sexta-feira, 30 de setembro de 2011

"A Árvore da Vida" e "Melancolia" (Contardo Calligaris)




Insegurança e narcisismo: queremos ser os únicos a "perceber" e a denunciar a falsidade do mundo



No sábado passado, assisti a dois filmes: "A Árvore da Vida", de Terrence Malick, e "Melancolia", de Lars von Trier.
Assistindo ao filme de Malick, pensei no meu professor de literatura no ginásio (acho que se chamava Massariello). Ele nos apresentou à poesia de Giacomo Leopardi, que líamos com gosto, e logo administrou uma ducha fria: "Leopardi era bom poeta, mas não um grande". "Por quê?", perguntamos.
Ele explicou: "Leopardi, em sua breve existência, cantou a juventude que passa rápido demais, a morte que se aproxima, a natureza que não é uma mãe amorosa, o infinito no qual descobrimos nossa insignificância, a vida que não responde às promessas que ela nos fez quando éramos crianças. Vocês gostam de seus poemas porque essas são as questões preferidas pelos adolescentes e por todos os que não conseguem enxergar e amar a vida concreta".
A vida concreta, para ele, era o mundo -desde "as mulheres, os cavalheiros, as armas, os amores" até o pipoqueiro na esquina. Também segundo ele, para justificar a existência desse mundo concreto (grandioso ou trivial, feio ou bonito), bastava a revelação de seu charme, de sua "poesia".
Pois bem, Malick (ou seu narrador) é assombrado pelas lembranças (que ele apresenta admiravelmente) da brutalidade de seu pai, da morte de seu irmão etc. Problema: como não perder de vista Deus e o sentido do mundo diante das inexplicáveis injustiças divinas?
Solução: tente contar sua história começando pelo Bing Bang e passe pelas águas-vivas, pelos dinossauros, pelo meteorito que os extinguiu, até chegar a você. Depois de uma hora de erupções vulcânicas e frêmitos de células no estilo "National Geographic" (com uma trilha sonora na qual Justine, a protagonista de "Melancolia", diria que só falta a nona de Beethoven), tudo fará sentido: a morte dos que você ama, o mal que Deus permite e o que você cometeu parecerão participar do milagre que são a existência do universo, a árvore da vida e o plano divino. Aleluia!
Problema: no fim, o mundo concreto terá sido justificado por uma transcendência (a mão de Deus no grande esquema das coisas). Isso é ótimo para um ensaio ou para uma pregação. Para a arte e a poesia, melhor esperar o fim da adolescência e repassar, diria o professor Massariello.
Eu tinha o receio de que "Melancolia", de Lars von Trier, fosse uma espécie de inverso simétrico do filme de Malick: uma meditação sobre a gratuidade da nossa existência, que talvez Massariello achasse tão adolescente quanto "A Árvore da Vida". Mas não foi nada disso.
Parêntese: vários comentadores declaram que se trata de um filme sobre o mal de hoje, a depressão, só que esta não é a doença do nosso tempo, e sim, sobretudo, uma doença que nosso tempo gosta de diagnosticar porque acha que encontrou a pílula certa para curá-la.
Continuando, o mal do qual sofre Justine consiste em perder interesse pela vida concreta, a ponto de não tolerar o que lhe parece ser a farsa de sua própria festa de casamento.
Em geral, esse cinismo cético é fruto de 1) uma consciência moral terrível, pela qual toda experiência concreta, sobretudo se for prazerosa, deve ser culpada ou 2) uma extrema insegurança compensada por uma exaltação narcisista; assim: sou o único a "perceber" que tudo é falso -com isso, sou superior aos outros, ninguém me engana. Essa posição é frequente na adolescência; pense no jovem que, no baile, desesperado por não conseguir se integrar, fica sentado denunciando mentalmente a impostura e os simulacros na valsa dos que dançam.
Nota. A mãe de Justine é clinicamente perfeita. Passando pelo crivo de seu sarcasmo, tudo é apenas hipocrisia: não sobra um mundo no qual a gente possa querer encontrar um lugar.
No "Nascimento da Tragédia", Nietzsche conta que Sileno, companheiro de Dionísio, tendo que responder à pergunta "O que é melhor para o homem?", disse: "O melhor de tudo é inteiramente inatingível: não ter nascido, não ser, nada ser".
Nietzsche simpatizava com Sileno e não recorria a transcendências (divinas ou não) para justificar o mundo. Sua solução era que a vida se justificasse pela arte ou, como dizia Massariello, pelo charme que a poesia lhe confere.
Bom, Von Trier conseguiu dar sentido (e charme) ao fundo do poço. Não perca.

quinta-feira, 29 de setembro de 2011

Aproveitar a vida e suas dores (Contardo Caligaris)




Meu ideal não é a felicidade, mas a variedade e a intensidade das experiências, sejam alegres ou penosas


Com frequência, em conversas e entrevistas, alguém me pergunta o que penso da felicidade -obviamente, na esperança de que eu espinafre esse "ideal dominante" de nossos tempos.
Na verdade, não sei se a felicidade é mesmo um ideal dominante.
Claro, o casal e a família felizes são estereótipos triviais: "Com esta margarina ou com este carro sua vida se abrirá num sorriso de 'folder' ou de comercial". Mas ninguém leva isso a sério, nem os que declaram que tudo o que querem é ser felizes.
Se alguém levasse a busca da felicidade a sério, ele se drogaria, e não com remédios ou substâncias de efeito incerto e insuficiente: só crack ou heroína -tiros certeiros.
O que resta é a felicidade como tentação, como uma vontade de cair fora, compreensível quando a vida nos castiga muito. Fora isso, minha aspiração dominante não é a de ser feliz: quero viver o que der e vier, comédias, tangos e também tragédias -quanto mais plenamente possível, sem covardia.
Meu ideal de vida é a variedade e a intensidade das experiências, sejam elas alegres ou penosas.
Há indivíduos que pedem para ser medicados preventivamente, de maneira a evitar a dor de um luto iminente. É o contrário do que eu valorizo; penso como Roland Barthes: "Luto. Impossibilidade -indignidade- de confiar a uma droga -sob pretexto de depressão- o sofrimento, como se ele fosse uma doença, uma 'possessão' -uma alienação (algo que nos torna estrangeiros)- enquanto ele é um bem essencial, íntimo...".
O trecho está na pág. 159 de "Diário de Luto", que acaba de ser publicado em português (WMF Martins Fontes, excelente tradução de Leyla Perrone-Moisés).
São as fichas nas quais Barthes registrou sua dor entre outubro de 1977 (a morte da mãe) e setembro de 1979 (poucos meses antes de ele mesmo sofrer um atropelamento cujas consequências seriam fatais).
Logo nestes dias, um amigo meu, Paulo V., está perdendo seu pai. Ele me escreve, consternado, que "nada sobrará" do pai: uma cadeira vazia, gavetas de roupas e papéis e que mais? A lembrança se perderá com a vida do filho, que não lhe deu netos e de quem também nada sobrará. A resposta que encontro, para meu amigo, é uma questão: por que uma vida não se bastaria, mesmo que não sobre nada e, a médio prazo, ninguém se lembre?
Barthes se pergunta se ele estaria escrevendo "para combater a dilaceração do esquecimento na medida que ele se anuncia como absoluto. O -em breve- 'nenhum rastro', em parte alguma, em ninguém" (pág. 110). Mas suas anotações não são um monumento fúnebre para a mãe.
Para Barthes, escrever é o jeito de abraçar a experiência, de vivê-la plenamente. Ele se revolta contra as distrações e as explicações consolatórias dos amigos; recusa as teorias que lhe prometeriam um bom decurso de seu luto ("Não dizer luto. É psicanalítico demais. Não estou de luto. Estou triste") e foge, embora a contragosto, das crenças que apaziguariam a dor ("que barbárie não acreditar nas almas -na imortalidade das almas! Que verdade imbecil é o materialismo!").
Enfim, Barthes chega quase a recear que o luto acabe, como se, além da mãe adorada, ele temesse perder também, aos poucos, sua experiência dessa perda.
Meses depois da morte dos meus pais, havia momentos em que eu lamentava que meus afetos e pensamentos voltassem "ao normal", como se minha vida fosse mais pobre sem aquela dor. E havia outros em que, de repente, um detalhe me fisgava, até às lágrimas. Esses momentos eu acolhia com alegria.
Como Barthes anota, a dor do luto pode deixar de ser o afeto dominante, mas ela sempre volta, com a mesma força: "O luto não se desgasta porque não é contínuo" (pág. 92).
Falando em "detalhes" que fisgam, as anotações de Barthes reabriram a ferida de quando ele morreu, mais de 30 anos atrás.
De que sinto mais falta? Do timbre de sua voz e de duas coisas que, de uma certa forma, faziam parte do timbre de sua voz.
Sinto falta de seu gosto pela inconsistência das ideias e dos saberes ("proporcionalmente à consistência desse sistema, sinto-me excluído dele", pág. 73).
E sinto falta de sua coragem para falar a partir da singularidade de sua experiência, sem a menor pretensão de erigi-la numa generalidade que valha para os outros.
Em suma, sinto falta dele, mas não é só que eu sinto falta dele, é que ele, ainda hoje, faz falta.

terça-feira, 27 de setembro de 2011

Medo de errar (Martha Medeiros)


A gente é a soma das nossas decisões.

É uma frase da qual sempre gostei, mas lembrei dela outro dia num local inusitado: dentro do súper. Comprar maionese, band-aid e iogurte, por exemplo, hoje requer expertise. Tem maionese tradicional, light, premium, com leite, com ômega 3, com limão, com ovos “free range”. Band-aid, há de todos os formatos e tamanhos, nas versões transparente, extratransparente, colorido, temático, flexível.

Absorvente com aba e sem aba, com perfume e sem perfume, cobertura seca ou suave. Creme dental contra o amarelamento, contra o tártaro, contra o mau hálito, contra a cárie, contra as bactérias. É o melhor dos mundos: aumentou a diversificação. E com ela, o medo de errar.

Assim como antes era mais fácil fazer compras, também era mais fácil viver. Para ser feliz, bastava estudar (magistério para as moças), fazer uma faculdade (Medicina, Engenharia ou Direito para os rapazes), casar (com o sexo oposto), ter filhos (no mínimo dois) e manter a família estruturada até o fim do dias. Era a maionese tradicional.

Hoje, existem várias “marcas” de felicidade. Casar, não casar, juntar, ficar, separar. Homem com mulher, homem com homem, mulher com mulher. Ter filhos biológicos, adotar, inseminação artificial, barriga de aluguel – ou simplesmente não tê-los.

Fazer intercâmbio, abrir o próprio negócio, tentar um concurso público, entrar para a faculdade. Mas estudar o quê? Só de cursos técnicos, profissionalizantes e universitários, há centenas. Computação Gráfica ou Informática Biomédica? Editoração ou Ciências Moleculares? Moda, Geofísica ou Engenharia de Petróleo?

A vida padronizada podia ser menos estimulante, mas oferecia mais segurança, era fácil “acertar” e se sentir um adulto. Já a expansão de ofertas tornou tudo mais empolgante, só que incentivou a infantilização: sem saber ao certo o que é melhor para si, surgiu o medo de crescer.

Todos parecem ter 10 anos menos. Quem tem 17, age como se tivesse 7. Quem tem 28, parece ter 18. Quem tem 39, vive como se fossem 29. Quem tem 40, 50, 60, mesma coisa. Por um lado, é ótimo ter um espírito jovial e a aparência idem, mas até quando se pode adiar a maturidade?

Só nos tornamos verdadeiramente adultos quando perdemos o medo de errar. Não somos apenas a soma das nossas escolhas, mas também das nossas renúncias. Crescer é tomar decisões e, depois, conviver pacificamente com a dúvida. Adolescentes prorrogam suas escolhas porque querem ter certeza absoluta – errar lhes parece a morte.

Adultos sabem que nunca terão certeza absoluta de nada, e sabem também que só a morte física é definitiva. Já “morreram” diante de fracassos e frustrações, e voltaram pra vida. Ao entender que é normal morrer várias vezes numa única existência, perdemos o medo – e finalmente crescemos.

segunda-feira, 26 de setembro de 2011

Lula der Grosse (João Ubaldo Ribeiro)


Estou em Berlim, chegado de Viena, onde passei cinco dias praticamente sem falar em política, porque o evento a que compareci foi o 9.º Congresso Alemão de Lusitanistas, realizado pelo Instituto de Filologia Românica da Universidade de Viena e pela Associação Alemã de Lusitanistas. Minha participação principal foi uma sessão em que fizemos leituras bilíngues de textos meus, seguidas por uma animada conversa com uma plateia muito simpática. Costumo lembrar que apenas escrevo e não entendo nada de literatura, mas não acreditam e aí eu me benzo e vou em frente de qualquer maneira. A ajuda divina apressadamente invocada deve ter funcionado, porque creio que não envergonhei a pátria. E, claro, fiz o que pude para passear outra vez em Viena, uma das mais encantadoras cidades do mundo, onde a todo instante a gente tem que parar, fascinada pela beleza, riqueza histórica e cultura emanadas até dos blocos de pedra dos edifícios e monumentos. A única coisa que faltou foi o mergulho no Danúbio azul que sempre me prometi, mas sei que nunca vou fazer, por recear voltar ao Brasil em forma de picolé. Grande, incomparável Viena, que não pode estar ausente de nenhuma excursão pela Europa e que todo mundo deveria poder visitar? a vida fica sempre mais enriquecida e a sensibilidade mais apurada.

Quanto a Berlim, onde já morei, é outra coisa. É uma de minhas cidades favoritas e a volta é sempre um festival de reminiscências insubstituível. Sofreu o impacto dos bombardeios que pouparam Viena e, posteriormente, o trauma da reunificação, que não deixa de persistir e levará algum tempo para ir-se embora de vez. Mas que cidadaço! Cosmopolita, bonita e também cheia de história e cultura, com alguns museus únicos no mundo, não para nunca e, ao contrário das outras cidades alemãs, projeta uma atmosfera boêmia e pouco convencional, onde todas as tribos convivem e se manifestam e as ruas mais movimentadas são uma festa. Pode ser até que eu esteja fazendo propaganda turística, mas a verdade é que, no Brasil, Berlim me parece subestimada, se comparada pelos que estiveram na Europa e não a visitaram com outras cidades grandes que não chegam nem perto de sua sofisticação e seu charme, talvez difícil de perceber ao primeiro olhar. E os alemães de fato não têm o temperamento de povos como o nosso, mas não é impossível que o visitante perdido numa rua qualquer, peça ajuda a um passante e este chegue a mudar sua trajetória, para acompanhar o desamparado a seu destino, se for numa rua próxima - já me aconteceu mais de uma vez.

E, ao contrário dos habitantes de outras cidades aparentemente mais antenadas com o mundo, o número de berlinenses que se interessa pelo que se passa em países como o Brasil é considerável, a começar pelos motoristas de táxi, que, claro, falam em futebol e vários são capazes de lembrar os principais jogadores das seleções brasileiras. Mas não falam somente em futebol, como aconteceu com um deles, no trajeto até meu hotel. Estava mesmo ocorrendo no Brasil uma terrível praga de moscas, como ele tinha ouvido no rádio? Os hospitais brasileiros estavam tomados por temíveis moscas tropicais assassinas?

Era o caso das varejeiras que infestaram o hospital Pedro Ernesto, no Rio. Eu, que já havia dado uma olhada nos jornais brasileiros pela internet, tranquilizei-o e passei-lhe as dimensões verdadeiras do caso. Ele me respondeu que já tinha suspeitado disso, principalmente depois do governo do presidente Lula, que havia mudado radicalmente o Brasil, livrando-o do atraso e das condições terríveis em que o nosso povo antes vivia, a começar pela saúde pública. Quase não tive coragem de contradizê-lo um pouco, explicando que, se ele visitasse hospitais públicos brasileiros, talvez não se recuperasse do choque, pois não era bem assim. Mas ele nem ouviu minha resposta. Descobri que estava num táxi do PT, ou pelo menos de um lulista fanático. Ou então os comerciais do governo estavam passando na televisão daqui. Pelo visto, a popularidade do homem havia chegado com força a Berlim. Despedimo-nos com ele exclamando "Lula!" e apontando o polegar para cima com um sorriso.

Mais tarde, verifiquei que, entre vários amigos daqui, o lulismo também se espalhou e, mais ou menos do mesmo jeito que em relação ao motorista de táxi, eles não gostam de ouvir contestações e Lula é ainda mais revestido de teflon que no Brasil, nada contra ele cola. Como explicar que nossos indicadores de desenvolvimento humano estão entre os mais baixos do mundo? Como explicar que as nossas estatísticas são geralmente enganosas e que, em matéria de saúde pública, também estamos em vergonhosa rabeira? Como explicar o uso de aprovação automática nas escolas e o fato de que um número espantoso de brasileiros que frequentaram uma escola não aprendeu nem a ler, nem a escrever, nem a fazer uma conta elementar? Como explicar que pagamos os mais altos impostos do mundo para ter saúde pública e somos obrigados a gastar ainda mais com planos particulares caríssimos, que, por sinal, já estão ficando cada vez mais parecidos com a chamada saúde pública, e que nenhuma autoridade é maluca o suficiente para recorrer à rede hospitalar pública?

Não era nada disso, eles liam os noticiários e sabiam da verdade. Se a Alemanha tivesse um primeiro-ministro como Lula, seria uma felicidade. Não disse, mas pensei comigo mesmo que tinha um ideia melhor. Por que não importavam Lula para governá-los? Certamente seria conhecido como Lula der Grosse, que não é o que você está pensando, mas "Lula, o Grande". Essa exportação de nosso Grosse seria muito benéfica. Para o Brasil, não para a Alemanha, pensei, mas de novo não disse.

segunda-feira, 19 de setembro de 2011

Ensaios d'amor (Daniel Piza)


O amor e o ensaio têm em comum o caráter de ser uma tentativa, a articulação de um entendimento que deve sempre rever a si mesmo, a aproximação ciente de que o movimento é vital e não final, a recusa ao dogma da perfeição e ao mesmo tempo a crença de que sempre há o que melhorar. Escrever um bom ensaio sobre o amor, portanto, parece fácil, mas não é, já que tatear sobre o intangível leva aos abismos entre as palavras. “O amor é avesso a qualquer enquadramento, refratário às ideologias”, escreve o francês Pascal Bruckner em O Paradoxo Amoroso (editora Difel), e seu livro é bom justamente por não transformar o amor numa ideologia, numa utopia, e assim defendê-lo como poucos. Barthes que me desculpe, mas os fragmentos do discurso amoroso de Bruckner são de uma grandeza que raramente se vê nos ensaios sobre o tema.
O que ele chama de “paradoxo”? O fato de que o amor nasce sempre sob o signo do entusiasmo, da entrega febril, e depois vai se convertendo numa rotina tediosa, sem aventura, repleta de picuinhas e injustiças. O romance da libertação a dois gradualmente passa a ser o drama da prisão partilhada. E dão greve ao prazer, cometendo uma deslealdade antes mesmo de passar a uma traição concreta. Bruckner cita a passagem de Proust numa carta a um amigo, para o qual o grande ficcionista vaticina o futuro “desses homens fracassados a ponto de viver vinte anos ao lado de um ser que os engana sem que eles percebam, que os odeia sem que eles saibam, que os rouba sem se confessar, tão cegos sobre os defeitos dos filhos quanto sobre os vícios de suas mulheres”. O amor nasce como luz, mas logo os amantes se veem cegos.
Bruckner está particularmente preocupado com o amor na atualidade, em que não é a repressão que sufoca, mas a liberdade, ou melhor, o que o individualismo cínico de hoje entende por liberdade. “Tanto mais que a emancipação, sobretudo para as mulheres (…), multiplicou o peso de novas obrigações. As relações íntimas são calcadas nas do trabalho: o retorno sobre o investimento deve ser maximizado. (…) Sonho com uma relação humana que jamais extravase: você me agrada, ficamos juntos; você me cansa, eu o dispenso. Experimentamos o outro como um produto.” Essa não é uma abordagem muito diferente da de outro livro recém-publicado no Brasil, O Amor nos Tempos do Capitalismo, de Eva Illouz, cujo título sugere um tratado marxistoide que não é seu conteúdo. “A internet estrutura a busca do parceiro como um mercado”, nota a autora, que mostra como os discursos da psicoterapia e do feminismo se somaram a isso.
Illouz também vê um paradoxo, este no fulcro da cultura consumista: “Ao mesmo tempo que o discurso do individualismo triunfal e autoconfiante nunca foi tão disseminado e hegemônico, a demanda de expressar e praticar o próprio sofrimento, seja em grupos de apoio, seja em programas de entrevistas, na terapia, nos tribunais ou nos relacionamentos íntimos, nunca foi tão estrídula”. A indústria da autoajuda e dos antidepressivos induz à expectativa de que os problemas sejam resolvidos como “fast food”, como um objeto de consumo que sacia meus desejos, na verdade insaciáveis em sua rede de dependência; o desejo novo, afinal, tem como trunfo parecer mais promissor, e no entanto as decepções se multiplicam à mesma escala. Como diz Gley P. Costa na revista IDE 52 da Sociedade Brasileira de Psicanálise, sob o tema “Amores”, não se pode pensar no amor verdadeiro “sem disposição para o autossacrifício em prol do parceiro”. E autossacrifício é tudo que nossa era desencoraja.
Voltando a Bruckner, que diz tudo isso e mais um pouco, ao criticar o egoísmo defendido por seriados como Sex and the City: “O amor é uma aventura de que não queremos nos privar, mas com a condição de que ela não nos prive de nenhuma outra”. Seduzir se torna uma caça a troféus, ao exercício da vaidade – como quando alguém numa relação estável diz que “só não quero saber” de eventuais casos de sua parceira, na verdade querendo dizer que quer ter o direito de fazer o que quiser desde que consiga não magoar o outro. “Há uma maldade nova em nossos amores: a adesão a mim mesmo me autoriza a apunhalar o outro pelas costas”. Trata-se o outro com valores utilitaristas: se não serve mais, será descartado; a fidelidade se torna um esforço que termina deixando um com raiva do outro. O pior, diz Bruckner, é que o casal se mostra indigno da paixão que o fez começar e, assim, deixa a monotonia vencer.
Bruckner não acredita então no que Ovídio, em sua Arte de Amar (livro que também acaba de ser reeditado: Amores & Arte de Amar, editora Penguin Companhia), chama de “amores sólidos”, livres da indulgência mútua? Muito ao contrário. Ele cita outro clássico, John Milton, “Um bom casamento é uma conversa variada e feliz”, e também lembra a frase de Borges, de que o amor é amizade e sexualidade – às quais se poderia acrescentar a ternura, o sentimento de que o ser amado mexe muito mais conosco do que um simples amigo atraente. É um equilíbrio sempre móvel entre segurança e aventura, a não ser vencido pela desconfiança ou egoísmo; não faz sentido ferir tanto quem amamos, cobrando perfeição como se o menor desapontamento fosse justificativa para magoá-lo, para trocar uma bela história por um laço superficial. O amor duradouro é uma conversa contínua, uma troca de duas vozes sempre redescobrindo a si mesmas. É um ensaio, não um contrato.

quinta-feira, 15 de setembro de 2011

A vaca, 10 anos depois - Diana Corso


Coisas impossíveis acontecem: na China, uma vaca caiu do céu sobre um barco. Isso não é fantasia, foi um fato. Assim como quando, há 10 anos, dois aviões de passageiros se estraçalharam sobre as Torres Gêmeas, destruindo um ícone da confiança do império americano.

Eu estava no consultório, na mensagem da secretária eletrônica meu marido avisava que caso alguém me contasse tal estapafúrdia notícia, não pensasse em internar o relator por insanidade: ocorrera, de fato, um atentado terrorista, macabro espetáculo filmado em tempo real.

A vaca voadora e o desastre americano eram igualmente improváveis. O imprevisível nos deixa inquietos. É sobre essa base que se estrutura o delicado filme argentino Um Conto Chinês. Em espanhol, a expressão “cuento chino” define a lorota, história improvável, embuste. Serve também para descrever essas situações absurdas nas quais alguém morre quando estava tão vivo, tão seguro, nas quais tendemos a dizer: “Não pode ser”.

Roberto, o dono da loja de ferragens, personagem do filme argentino vivido por Ricardo Darín, levava uma vida previsível, obsessivamente estruturada. Mas seu lazer apontava para o avesso: colecionava notícias de jornal com eventos que provavam a força do imprevisível, principalmente em seu aspecto trágico. Histórias como a da vaca que caiu do céu eram sua fonte de fantasia.

Na vida real cultivava certezas, dormia sempre à mesma hora, comia o mesmo cardápio, visitava o túmulo dos pais aos domingos, seus cenários e personagens mudavam o mínimo possível. Até que irrompeu em sua vida um chinês perdido, vítima de um assalto, que não falava uma palavra de espanhol, do qual se compadeceu. A jornada do personagem do filme é na direção da vitalidade: desafiado pela presença em sua casa do estrangeiro desamparado, vai perdendo a rigidez. Paro por aqui para não estragar o prazer da história.

Para quem perdeu um ser querido é muito difícil acreditar que aquela pessoa simplesmente sumiu. Tantas coisas que se diria, ou mesmo se silenciaria num pacto de conivência mútua, ficarão para sempre suspensas. A morte sempre vem incompreensível, incontrolável como uma vaca ou uma torre que caem e não existe defesa.

É impossível fugir da catástrofe final: evitar vínculos, apostas, antecipar fracassos, só amortece a aventura de viver. Essa conduta não deixa de ser outra forma de morte, pois quem tanto tenta controlar o destino acaba minimizando a própria existência.

Também faz 10 anos que escrevo neste espaço, inaugurado com uma reflexão sobre o pânico do atentado. Sobrevivemos, veja só.

terça-feira, 13 de setembro de 2011

Jó e Malick, uma boa parceria - Sérgio Telles



Os homens aprenderam que pouco podem esperar da justiça terrena e buscaram consolo na justiça divina, acreditando que, no outro mundo, ela punirá os maus, e premiará os bons. Mas a credibilidade neste consolo desde sempre ficou comprometida por uma constrangedora constatação. Inexplicavelmente a justiça divina não se manifesta no mundo dos vivos. De forma indiscriminada, bons e maus estão sujeitos aos mesmos e terríveis sofrimentos. Seria Deus injusto, indiferente ao padecimento de seus fiéis?

Essa questão, que de longa data angustia a humanidade, encontrou uma bela forma de expressão no Livro de Jó. Vendo que Jó era um homem bom e cumpridor de seus deveres, Satã desafia a Deus dizendo que Jó assim se comporta por ser feliz. Se desgraças o acometessem, seguramente deixaria de seguir o caminho reto e se rebelaria contra seu Criador. Deus aceita o desafio de Satã e o autoriza a acabar com a felicidade de Jó, permitindo que Satã destrua seus bens e mate seus filhos, além de cobrir-lhe o corpo com pústulas. Jó assiste perplexo ao infortúnio que sobre ele se abate, sem se queixar de sua triste sina. Três amigos o visitam e argumentam que ele teria necessariamente ofendido a Deus para receber tantos castigos, caso contrário poder-se-ia duvidar da própria justiça divina. Mas Jó insiste que nada fez para merecer tantas desgraças.

Nesse momento, Deus se faz presente e repreende a ousadia dos que questionam sua justiça. Sem dar uma justificativa para Jó, faz uma longa e belíssima descrição de suas tarefas como criador do universo, na qual exibe sua onipotência e onisciência, atributos inacessíveis aos homens, pobres e insignificantes criaturas. Em seguida restaura os bens de Jó, devolvendo-lhe a saúde e lhe dando novos filhos.

O Livro de Jó é um dos textos mais instigantes da Bíblia, pois mostra a dúvida quanto à bondade de Deus, descrito como distante e indiferente ao destino humano, mais preocupado em reafirmar sua vaidade e poder, fazendo da vida de um homem justo um joguete em sua aposta com Satã.

A Árvore da Vida, o filme de Terrence Malick, pode ser descrito como uma versão para os dias de hoje do Livro de Jó.

Frente à morte de um filho, a mãe, o pai e o irmão fazem como Jó - se voltam para Deus e exigem uma explicação. Como podem receber tamanha punição se agiam dentro dos preceitos? A mãe aprendera que havia a natureza e a graça. Acreditara e apostara na graça, como fica agora? Malick responde mostrando a grandiosidade do universo, a multiplicidade das formas de vida, a complexidade e a beleza do macrocosmo, a delicadeza do microcosmo, a pujança da natureza e seu grandioso descaso frente ao destino humano, o misterioso funcionamento dessa magnífica engrenagem.

Em assim fazendo, Malick segue de perto o Livro de Jó, quando Deus, ao invés de responder às perguntas que lhe são feitas, exibe seu poder criador, sua obra, o Universo. Aliás, Malick abre seu filme com a citação deste trecho do Livro de Jó. (Caso o leitor não conheça este texto, vale a pena lê-lo; basta colocar "Jó, 38" no Google, é pena que não tenhamos uma tradução canônica da Bíblia, como ocorre com a do Rei James, um dos pilares da literatura inglesa).

A questão posta é - se há um silêncio de Deus frente às súplicas pessoais de seus servos, não seria o funcionamento do universo, cuja magnitude nossa pequenez não permite entender, a evidência de sua presença e atuação?

Na ignorância, a humanidade é obrigada a seguir seu caminho. Ela aqui está muito bem representada pela família O"Brien, situada nos Estados Unidos dos anos 50, portando traços autobiográficos de Malick. O pai (a "natureza") luta pela sobrevivência, educando com dureza os filhos. A mãe (a "graça") amorosa e sonhadora, elemento de coesão da família. Ambos tentando passar para seus rebentos os valores em que acreditam, julgando com isso prepará-los para a vida, inadvertidamente marcando-os para sempre com suas frustrações e desejos nunca realizados. Como toda família, ela está irremediavelmente estruturada em torno do drama edipiano, com toda sua intensa gama de amores incestuosos, ódios assassinos e rivalidades fraternas. A isso se acrescenta a morte de um filho e a necessidade de elaborar o luto e as culpas.

Malick contrapõe a memória humana à incomensurabilidade do tempo cósmico, que mesmo em nosso planeta presenciou o aparecimento e a extinção de tantas espécies de vida. É a memória que nos dá a dimensão do tempo existencial, onde o já vivido permanece, acompanhando-nos em nossa jornada rumo ao futuro e ao fim.

É esse o trajeto realizado pelo filho Jack, que parece taciturno em sua vida adulta, como que impossibilitado de usufruir suas conquistas (bela mulher e casa). Ao ser cobrado pelo pai, recupera a lembrança do irmão morto e com ela todas as recordações de sua infância. É perceptível sua relutância em ultrapassar o portal que dá acesso ao passado, é preciso coragem para entrar ali. Vencendo a relutância, Jack prossegue, encontrando suas lembranças. Ao reintegrar suas recordações e tomar posse de sua memória, Jack se reencontra consigo mesmo e recupera a alegria de viver, como vemos nas cenas seguintes, nas quais aparece alegre e sorridente em meio aos edifícios de vidro onde trabalha. De certa forma, esta poderia ser a descrição de um processo psicanalítico - a recuperação do passado traumático reprimido, a integração das ideias e afetos que estavam cindidos ou negados.

A Árvore da Vida é uma reflexão filosófica sobre a existência humana e seus impasses. Apesar de se apoiar na religiosidade ao reeditar o questionamento de Jó, Malick parece ter uma perspectiva mais aberta. Para ele, a solução para a angústia existencial não está tanto na resposta divina e sim, psicanaliticamente, na integração do passado reprimido. Mas esta é uma solução parcial que não elimina o grande enigma da vida. Também insuficiente lhe parece a resposta religiosa convencional, pois ela pretende resolver de forma apressada o extraordinário mistério no qual estamos imersos, ao postular um deus antropomórfico, pateticamente construído à nossa imagem e semelhança. Malick rejeita esta facilidade barata e amplia o mistério. O filme se inicia e termina com uma bruxuleante luz. Que será essa força desconhecida que mantém o universo em andamento?

Com a beleza estonteante de suas fluidas imagens e a intensidade de sua trilha sonora, A Árvore da Vida atinge em cheio a emoção do espectador e o mantém comovido até o fim.

sábado, 10 de setembro de 2011

Escolheremos a graça ou a natureza? (Marcelo Gleiser)




O filme "A Árvore da Vida" nos coloca entre o caminho da graça e da natureza; não temos de fazer essa escolha


NA SEMANA passada assisti ao filme "A Árvore da Vida", de Terrence Malick. Se existe um gênero de cinema dito metafísico, esse filme é um exemplo perfeito. Algumas das questões mais profundas que foram (e são) feitas no decorrer da história reaparecem aqui, em meio à tribulada vida de uma família de classe média americana da década de 1950.
Malick nos lembra que o sublime e o trágico usam vários disfarces, alternando cenas de beleza numa rua comum com cenas pesadas.
O tema central do filme é a perda e nossa relação com ela. Malick contrasta a fragilidade humana com o esplendor dramático da natureza, inserindo uma narrativa da criação que começa com o Big Bang, mostra estrelas nascendo em gigantescas e coloridas explosões, a própria Terra surgindo, o desenvolvimento de criaturas e plantas multicelulares, a era dos dinossauros, até chegarmos ao nascimento de Jack, o filho mais velho da família O'Brien.
Com isso, Malick nos insere no épico da criação, mostrando que a história cósmica é a nossa história.
As imagens e a música evocativa (Mahler, Brahms, Couperin, Berlioz, e o tema original de Alexandre Desplat) nos induzem a ver o Universo, a vida e a humanidade como manifestação de um Deus Spinoziano, em tudo e em todos, transcendente.
No decorrer do filme, testemunhamos vários tipos de perda. O'Brien e sua esposa têm três filhos. Jack é o pivô dramático do enredo, sofrendo constantemente da ira do pai frustrado, que se mescla com um afeto violento. O'Brien queria ter sido músico, mas acaba numa fábrica, talvez como engenheiro.
Fora a fúria paterna, Jack tem de lidar com a superioridade do irmão mais novo, R. L., que toca violão e desenha muito bem, além de ser mais bonito. Nos ciúmes e adoração que Jack sente pelo irmão, vemos a luta que todos temos com nossas limitações. Lembrei-me da angústia de Salieri ao se deparar com o gênio de Mozart em "Amadeus".
Já a mãe é uma criatura em constante êxtase beatífico, uma mística que ama a natureza com fervor religioso: "Ame a todos e a tudo. Ame cada folha, cada raio de luz".
A paz (relativa) familiar é destruída quando R. L., o filho, é morto no Vietnã aos 19 anos -algo que vemos no início do filme.
A narrativa vai e volta no tempo, e vemos Jack adulto (Sean Penn), dentro de um prédio moderno em Dallas que parece um sarcófago, olhando para fora e perguntando "Onde você está?" ao seu irmão e a Deus. O filme usa muita narração sussurrada, como se fossem preces. Malick transforma a sala de projeção em templo: o cinema sacro.
O filme nos coloca entre "o caminho da graça e o caminho da natureza". Graça no sentido cristão de generosidade, humildade e bondade, de uma força interna imune a todo o tipo de barreira, ancorada na nossa humanidade. Sem nós, a graça não existe. Já a natureza é indiferente, avança resolutamente, criando e destruindo sem um objetivo final. Nós, frágeis humanos, estamos tentando compreender o significado de nossas vidas. Uma morte prematura é indesculpável.
Não precisamos escolher entre a graça e a natureza. Existe uma terceira via, em que encontramos graça na natureza, não apenas através de sua beleza e cada folha e raio de luz, mas por meio da nossa profunda conexão com ela.
O que matou o pai, figurativamente, mesmo antes da morte do filho, foi ter se distanciado do sentido de graça, da conexão profunda com o que nos cerca, vivo ou não.
Espero que, das várias mensagens do filme de Malick, uma que perdure seja que graça e natureza constituem um todo indissolúvel.
Afinal, aqui estamos, criações cósmicas que somos, capazes de inventar o conceito de graça e de viver inspirados por ele. Dedico esse texto à minha amiga Ciça Guimarães.

MARCELO GLEISER é professor de física teórica no Dartmouth College, em Hanover (EUA), e autor do livro "Criação Imperfeita"

O criado-mudo (Mário Prata)



Tudo começou quando resolvi me mudar do décimo para o quarto andar, aqui mesmo, neste edifício da Alameda Franca. Um carrinho de supermercado seria o suficiente. Queria fazer lá embaixo um lar, já que isso aqui virou um vicio.


E, como todo vício, tesão!


Lá no quarto andar, tem quatro apartamentos.


Eu não conhecia ainda os vizinhos quando o fato se deu. Passei o dia
levando coisas lá para baixo. Há dois dias faço isso, ajudado pela
Cristina.


Uma das últimas viagens e lá ia eu com a Cris ao lado, descendo pelo
elevador. Carregávamos o criado-mudo. O criado-mudo tem uma gavetinha.


Quando a porta se abriu, havia duas famílias esperando. Meus vizinhos.
Pai, mãe, crianças e até uma avó. Foi quando eu estendi o braço para me
apresentar como o novo vizinho que tudo aconteceu. E foi muito rápido.
Muito. Quando eu tirei a mão do movelzinho para cumprimentar aqueles que
agora são meus vizinhos, a gavetinha deslizou. Eu ainda tentei uma gingada
com o corpo pra ver se evitava a catástrofe, mas não adiantou. A filha da
puta estava indo para o chão, lisa como quiabo.


Estava indo para o chão com tudo dentro. E não existe nada mais indiscreto
que uma gavetinha de criado-mudo de um homem que mora sozinho. Ou mesmo
que não more. Ali você vai jogando coisinhas, papéis. Coisas, enfim.
Coisas que só têm um destino na vida: a gavetinha do criado-mudo.


Entre a danada escapar do móvel e esparramar tudo pelo chão, não devem ter
sido nem dois segundos. Mas estes dois segundos foram sofridos. Neste
pedacinho de tempo tentei, em vão, me lembrar do que era que tinha lá
dentro e, consequentemente, toda a vizinhança ia ver. Além da Cristina.


Não deu outra. A gaveta caiu de quina e tudo voou. E voou tudo de cabeça
pra cima, tudo querendo se mostrar. Ar livre. Há quanto tempo aquilo tudo
não via a luz do dia, já que ficavam debaixo do abajur lilás? E não ficou
tudo amontoadinho, não. O material se esparramou legal pelo hall. Diante
do que vi no primeiro bater de olhos, a idéia foi pular em cima e cobrir
tudo com o corpo até todo mundo sumir dali.


Sim, na gavetinha do criado-mudo a gente joga tudo. Pelos meus cálculos,
devia ter coisas ali dos últimos cinco anos. Que, é claro, eu não saberia
dizer. Eu não tinha idéia do que é que estava indo para o chão e aos olhos
da vizinhança estupefata.


Um pedaço da minha vida estava ali, no chão, sujeito à visitação pública.


Uma vergonha.


E o pior é que não dava para pegar tudo de uma vez. Teve pilha que rolou
escada abaixo. Moedinhas rodopiavam sem parar, fazendo aquele barulhinho.
A primeira coisa que a Cristina recolheu foi um par de brincos
douradérrimos. Que não eram dela. E eu não ia explicar ali que eu não
tinha a menor idéia de quem fossem. Podiam estar ali há cinco, seis anos.
As crianças olharam para três camisinhas e deram-se sorrisos cúmplices.


Não foi bem este o olhar da Cris.


Aquele pequeno despertador quebrou o vidro. Estava parado às 10 e 10 do
dia 23, sabe-se lá de que mês ou ano. Três edições da Playboy. Velhas. Uma
da Tiazinha. Constrangimento. Pra minha sorte, bem ao lado caiu a História
da Filosofia, de I. Khlyabich. E o livro daquela jovem namorada do
Sallinger, do Apanhador no Campo de Centeio. Amenizou um pouco. Trata-se
de um masturbador de campo de pentelhos. E as camisinhas eram de 98, tava
escrito lá. Limpou um pouco a barra. Um pouco. Sim, por outro lado,
mostrava que desde 98 que eu... Deixa pra lá.


Tinha o menu da minha aula de culinária de março. Naquele dia aprendi a
fazer crepe de pancetta e brie, com a professora Bia Braga, junto com o
Frei Betto, aluno também. Tinha procurado tanto o Guia de Acesso Rápido do
celular. Tava lá. Agora eu ia aprender a apagar os telefones vencidos da
caixa. Meu Deus, o que é aquilo no pé do garoto? Viagra! E o filho da puta
pegou e mostrou para o pai, que me olhou com pena, com dó: tão jovem...


Tive que dar explicaçoes: - Hehe, é o Jair, que é do 103, psicanalista,
amostra grátis, aí. Tem dois...


Já ia dar uma explicaçao da experiência que tinha tido com o que não
estava mais ali, mas achei que os pais não iriam ouvir de bom grado,
diante das crianças. Viagra é a maior sujeira, posso te garantir. Acho que
não convenci ninguém. Cris, com os alheios brincos na mão, escondeu o
Viagra. Vexame total. Mas isso era só o começo da minha vida esparramada
no chão de mármore.


- A conta da compra do computador que eu dei para a minha irmã.


- Duas pilhas Duracell que jamais saberemos se estão boas ou já usadas.
Esse problema de pilhas soltas me enlouquece.


- Sabe aquelas moedinhas de orelhão que não funcionam mais? Várias.


- Uma foto minha com a atriz Manoella Teixeira, abraçados na porta do Ritz
(isso foi há dois anos, fui logo explicando).




- Uma cartela de Lexotan, uma de Frontal e uma de Zoloft. Pronto, os
vizinhos não teriam mais dúvidas. Um louco deprimido se aproximava.


- Quatro canetas Bic que eu duvido que ainda funcionem.


- Uma capinha de celular que eu comprei há uns quatro anos e não serviu.


- Uma caneta dessas de marcar texto, aquela amarela, sabe? Seca, é claro.


- Um tubo de Redoxon, vencido há várias gripes.


- Um lápis sem ponta; aliás, dois.


- Um papelzinho com um telefone que jamais saberemos de quem é.


- Outro papelzinho com um telefone (procurei tanto... Agora não vai mais
adiantar).


- Um benjamim.


- Um tubo (suspeitíssimo) de Hipoglós.


- Mais uma cartelinha (quase vazia) de Frontal.


- Um disquete de computador sem nada escrito nele. O que pode ter aqui?


- Um par de óculos escuros que nunca foram meus.


- Umas cinco ou seis chaves que nunca saberei que portas abrir.


- Dois tubos de KY, que quem sabe o que é pode imaginar o meu ar de sem
jeito. E o cara do 43 levava jeito de saber, pela olhadinha que deu para a
esposa, que ficou vermelhinha. Ela devia gostar de KY.


- Um livrinho mandado (e escrito) por um leitor, com o nome Ser Gay é Ser
Alegre. Como explicar isso, de joelhos?


- E, para encerrar o meu derrame, um papel em branco com um beijo de batom
vermelho, bem no meio. Tentei dizer que era da minha afilhada, Maria
Shirts, mas não colou.


Fui recolhendo aquilo tudo, aqueles pedaços da minha vida e colocando de
novo dentro da gavetinha. E me levantei.


Entramos em silêncio no apartamento, eu certo de que ia começar uma nova
vida ali. Mas logo cheguei à conclusão de que a gente nunca começa nada, a
gente continua.


Ajeitei o criado-mudo ao lado da cama. Fiquei olhando para o indiscreto
móvel que eu achava mudo. Mas que, em dez segundos, contara cinco anos da
minha vida.

domingo, 4 de setembro de 2011

Colhendo o que plantou (Ferreira Gullar)




Lula deixou uma herança maldita: para não passar por conivente, Dilma teve de demitir "companheiros"

Como disse aqui na ocasião em que Lula deixava o governo, não pretendia voltar a escrever sobre ele. Principalmente porque deixava o governo. Sucede que não se sabe ao certo se ele o deixou e, se o deixou, atua como se não o tivesse deixado -outro dia inaugurou um hospital na Bahia- e se preparasse para reassumi-lo de fato em 2014.
Infelizmente não dá para falar bem dele, mesmo porque o que me traz de volta ao tema é, por um lado o que ele anda fazendo e dizendo e, por outro, a avaliação que a distância dele me possibilitou.
Não tenho prazer nenhum em falar mal de ninguém, particularmente quando se trata de uma figura nacional em quem tanta gente acredita. Pode parecer má vontade ou rancor, mas não é nada disso.
Penso como simples cidadão, atento ao que fazem os políticos e às consequências disso na sociedade. Tanto mais se esse político tem o peso e a influência de um líder como Lula.
Basta ver o que conseguiu quando presidente da República, usando de carisma, habilidade e falta de escrúpulos para montar uma máquina de poder difícil de enfrentar.
Não discuto a legitimidade de um partido ou de um líder pretender governar o país por mais de um mandato ou voltar ao poder, já que a lei o permite. A meu juízo, quanto mais alternância, melhor, já que dificulta a manutenção de feudos no organismo do Estado. Se a permanência prolongada já oferece esse risco, tanto pior é quando se trata de um partido ou líder pouco confiáveis.
E, se meu juízo a respeito de Lula já não era bom, o distanciamento e a revelação de novos fatos só vieram agravá-lo.
Lula é, sem dúvida, um fenômeno. Poucos líderes possuem, como ele, tanta sagacidade aliada à falta total de escrúpulos. Hoje entendo por que Brizola, referindo-se a ele, disse que era "capaz de pisar no pescoço da mãe". Com isso, não quis apontá-lo como um sujeito de temperamento violento, e sim destituído de qualquer compromisso com os valores morais. Só lhe importa o poder. De modo que, para conquistá-lo e mantê-lo, tudo vale.
Não me esqueço da expressão que vi no olhar de Lula, em 2005, quando eclodiu o escândalo do mensalão: era um misto de pavor e perplexidade. "Fui traído", afirmou então, tentando safar-se, e o conseguiu, jogando a culpa sobre seus auxiliares imediatos. Pouco depois, dizia que o mensalão era uma espécie de caixa dois. Hoje afirma que tudo não passou de uma conspiração para tirá-lo do poder. Isso muito embora o procurador-geral da República tenha aceito denunciar 34 dos 40 acusados no processo.
Esse é o Lula, que se apropriou dos programas do seu antecessor, muito embora tudo tenha feito para impedir que fossem implantados.
Forçado pelas circunstâncias, rendeu-se à aliança com o PMDB, mas manteve o pacto com a arraia miúda, já não a troco de grana, mas de cargos públicos e vista grossa para a corrupção que, em seu governo, se instalou nos ministérios.
Enfim, posso ter hoje uma compreensão melhor de quem é Lula e quais os seus propósitos. Ele é produto deste momento histórico, quando o fim dos partidos comunistas e do revolucionarismo guerrilheiro abriu caminho para líderes neopopulistas que, arvorando-se em defensores dos pobres, negociam com os ricos a paz social em troca de apoio material e político.
É o que Lula fazia como presidente, aliando o discurso antiamericano à oferta de empréstimos subsidiados do BNDES a grandes empresários. Se estava de acordo com as falcatruas praticadas por seus nomeados, pouco importava. Fez que de nada sabia, como convinha.
Eis a herança maldita que ele deixou para Dilma: para não passar por conivente, teve ela de demitir dezenas de "companheiros", envoltos em falcatruas.
No entanto, para ficar bem com os partidos da base, diz que a demissão dos corruptos não é faxina, que lembra sujeira. Aliás, corrupção também mudou de nome: agora se chama "malfeitos", como traquinagens de crianças... Haja eufemismos! E logo da parte de Dilma, que é a finesse em pessoa.
Mas os escândalos não param e em apenas oito meses. Já imaginou o que acontecerá em quatro anos? O lulismo está colhendo o que plantou. Independentemente do nome que Dilma dê a isso, talvez seja o começo do fim da aventura neopopulista, a que o país foi arrastado nestes últimos oito anos.