quinta-feira, 17 de abril de 2014

Paliativos (Francisco Daudt)

Sofro (ou deveria dizer "desfruto") de associações musicais. Do nada, me vi cantando "Nature boy", de Éden Ahbez ("a maior coisa que você pode aprender é amar e ser amado de volta"). Em seguida apareceu "quem eu quero não me quer, quem me quer mandei embora", de Jorge Silva. Nessas horas me pergunto o que me contam as associações.
No caso, não foi difícil interpretá-las. É evidente que o maior sonho de todos nós é amar alguém e por esse alguém ser amado. Ou, de forma precisa, ser a prioridade erótico-afetiva de alguém que é nossa prioridade erótico-afetiva.
Mas, eta coisinha difícil de acontecer. E quando acontece, é fugaz como um raio, mesmo que caia mais de uma vez no mesmo lugar. Não importa, o desejo nos assombra como um vácuo a ser preenchido.
Como qualquer obsessivo, vivi olhando os 20% que faltavam e desdenhando dos 80% que tinha.
Ou, nas palavras de Vicente de Carvalho, "a felicidade está onde nós a pomos, e nunca a pomos onde nós estamos".
Aqui entra Leibnitz (filósofo alemão, século 17) com sua mal compreendida tese de que nós vivemos o melhor dos mundos possíveis, num aparente otimismo doentio que levou Voltaire a ficar furioso, e escrever "Candide", um cômico deboche sobre um otimista incurável a quem todas as desgraças imagináveis aconteciam.
Porque, se nosso maior sonho é tão raro, é melhor que vivamos sem contar com ele. Este será o nosso "melhor dos mundos possíveis". E se aquele encontro da cara-metade platônica é assim como a mega-sena, bem, podemos comprar o bilhete, mas não vivermos obcecados por nosso "azar", já que o normal é que o prêmio não saia.
É a vez de falar dos estóicos, outro grupo filosófico mal compreendido. Eles não são "os que sofrem em silêncio", como se costuma entendê-los, mas os que acolhem sem discussão suas realidades imutáveis.
Assim, fará tanto sentido para um estóico se lamentar por só ter uma perna quanto você se lamentar por ter duas.
Ele não se referencia como "alguém de uma perna só", mas como alguém que vive no melhor de seus mundos possíveis.
Um estóico nunca será um coitadista, a faturar em cima de sua desgraça, já que ele não vê o fato de só ter uma perna como tal.
Então o estóico é um "resignado", um "conformado"? Não! Isto seria se referenciar pela falta da perna, coisa que ele não faz. E se surgir uma prótese legal, o melhor de seus mundos possíveis se ampliará, e ele vai se valer da prótese.
Ou seja, ele não ignora que só tem uma perna, ele só não vive em função disso.
Quer dizer que, na falta do sonho de amar e ser amado, da fantasia romântica de filme, só nos restam paliativos?
Ora, chamar de paliativos o amor companheiro, a amizade, a camaradagem, a ética, a leitura, o fazer o bem, o cuidar da família, o cultivo do espírito, os erotismos possíveis, a conservação de valores prezados (disso, sou conservador, com muita honra), a crítica de valores desprezados, a interação com a cultura, o lazer e o ócio criativo, novamente é se referenciar pela falta do prêmio lotérico.
Mas eu compro bilhete...