vai ser quando crescer? (Martha Medeiros)


Numa sociedade competitiva como a de hoje, não é de estranhar que o fator mais importante da vida seja o trabalho. Ele consome nosso tempo e nossas preocupações: temos que ganhar dinheiro, temos que ser os melhores, temos que superar a concorrência e só então... Só então o quê? Morrer?

Crianças mal atingem os cinco anos e já começam a ser sabatinadas sobre o futuro: “O que você vai ser quando crescer?”. E as coitadinhas entram no jogo. Em vez de responderem que pretendem ser surfistas, andarilhas, artistas de rua, participantes de um coro ou defensoras da natureza, respondem com a primeira profissão que lhes vêm à cabeça: veterinário, professor, bombeiro. No fundo, elas não têm a menor ideia do que querem ser – nem os vestibulandos têm – mas já intuem que sua identidade estará atrelada ao que fizerem para se sustentar.

Tanto isso é verdade, que os anjinhos crescem, estudam, começam a trabalhar e um belo dia estão numa festa e são apresentados a alguém. Trocam um aperto de mãos e a primeira pergunta entre os dois desconhecidos será: “O que você faz?”.

E não se ouvirá como resposta “eu levo meus filhos ao estádio, eu participo de rallys aos domingos, eu sou campeão em palavras-cruzadas, eu saio com meu cachorro todo final de tarde, eu vou ao cinema às quintas-feiras, eu namoro a mulher mais incrível do mundo, eu corro maratonas”.

Você responderá que é professor, veterinário, bombeiro. Ou vão achar que você não tem uma vida.

Mas você tem – espero. Só que ela ocupa um espaço bem menor do que deveria na sua lista de prioridades. Você passa um terço do dia trabalhando, e outro terço pensando na reunião de amanhã cedo, nas tarefas que ainda não foram concluídas, no cliente que está ameaçando deixar a empresa, no funcionário que não está correspondendo. No terceiro terço você dorme. Mal.

Quem está viciado nesse esquema encontra dificuldade em relaxar e talvez não consiga mais mudar a engrenagem. Mas para quem está entrando agora no mercado de trabalho, vale adotar desde cedo uma postura mais equilibrada entre vida pessoal e profissional, começando por repensar essa questão da identidade: você não é o que você faz para ganhar dinheiro, você é o que você faz para ser feliz. É bom lembrar que as horas de lazer também são muito produtivas, uma vez que elas abastecem nossa imaginação, nossos sonhos, ideias e reflexões, e, sem isso, aí é que não se cria identidade alguma, viramos apenas um número a mais nas estatísticas de mão-de-obra.

Não sei o que o Brasil pretende ser quando crescer, mas tomara que ele cresça com pessoas que, ao chegarem perto da morte, não tenham tantos arrependimentos pelo que deixaram de fazer quando ainda tinham tempo para fazê-las.

terça-feira, 5 de novembro de 2013

NÃO EXISTE DIA RUIM (Fabrício Carpinejar)

Não existe dia ruim. Sempre há chance do dia ser feliz. Mesmo que seja tarde. Mesmo que seja de madrugada. Uma gentileza salva o dia. Um bife milanesa salva o dia. Uma gola branca e engomada salva o dia. Uma emoção involuntária salva o dia.

Nunca o dia está inteiramente perdido. Não devemos acreditar que uma tristeza chama a outra, que se algo acontece de errado tudo então vai dar errado. Lei de Murphy não foi aprovada pela Câmara dos Deputados.

Confio no improviso, na casualidade, no movimento das cortinas na janela.

Até o último minuto antes da meia-noite, você pode resgatar o contentamento. É uma gargalhada do filho diante da papinha, transformando a cadeira num imenso prato. É algum amigo telefonando para confessar saudade. É sua mulher procurando beijar a orelha mandando sinais de seu desejo. É o barulho da chuva na calha, é o estardalhaço do sol na varanda. É encontrar - iniciando na tevê - um filme que adora e já assistiu cinco vezes. É oferecer colo ao seu gato. É planejar uma viagem de férias. É terminar um livro que abandonou pela metade. É ouvir sua coleção de LPs da adolescência. É comprar uma calça jeans em promoção. É adormecer no sofá e receber a coberta silenciosa de sua companhia. É a possibilidade feminina de passar um batom e pintar as unhas. É possibilidade masculina de devolver a bola quando ela sobe a cerca num jogo de crianças

A felicidade é pobre. A felicidade precisa de apenas um abraço bem feito.

Sigo esperançoso. Não coleciono tragédias. Sofro e apago. Sofro e mudo de assunto, abro espaço para palavras novas, para lembranças novas.

Vejo o esforço da abelha tentando sair do vidro, e não sou melhor do que ela. Vejo o esforço da formiga carregando uma casca de laranja, e não sou melhor do que ela. Viver é esforço e nos traz a paz de sonhar – querer não fazer nada é que cansa.

Não existe dia que não ganhe conserto. Não existe dia morto, dia de todo inútil.

Não desista da alegria somente porque ela se atrasou. Pode ter recebido esporro do chefe, ainda assim a hora está aberta. Comer um picolé de limão é capaz de restituir sua infância.

Não encerre o expediente com o escuro do céu. Pode não ter grana para pagar as contas e ter que escolher o que é menos importante para adiar, ainda assim é possível se divertir com o cachorro carregando seu chinelo para o quarto.



Quando acordo com o pé esquerdo, sou canhoto. Não existe dia derrotado.

sábado, 2 de novembro de 2013

Tão óbvio (Martha Medeiros)


  • Sempre tive mais tendência a simplificar do que complicar, e agora isso se intensificou a ponto de eu começar a flertar com o budismo. Lendo alguns livros e assistindo palestras, tenho percebido como o caminho para ser feliz é óbvio – eu mesma já fui acusada de escrever sobre coisas óbvias, e não tenho como me defender contra isso: escrevo obviedades, sem dúvida. Porém me pergunto, intrigada: por que as obviedades andam tão necessárias?


    É que normalmente o óbvio fica soterrado sob camadas e mais camadas de autoboicotes: as pessoas se irritam por besteiras, fazem escolhas idiotas, brigam no trânsito, não se abrem sobre o que sentem, desperdiçam energia à toa, desrespeitam o coletivo e são refratárias a tudo o que seja simples e fácil, já que a dor, a culpa e o ódio fazem parecer que elas têm uma vida mais profunda. Felicidade é algo que todos desejam e ao mesmo tempo renegam, já que não saberiam lidar com algo que lhes deixaria tão soltos e leves. Com péssimo ibope junto à elite intelectual, a felicidade (que nada tem a ver com bobice, mas com paz de espírito) ficou associada à superficialidade, enquanto que o sofrimento produz arte e filosofia.

    Sob esse aspecto, óbvio que ser um deprimido é mais charmoso.

    Pena que isso seja um estereótipo. Ora, filosofia busca a consciência, que é chave para a felicidade, e a arte faz um bem danado a mentes atormentadas, que através dela conseguem realizar catarses e se conectar com um mundo que lhes parece hostil. Ou seja, não importa quem ou de que forma, todos querem viver melhor, sem esquecer que esse “melhor” tem sentidos diversos para uns e para outros. Seja qual for o significado de “melhor” para você, ele é a sua perseguição. Só que alguns escolhem vias cheias de obstáculos e acabam não aproveitando a viagem.

    O bem estar vem de onde? Óbvio: da convivência com amigos, de relações saudáveis, de não permitir que frustrações e ressentimentos virem a tônica da vida, de não reagir com exagero diante de insignificâncias, da valorização das miudezas grandiosas do cotidiano, de sentir-se disponível para o novo e o diferente a fim de enriquecer a própria existência, mantendo uma espiritualidade básica que envolva a generosidade, a compaixão, a tolerância (não é obrigatório ter religião para isso). Mais: de aceitar as mudanças, de trocar de perspectiva quando se estiver obcecado com algo, de buscar a evolução da mente.

    Inventei a pólvora? Estou dizendo alguma coisa que você já não esteja careca de saber? É tudo tão evidente, tão incontestável, que dá até sono. O que você ainda está fazendo lendo essa página? Acorde e vá pra rua.

    Aí você sai e cruza com centenas de outros cidadãos para quem o óbvio é uma teoria sem aplicação prática, e que continuam encrencando-se de forma absurda, a fim de voltarem para casa estressados e sentindo-se vítimas do próprio destino. Charmosos, sem dúvida. Resta saber a que custo pessoal.