sexta-feira, 30 de dezembro de 2011

"Aprender a viver" Clarice Lispector


    Thoreau era um filósofo americano que, entre coisas mais difíceis de se assimilar assim de repente, numa leitura de jornal, escreveu muitas coisas que talvez possam nos ajudar a viver de um modo mais inteligente, mais eficaz, mais bonito, menos angustiado.
    Throreau, por exemplo, desolava-se vendo seus vizinhos só pouparem e economizarem para um futuro longínquo. Que se pensasse um pouco no futuro, estava certo. Mas "melhore o momento presente", exclamava. E acrescentava: "Estamos vivos agora." E comentava com desgosto: "Eles ficam juntando tesouros que as traças e a ferrugem irão roer e os ladrões roubar."
    A mensagem é clara: não sacrifique o dia de hoje pelo de amanhã. Se você se sente infeliz agora, tome alguma providência agora, pois só na sequência dos agoras é que você existe.
Cada um de nós, aliás, fazendo um exame de consciência, lembra-se pelo menos de vários agoras que foram perdidos e que não voltarão mais. Há momentos na vida que o arrependimento de não ter tido ou não ter sido ou não ter resolvido ou não ter aceito, há momentos na vida em que o arrependimento é profundo como uma dor profunda.
    Ele queria que fizéssemos agora o que queremos fazer. A vida inteira Thoreau pregou e praticou a necessidade de fazer agora o que é mais importante para cada um de nós.
Por exemplo: para os jovens que queriam tornar-se escritores mas que contemporizavam - ou esperando uma inspiração ou se dizendo que não tinham tempo por causa de estudos ou trabalhos - ele mandava ir agora para o quarto e começar a escrever.
Impacientava-se também com os que gastam tanto tempo estudando a vida que nunca chegam a viver. "É só quando esquecemos todos os nossos conhecimentos que começamos a saber."
    E dizia esta coisa forte que nos enche de coragem: "Por que não deixamos penetrar a torrente, abrimos os portões e pomos em movimento toda a nossa engrenagem?" Só em pensar em seguir o seu conselho, sinto uma corrente de vitalidade percorrer-me o sangue. Agora, meus amigos, está sendo neste próprio instante. Thoreau achava que o medo era a causa da ruína dos nossos momentos presentes. E também as assustadoras opiniões que nós temos de nós mesmos. Dizia ele: "A opinião pública é uma tirana débil, se comparada à opinião que temos de nós mesmos." É verdade: mesmo as pessoas cheias de segurança aparente julgam-se tão mal que no fundo estão alarmadas. E isso, na opinião de Thoreau, é grave, pois"o que um homem pensa a respeito de si mesmo determina, ou melhor, revela seu destino".
    E, por mais inesperado que isso seja, ele dizia: tenha pena de si mesmo. Isso quando se levava uma vida de desespero passivo. Ele então aconselhava um pouco menos de dureza para com eles próprios. O medo faz, segundo ele, ter-se uma covardia desnecessária. Nesse caso devia-se abrandar o julgamento de si próprio. "Creio", escreveu, "que podemos confiar em nós mesmos muito mais do que confiamos. A natureza adapta-se tão bem à nossa fraqueza quanto à nossa força". E repetia mil vez aos que complicavam inutilmente as coisas - e quem de nós não faz isso? -, como eu ia dizendo, ele quase gritava com quem complicava as coisas: simplifique! simplifique!
     E um dia desses, abrindo um jornal e lendo um artigo de um nome de homem que infelizmente esqueci, deparei com citações de Bernanos que na verdade vêm complementar Thoreau, mesmo que aquele jamais tenha lido este.
     Em determinado ponto do artigo (só recortei esse trecho) o autor fala que a marca de Bernanos estava na veemência com que nunca cessou de denunciar a impostura do "mundo livre". Além disso, procurava a salvação pelo risco - sem o qual a vida para ele não valia a pena - "e não pelo encolhimento senil, que não é só dos velhos, é de todos os que defendem as suas posições, inclusive ideológicas, inclusive religiosas" (o grifo é meu).
    Para Bernanos, dizia o artigo, o maior pecado sobre a terra era a avareza, sob todas as formas. "A avareza e o tédio danam o mundo." "Dois ramos, enfim, do egoísmo", acrescenta o autor do artigo. Repito por pura alegria de viver: a salvação é pelo risco, sem o qual a vida não vale a pena! Feliz Ano Novo"

quinta-feira, 29 de dezembro de 2011

Reinventar a vida - Frei Betto‏

Finda o ano, inicia-se o novo. No íntimo, o propósito: daqui pra frente, tudo vai ser diferente. Começar de novo. Será? Haveremos de escapar do vaticínio do verso de Fernando Pessoa, “fui o que não sou”? Atribui-se a Gandhi esta lista dos sete pecados sociais: 1) Prazeres sem escrúpulos; 2) Riqueza sem trabalho; 3) Comércio sem moral; 4) Conhecimento sem sabedoria; 5) Ciência sem humanismo; 6) Política sem idealismo; 7) Religião sem amor.

E agora, José? No mundo em que vivemos, quanta esbórnia, corrupção, nepotismo, ciência e tecnologia para fins bélicos, práticas religiosas fundamentalistas, arrogantes e extorsivas! Os ícones atuais, que pautam o comportamento coletivo, quase nada têm do altruísmo dos mestres espirituais, dos revolucionários sociais, do humanismo de cientistas como os dois Albert – o Einstein e o Schweitzer. Hoje, predominam as celebridades do cinema e da TV, as cantoras exóticas, os desportistas biliardários, a sugerir que a felicidade resulta de fama, riqueza e beleza.

Impossibilitada de sair de si, de quebrar seu egocentrismo (por falta de paradigmas), uma parcela da juventude se afunda nas drogas, na busca virtual de um esplendor que a realidade não lhe oferece. São crianças e jovens deseducados para a solidariedade, a compaixão, o respeito aos mais pobres. Uma geração desprovida de utopia e sonhos libertários. A australiana Bronnie Ware trabalhou com doentes terminais. A partir do que viu e ouviu, elencou os cinco principais arrependimentos de pessoas moribundas:

1) Gostaria de ter tido a coragem de viver uma vida verdadeira para mim, e não a que os outros esperavam de mim. No entardecer da vida, podemos olhar para trás e verificar quantos sonhos não se transformaram em realidade! Porque não tivemos coragem de romper amarras, quebrar algemas, nos impor disciplina, abraçar o que nos faz feliz, e não o que melhora a nossa foto aos olhos alheios. Trocamos a felicidade da pessoa pelo prestígio da função. E muitos se dão conta de que, na vida, tomaram a estrada errada quando ela finda. Já não há mais tempo para abraçar alternativas.

2) Gostaria de não ter trabalhado tanto. Eis o arrependimento de não ter dedicado mais tempo à família, aos filhos, aos amigos. Tempo para lazer, meditar, praticar esportes. A vida, tão breve, foi consumida no afã de ganhar dinheiro, e não de imprimir a ela melhor qualidade. E nesse mundo de equipamentos que nos deixam conectados dia e noite somos permanentemente sugados; fazemos reuniões pelo celular até quando dirigimos carro; lidamos com o computador como se ele fosse um ímã eletrônico do qual é impossível se afastar.

3) Gostaria de ter tido a oportunidade de expressar meus sentimentos. Quantas vezes falamos mal da vida alheia e calamos elogios! Adiamos para amanhã, depois de amanhã. O momento de manifestar o nosso carinho àquela pessoa, reunir os amigos para celebrar a amizade, pedir perdão a quem ofendemos e reparar injustiças. Adoecemos macerados por ressentimentos, amarguras, desejo de vingança. E para ficar bem com os outros, deixamos de expressar o que realmente sentimos e pensamos. Aos poucos, o cupim do desencanto nos corrói por dentro.

4) Gostaria de ter tido mais contato com meus amigos. Amizades são raras. No entanto, nem sempre sabemos cultivá-las. Preferimos a companhia de quem nos dá prestígio ou facilita o nosso alpinismo social. Desdenhamos os verdadeiros amigos, muitos de condição inferior à nossa. Em fase terminal, quando mais se precisa de afeto, a quem chamar? Quem nos visita no hospital, além dos que se ligam a nós por laços de sangue e, muitas vezes, o fazem por obrigação, não por afeição? Na cultura neoliberal, moribundos são descartáveis e a morte é fracasso. E não se busca a companhia de fracassado.

5) Gostaria de ter tido a coragem de me dar o direito de ser feliz. Ser feliz é uma questão de escolha. Mas, vamos adiando nossas escolhas, como se fossemos viver 300 ou 500 anos. Ou esperamos que alguém ou uma determinada ocupação ou promoção nos faça feliz. Como se a nossa felicidade estivesse sempre no futuro, e não aqui e agora, ao nosso alcance, desde que ousemos virar a página de nossa existência e abraçarmos algo muito simples: fazer o que gostamos e gostar do que fazemos.

quarta-feira, 28 de dezembro de 2011

O óbvio ululante (TOSTÃO)


Natal me lembra vida, pessoas queridas, renascimento, nascimento, que me lembra uma das mais belas passagens que já li, escrita pelo genial João Guimarães Rosa, no livro "Grande Sertão Veredas". Transcrevo o texto:
"Da mulher -que me chamaram: ela não estava conseguindo botar seu filho no mundo. E era noite de luar, esta mulher assistindo no próprio rancho. Nem rancho, só um papiri à-toa. Eu fui. Abri, destapei a porta -que era simples e encostada, pois que tinha porta; só não alembro se era um couro de boi ou um tranço de buriti. Entrei no olho da casa, lua me esperou lá fora. Mulher tão precisada: pobre que não teria o com que para uma caixa-de-fósforo. E ali era um povoado só de papudos e pernósticos. A mulher me viu, da esteira em que estava se jazendo, no pouco chão, olhos dela alumiaram de pavores. Eu tirei da algibeira uma cédula de dinheiro, e falei: - 'Toma, filha de Cristo, senhora dona: compra um agasalho para esse que vai nascer defendido e são, e que deve se chamar Riobaldo...' Digo ao senhor: e foi menino nascendo. Com as lágrimas nos olhos, aquela mulher rebeijou minha mão... Alto eu disse, no me despedir: - Minha Senhora Dona: um menino nasceu - o mundo tornou a começar!...' - e sai para as luas".
Dizem que, na vida real, o jovem médico João Guimarães Rosa foi atender a uma mulher pobre, em trabalho de parto, em um casebre. Chegou e viu a criança nascendo, já com a cabeça para fora, assistida por uma parteira. João Guimarães Rosa, imobilizado, chorou copiosamente. Será que foi aí que o mundo perdeu um médico e ganhou um de seus mais brilhantes escritores?
João Guimarães Rosa me faz lembrar outro grande escritor, Nelson Rodrigues.
Contam -Ruy Castro poderá dizer se é verdade- que, ao caminhar pelo aterro do Flamengo, Nelson Rodrigues percebeu que o amigo, que sempre morou no Rio, levou um grande susto. Não acreditava no que via. Acabara de descobrir o bondinho do Pão de Açúcar.
Aí teria nascido a expressão "óbvio ululante", criada por Nelson Rodrigues.
Outro grande susto foi o que tiveram muitas pessoas ao ver o belíssimo futebol e a enorme superioridade do Barcelona sobre o Santos.
Não acreditavam no que viam. O Barcelona, para eles, parecia um time de ETs, recém-chegado à Terra. Mano Menezes disse que há algo diferente no futebol.
Descobriram o óbvio ululante.
A coluna voltará a ser publicada no dia 18 de janeiro, quarta-feira. Até lá.

terça-feira, 27 de dezembro de 2011

Expectativas extravagantes (JOÃO PEREIRA COUTINHO)


O casal não conhece limites em seus desejos contraditórios. Reclama de paixão e de razão

Casamentos combinados? Nada contra. Mas existem combinações e combinações. Conhecer a noiva ainda no berço não é a ideia perfeita de romantismo. Casar com ela durante a infância também não.
Mas confesso inveja pelos indígenas de Tikopia, uma pequena ilha do Pacífico, onde as combinações matrimoniais impostas pela tribo admitem um período de conhecimento e, digamos, "experimentação". Se as coisas não resultarem, nenhum drama: é hora de tentar uma nova combinação.
É nessas alturas que uma pessoa pensa nas desvantagens de viver no Ocidente pós-moderno, onde estamos por nossa conta e risco na busca da princesa encantada. E tanto esforço, e tanta despesa, e tanta angústia para quê?
Vivesse eu em Tikopia e poderia estar tranquilamente em casa, lendo e escrevendo, enquanto a tribo procurava fêmea compatível para mim. Quando a encontrasse, era só bater na minha porta e eu receberia a noiva do mês para o respectivo período de conhecimento e "experimentação". Haverá coisa mais civilizada?
Paul Hollander não se pronuncia. Mas o seu "Extravagant Expectations", onde conheci os tikopianos, é um dos meus livros de 2011. Hollander, como estudioso dos regimes totalitários do século 20, dispensa apresentações.
Só que, dessa vez, o sociólogo americano resolveu fazer uma pausa nas suas trincheiras para investigar como amam os americanos. O que procuram eles na cara metade. E por qual motivo se desiludem tão rapidamente com o parceiro.
Essas perguntas exigiram "trabalho de campo": Hollander mergulhou nos classificados pessoais de relacionamento; consultou sites de encontros na internet; e leu a bibliografia popular e a acadêmica sobre o assunto.
Conclusão: a crise das relações modernas está, como o título indica, nas "expectativas extravagantes" que os americanos -e, desconfio, os ocidentais em geral- transportam para o matrimônio.
Na conjugalidade, o casal não conhece limites em seus desejos contraditórios. Reclama doses homéricas de paixão e de razão; de aventura permanente mas também de segurança permanente; de estabilidade emocional e de excitação emocional; de beleza física e de intelecto apurado.
Haverá relação que aguente o peso dessas expectativas?
Dificilmente. Mas o interesse do livro de Paul Hollander está sobretudo na explicação genética das "expectativas extravagantes". Que, obviamente, seriam incompreensíveis para nossos antepassados.
E seriam incompreensíveis porque a dimensão "romântica" do casamento é recente na história do Ocidente: tradicionalmente, as relações entre homens e mulheres eram tuteladas por "agentes intermediários", a começar pela família, que proviam e promoviam essas relações. Os "sentimentos" das partes envolvidas não eram os argumentos mais preponderantes.
O romantismo próprio da modernidade acabaria por enterrar esse mundo, atribuindo ao indivíduo (e ao "sentimento") a construção do seu destino "autêntico".
E, claro, acabou também por determinar o recuo da família, da tradição e mesmo da religião. Não apenas como "agentes intermediários"; mas também como fontes válidas de conhecimento ou consolação.
O problema, escreve Hollander, é que esse recuo não significou o fim das carências -espirituais, éticas, intelectuais- que continuam a pulsar na natureza humana. E que são agora transplantadas pelo indivíduo socialmente isolado para dentro da sua privacidade.
Hoje, os ocidentais desejam que as relações íntimas possam suprir todas as exigências que anteriormente estavam repartidas por várias esferas da sociedade.
Azar: o casamento não comporta essas exigências múltiplas e contraditórias. A pessoa com quem casamos não consegue reunir as qualidades perfeitas de amante, amigo, confessor, professor, guia turístico, estátua grega e terapeuta. No Ocidente pós-moderno, a taxa de divórcio não para de subir. Brasil incluso. Um cínico diria que o fenômeno tem explicação simples: as pessoas divorciam-se porque podem.
Mas é possível oferecer uma explicação alternativa: as pessoas divorciam-se porque casam. E não há casamento que resista quando se exige dele tudo e o seu contrário.

quinta-feira, 22 de dezembro de 2011

Papai Noel por toda parte (Contardo Caligaris)


Nossa 'generosidade' é narcisista; deve ser por isso que preferimos fantasiá-la de Papai Noel
Embora meu pai fosse agnóstico, ele tolerou que, durante a infância, eu tivesse uma educação religiosa -católica, no caso.
Se meu pai tivesse impedido que eu fosse batizado, suponho que minha avó materna teria me administrado o sacramento às escondidas. Era ela quem me levava para a missa do domingo; foi ela quem se encarregou de minha primeira comunhão e de minha crisma.
Talvez meu pai aceitasse a ingerência da minha avó para preservar a paz do lar. Ou talvez ele pensasse que um pouco de religião na infância não me faria mal (há uma ideia laica de que um pouco de fé, no começo da vida, pode nos dispor ao respeito pelo próximo e a saudáveis escrúpulos morais).
Seja como for, meu pai era cético, minha mãe, incerta, e minha avó, crente -assim como muitos eram crentes entre os professores, os parentes e os amigos dos meus pais. Havia, portanto, muitos adultos para quem, apesar do ceticismo do meu pai, Deus era uma verdade -não apenas um artifício pedagógico.
Essa divergência não existe em matéria de Papai Noel: a partir da pré-adolescência, ninguém acredita mais que ele exista de verdade. Ao contrário, uma criança de dez anos que escreva uma carta para o polo Norte desperta preocupação: "Atraso cognitivo ou emocional?", perguntam, preocupados, os mesmos adultos que, poucos anos antes, declaravam a essa criança que Papai Noel existe (e se felicitavam ao verificar que ela acreditava).
O Papai Noel não é o único caso de crença reservada à infância. Porém, por mais que os adultos contem histórias de bruxas ou ogros e achem graça na credulidade apavorada das crianças, é só no caso do Papai Noel que produzimos anualmente um grandioso culto público.
Imagine que um meteorito se choque com a terra hoje, 22 de dezembro, acabando com a espécie humana. No futuro, uma expedição arqueológica de um planeta distante chegará à Terra com o intento de entender quem eram os humanos. Eles concluirão que uma grande parte dos terrestres venerava um velhinho acima do peso, que vivia na neve, se locomovia em trenó e presenteava as crianças.
No melhor dos casos, haverá, entre os ETs, uma espécie de Paul Veyne (o autor de "Acreditaram os Gregos em seus Mitos?", Edições 70): estranhando a contradição entre nossa cultura e o infantilismo de nossas crenças, ele escreverá "Será que os terrestres acreditavam mesmo em Papai Noel?".
Enfim, o fato é que, nesta estação, enchemos nossas cidades de imagens do Papai Noel e encorajamos as crianças a conversar com os papais noéis que povoam lojas e shopping centers.
Milagre natalino: sábado à noite, em São Paulo, a avenida Paulista (fechada aos carros) era um desfile alegre de famílias. Às crianças pequenas, boquiabertas, só sobrava acreditar no Papai Noel: se ele não existisse, por que os adultos se dariam àquele trabalho?
Alguns dizem que tudo isso não passa de uma invenção do comércio -para que todos esperem receber presentes e, na falta de um Papai Noel real, sejamos obrigados a tomar seu lugar, indo às compras. Eu tendo a pensar que o comércio pegou carona numa invenção que não foi dele, mas nossa, dos adultos em geral.
Talvez precisemos do Papai Noel para encarnar e disseminar o espírito natalino. Seríamos crédulos na infância e faríamos de conta uma vez por ano, para preservar um ideal de solidariedade e bonomia.
E há outra explicação, menos poética, mas não excludente. Amamos nossas crianças de uma maneira que não é exatamente prova de nossa grandeza de ânimo.
Sobretudo nas últimas décadas, enfiamo-lhes presentes ou guloseimas goela abaixo, que elas os mereçam ou não, para vê-las satisfeitas e gratificadas (mesmo que seja só por um instante).
Com que propósito? Esperamos que a fartura de nossos rebentos compense todas as nossas frustrações, passadas e presentes.
Como nos envergonhamos dessa "generosidade" narcisista, o jeito é fantasiá-la de Papai Noel: não somos nós que mimamos e estragamos nossas crianças, é um velhinho vestido de vermelho.
É um problema? Não sei, mas um adulto que acredita no Papai Noel é alguém convencido de que o almoço é de graça e não é preciso se esforçar: o mundo, os deuses ou a sorte lhe darão o que ele quer, que ele mereça ou não. É isso que queremos que nossas crianças acreditem?
Feliz Natal, e que o Papai Noel não se esqueça de ninguém.

segunda-feira, 19 de dezembro de 2011

Gustavo Cerbasi - O detalhe que falta

Em 2012, não deixe para depois os cuidados com a saúde, com a família e com as suas relações pessoais 


HÁ PESSOAS que se consideram injustiçadas pela vida, porque não tiveram as mesmas oportunidades ou a mesma sorte de outras. De maneira oposta, há também quem negue definitivamente o fator sorte como motivo para se distanciar de problemas na vida. Os preparativos para as celebrações natalinas mostram bem essas diferenças.

Nesta semana, muitas pessoas perderão dezenas de horas e muita saúde na correria das compras de final de ano e na obrigação de concluir suas tarefas de trabalho. Seja no trânsito, seja no caixa do estacionamento do shopping center ou simplesmente à espera do atendimento de um vendedor, muitos testarão sua paciência em filas.

Será uma semana de ansiedade. A pauta de reflexão será algo do tipo: "Terei de estender o horário de trabalho, mas ainda não comprei o presente do meu amigo secreto... Bom, ainda bem que as lojas fecharão mais tarde hoje". Sem tempo para escolher. Sem muitas opções, já que os produtos estarão se esgotando nas prateleiras. O preço está alto? "Não importa, é a opção que resta..." Presentes sairão caro. 
Nesta mesma semana, outras pessoas estarão curtindo um merecido descanso em alguma praia ou em qualquer outro lugar longe do agito das compras.

Em alguns lares, famílias estarão se esmerando nos detalhes da decoração para a ceia de Natal, entregando presentes para crianças carentes, rasgando papéis velhos e começando a tradicional faxina para começar um 2012 com menos restos inúteis do passado.

Os mais caprichosos estarão cortando as fitas para fazer os laços dos presentes, cujas cores foram escolhidas de acordo com as preferências dos presenteados. Os presentes já estão arrumadinhos debaixo da árvore.

Nos escritórios, também haverá gente retocando os planos para o próximo ano, ensaiando discursos criativos para a festa do amigo secreto ou até ensaiando uma poesia para declarar seu amor na tão esperada festa de fim de ano.

Enquanto um grupo sabe de antemão que sua vida será um inferno nesses dias, outro estará desfrutando da deliciosa sensação de relembrar os últimos detalhes e apagar gradualmente as luzes de um ano que se vai. Em qual grupo você gostaria de estar? Certamente, do lado dos mais tranquilos.

Existe uma sutil diferença entre os que desfrutam e os que se afobam. É a mesma que existe entre os que fazem seu dinheiro render bem com boas escolhas e os que pagam caro por entregas expressas e outros serviços de conveniência. A diferença está no hábito de planejar. Ou, na falta desse hábito, dependendo de qual lado começa a comparação.

Há quem credite à falta de sorte suas dificuldades na carreira, a falta de dinheiro, o investimento mal escolhido e a falta de vagas no estacionamento do shopping.

E há também quem passa a vida sem desfrutar dessas amargas experiências, porque em algum momento escolheu antecipar seus movimentos e escolher um caminho de menor sofrimento.

Descobri, ao longo dos anos, que quem planeja sua agenda acaba tendo mais tempo para pesquisar alternativas e analisar melhor as informações. Com isso, gasta menos dinheiro e tem mais consumo ou mais poupança. Também cheguei à conclusão de que quem planeja suas finanças conta com mais recursos disponíveis, o que possibilita comprar ferramentas e tecnologias que ajudem a economizar tempo.

Pouco importa, portanto, se sua prioridade é planejar a agenda ou planejar suas finanças. O detalhe que pode fazer grande diferença em sua vida é o planejamento. Então, aproveite que 2011 está se esvaindo e está chegando a hora de fazer promessas, e faça uma promessa definitiva: dedique em 2012 mais tempo para sua organização pessoal, para que você seja mais eficiente no que quer que faça.

Não esqueça de cuidar da agenda, das datas festivas, das liquidações pós-festejos e de suas finanças pessoais, mas também não deixe para depois os cuidados com a saúde, com a família e com as suas relações pessoais. Todos esses elementos ganham em qualidade quando há um mínimo de planejamento. 
GUSTAVO CERBASI é autor de "Casais Inteligentes Enriquecem Juntos" (ed. Gente) e "Como Organizar sua Vida Financeira" (Elsevier Campus).

quinta-feira, 8 de dezembro de 2011

Pentimentos (Contardo Calligaris )

Sonhamos com escolhas passadas alternativas, que teriam nos levado a um presente diferente
"Pentimento" é a palavra italiana para arrependimento, mas designa (em muitas línguas) uma pintura, um desenho ou um esboço encoberto pela versão final de um quadro.

Às vezes, com o passar do tempo, a tinta deixa transparecer uma composição em cima da qual o artista pintou uma nova versão.
Outras vezes, os raios-x dos restauradores desvendam opções anteriores, que permaneceram debaixo da obra final. Esses esboços ou pinturas, que o artista rejeitou e encobriu, são os pentimentos, que foram descartados sem ser propriamente apagados.
Visível ou não, o pentimento faz parte do quadro, assim como fazem parte da nossa vida muitas tentações e muitos projetos dos quais desistimos. São restos do passado que, escondidos e não apagados, transparecem no presente, como potencialidades que não foram realizadas, mas que, mesmo assim, integram a nossa história.
Pensei nisso assistindo a "Um Dia", de Lone Scherfig, que estreou na sexta passada. O filme é a adaptação do romance homônimo de David Nicholls (Intrínseca), que foi uma das leituras que mais me tocaram neste ano e que já comentei brevemente na coluna de 21 de julho.
O livro e o filme (cujo roteiro é do próprio Nicholls) contam a história de Emma e Dexter, que são unidos pelo pentimento: cada um deles é o grande pentimento do outro -ou seja, ao longo dos anos, cada um é, para o outro, a lembrança de que um outro destino teria sido possível.
Reflexões, saindo do cinema:
1) Nossas vidas são abarrotadas de caminhos que deixamos de pegar; são todos pentimentos, mais ou menos encobertos: histórias que não se realizaram. Por que não se realizaram? Em geral, pensamos que nos faltou a coragem: não soubemos renunciar às coisas das quais era necessário abdicar para que outras escolhas tivessem uma chance. E é verdade que, quase sempre, desistimos de desejos, paixões e sonhos porque custamos a aceitar que nada se realiza sem perdas: por não querermos perder nada, acabamos perdendo tudo.
Emma e Dexter, por exemplo, ficam cada um como pentimento do outro porque nenhum dos dois consegue renunciar à sua insegurança (que é, aliás, o que os torna tão tocantes e parecidos com a gente): ela morrendo de medo de ser rejeitada, e ele, sedento de aprovação, fama e sucesso.
2) O problema dos pentimentos é que eles esvaziam a vida que temos. O passado que não se realizou funciona como a miragem da felicidade que teria sido possível se tivéssemos feito a escolha "certa". Diante disso, de que adianta qualquer experiência presente? Emma e Dexter, por exemplo, são condenados a fracassos amorosos pela própria importância de seu pentimento.
3) Nem sempre os pentimentos são bons conselheiros -até porque, às vezes, eles são falsos (esse, obviamente, não é o caso de Emma e Dexter). Hoje, é fácil esbarrar em espectros do passado: as redes sociais proporcionam reencontros improváveis e, com isso, criam pentimentos artificiais. Graças às redes, uma história que foi realmente apagada da memória (não apenas encoberta) pode renascer como se representasse uma grande potencialidade à qual teríamos renunciado.
No reencontro, um namorico da adolescência, insignificante e esquecido, transforma-se em (falso) pentimento, ou seja, numa aventura que poderia ter aberto para nós as portas do paraíso (onde ainda estaríamos agora, se tivéssemos ousado trilhar esse caminho).
Quando examino as fotos de minhas turmas do colégio, sempre fico com a impressão de que deixei amizades e amores inacabados ou nem começados, mas que teriam revolucionado meu futuro. É como se me perguntasse "Quem era minha Emma? Para quem eu era o Dexter?", fantasiando pentimentos de relações que nunca existiram.
Somos perigosamente nostálgicos de escolhas passadas alternativas, que teriam nos levado a um presente diferente. Se essas escolhas não existiram, somos capazes de inventá-las -e de vivê-las como pentimentos.
Avisos: os pentimentos não são necessariamente recíprocos, e os falsos pentimentos, revisitados, são pequenas receitas para o desastre.
4) Estreia amanhã "As Canções", de Eduardo Coutinho. Homens e mulheres cantam a música que foi crucial na sua vida (e explicam por que ela foi crucial). Em alguns casos, especialmente tocantes, as músicas são trilhas sonoras de pentimentos.

terça-feira, 6 de dezembro de 2011

Amor, paixão e amizade (Mirian Goldenberg)


O maior problema do casamento é a morte do desejo sexual, já que este se alimenta da falta, da incerteza

Meus pesquisados apontam três ingredientes presentes no casamento: amor, paixão e amizade. O amor aparece como um sentimento amplo e difícil de ser definido. É diferente da paixão, inicial e provisória, que se transforma em amor ou acaba.
Segundo os entrevistados, é impossível manter um estado permanente de paixão, por dois motivos: ela não resiste ao cotidiano e sua irracionalidade é insuportável.
Quando não acaba como fogo de palha, a paixão se transforma em algo mais tranquilo: o amor. Já esse, para durar, deve conter resíduos da paixão inicial ou corre o risco de se transformar em outro sentimento: a amizade.
O casamento deve combinar os três sentimentos: uma grande dose de amor com pitadas de paixão e amizade.
É preciso ter cuidado para não desequilibrar essas porções, já que uma grande dose de amizade poderia destruir o desejo sexual.
O amor se encontra entre a paixão e a amizade. É menos explosivo do que a primeira, mas menos morno do que a segunda. É mais tranquilo do que a paixão, mas menos seguro do que a amizade.
Se a paixão é insuportável por sua imprevisibilidade e sua loucura, o perigo da amizade está na racionalidade e na rotina. Um equilíbrio complicado é necessário para que uma e outra estejam presentes no casamento, mas que não sejam mais fortes do que o sentimento de amor.
A paixão é associada ao excesso de sexo. A amizade é relacionada à falta dele.
O sexo deve ser frequente e agradável, mas mais controlado do que na paixão. O casal deve estar atento para não deixá-lo cair na rotina e na burocracia, fantasma que ameaça os relacionamentos.
A ideia de que é possível administrar esses três sentimentos apareceu entre os pesquisados.
A paixão, mais irracional, deve ser domada, mas não pode ser excluída do casamento. Uma dose controlada de insegurança e de incerteza sobre a posse do outro é considerada necessária para alimentar o desejo sexual.
Essa matemática complicada torna os casais reféns de lógicas contraditórias. Os pesquisados apontam como perigos para o casamento a rotina, a burocratização, a mesmice. Mas falam também da necessidade de fidelidade, segurança, tranquilidade.
O maior problema do casamento, dizem eles, é a morte do desejo sexual, já que este se alimenta da falta, da insegurança, da incerteza.
Como conciliar, então, amor e desejo sexual no casamento? Eis a questão.

segunda-feira, 5 de dezembro de 2011

Silêncio



"Silêncio: que graça universal. Como poucos de nós sabem aproveitá-lo... Talvez porque ele não possa ser comprado." (Charles Chaplin)

domingo, 4 de dezembro de 2011

'Ser fiel é tão arriscado quanto trair', diz psicanalista

Autor de livros de sucesso, o psicanalista britânico Adam Phillips atrai leitores fugindo do jargão e tratando de temas como o flerte ou a gentileza, que não costumam receber atenção acadêmica. Suas obras, que combinam psicanálise, filosofia e literatura, são populares, mas ele mesmo, não. Nem e-mail tem. "Restringi ao máximo minhas formas de comunicação."
Phillips trabalha agora em "Missing Out", um livro sobre coisas que deixamos de lado na vida, a ser lançado no segundo semestre de 2012.
Nesta entrevista feita em seu consultório, em Londres, o autor de "Monogamia" fala sobre riscos da crença no "felizes para sempre".
*
Folha - Em "Monogamia", o senhor diz que não há nada mais escandaloso do que um casamento feliz. Por quê?
Adam Phillips - O que amamos e odiamos num casamento feliz é ver nossos primeiros desejos e medos acontecendo na vida real. Toda criança começa seu desenvolvimento em uma relação monogâmica, com a mãe. E a maioria passa os primeiros 11, 15 anos da vida muito conectada a mãe e ao pai. É uma espécie de monogamia bissexual. Crescer é passar da necessidade de ter só uma pessoa para a necessidade de ter duas (mãe e pai) e a necessidade e a capacidade de se relacionar com várias.
Daí nossa tendência para a relação monogâmica?
A relação monogâmica é uma memória muito poderosa, é onde começamos. Hoje, muita gente acha difícil manter uma relação monogâmica. Queremos coisas opostas, desejamos coisas proibidas e não sabemos que queremos essas coisas. A cultura torna os desejos muito problemáticos. Muitas pessoas desejam um relacionamento monogâmico, apesar de não serem capazes de lidar com ele.
Quais são as maiores dificuldades da monogamia?
Os problemas surgem quando as pessoas desejam esse tipo de relacionamento, mas não conseguem realizá-lo. E para quem pensa que é isso o que deseja, mas descobre que não era o que queria.
A solução, no caso dessas pessoas, é a infidelidade?
Sim. E pode dar certo, mas sempre com conflito. Todo mundo tem ciúme sexual, ninguém suporta dividir seu parceiro de sexo. Alguns dizem que suportam, mas é impossível. Se amamos e desejamos alguém, não queremos dividi-lo com outros.
Isso tem a ver com a memória da relação entre mãe e bebê?
Sim. E também com o fato de termos necessidades e só determinadas pessoas poderem satisfazê-las.
Concorda com a tese de que mulheres são por natureza propensas à monogamia?
Acredito na teoria da evolução de Darwin, mas penso que evolução envolve cultura. Há boas explicações em termos de sobrevivência da espécie para sustentar que a mulher quer um homem para a vida toda e o homem deseja mais parceiras, mas não acho que a questão da sobrevivência seja a explicação final. Se fosse, a família nuclear seria a única coisa óbvia a se fazer.
Há diferentes formas de garantir a reprodução da espécie, há muitos jeitos de criarmos as crianças. E muitas formas de fazer sexo, não explicadas por essas teorias.
O senhor diz que uma sociedade sem a possibilidade de infidelidade seria perigosa...
Seria uma mentira. Colocaria pressão demais nos casais, obrigando um a ser tudo para o outro. É uma demanda moral irrealista. Outro perigo é a monogamia acabar com o desejo e virar uma prisão.
Acha a sociedade hipócrita em relação à monogamia?
Sim, se ela afirmar que é a única forma boa de relação para todos e o tempo todo.
Mas hoje também há muita gente dizendo que toda relação monogâmica é hipócrita, o que não é verdade. Para alguns, é um desejo genuíno, uma experiência real.
Tão real quanto traição?
As duas formas são construções sociais. O capitalismo trivializou a paixão, fez com que as pessoas se desiludissem em relação ao amor. Isso leva a pensar que as relações sexuais são algo que se compra no mercado só para levar a vida adiante. O capitalismo tenta dissuadir a criação de vínculos reais. E valoriza demais o prazer. E, para a psicanálise, o prazer é sempre um problema. Qualquer pessoa que te venda um prazer fácil está mentindo. Se o que queremos é prazer profundo, com troca entre pessoas, ele será difícil, cheio de conflitos.
Como lidar com os conflitos?
As crianças deveriam ter aulas na escola sobre frustração, para entender como ela é valiosa. Para adultos, a psicanálise ajuda, é educativa. Os adultos precisam aprender a ser adultos. A maioria age como adolescente, não quer crescer, acredita em fórmulas mágicas de relacionamento.
A fórmula 'feliz para sempre'?
Claro, é um ideal enganoso. Assim como achar que a pessoa que não se prende a ninguém é livre. São dois ideais igualmente enganadores.
A monogamia não é também uma forma de evitar riscos?
Pode ser. Correr riscos é muito importante, mas não devemos pressupor que todos os riscos estão na infidelidade. Fidelidade é tão arriscada quanto traição, há muitos riscos na monogamia.
Quais são eles?
Numa relação monogâmica, cada parceiro sabe e não sabe muitas coisas íntimas sobre o outro. Outro risco é descobrir as limitações do relacionamento humano, o quanto a outra pessoa pode de fato fazer por você. E há o risco de formar uma família.
Por que não considerar esses riscos tão atraentes quanto os riscos da traição?
Não fomos capazes de produzir relatos excitantes sobre a monogamia. Os bons romances são sobre adultério. Por isso, é difícil articular de forma interessante os prazeres da monogamia. Fica parecendo algo tedioso. Além disso, fomos educados para acreditar que a vitalidade está na heresia. Mas pode haver vitalidade nos dois tipos de relacionamento. O ocidental moderno e culto assume que a vitalidade esta só na heresia. Também está, mas essa não é toda a verdade.
Do que precisamos, afinal?
De boas histórias que nos ajudem a viver. As únicas verdades úteis são as que nos ajudam a viver. Num relacionamento, o que você precisa é criar uma história na qual se sinta vivo com a outra pessoa.
Hoje, temos mais opções para criar essa história?
Não sei. A cultura liberal oferece mais escolhas do que havia antes. Mas o capitalismo cria a ilusão de que temos muitas escolhas, quando na verdade temos muito poucas.
A única escolha é ser feliz ou não. É isso que está sendo vendido como o único programa: quanto prazer você pode ter, quão feliz pode ser. Só que felicidade pode ser como uma droga, nunca satisfaz, você quer sempre mais. Há coisas muito mais importantes que a felicidade: justiça, generosidade, gentileza.

quinta-feira, 1 de dezembro de 2011

A pele que habito (e a dos outros) CONTARDO CALLIGARIS


Há homens que sonham em ser transformados ("contra sua vontade") em mulheres promíscuas e submissas

Nesta altura, considero conhecida a trama do último Almodóvar, "A Pele que Habito": um cirurgião, o doutor Ledgard, sequestra um jovem (Vicente) durante anos e o transforma numa mulher (Vera).
Na saída do cinema, alguém comenta: "Se acontecesse comigo, eu ficaria namorando o médico. Fazer o quê? Pênis, eu já não teria mais. E não estaria a fim de fugir. Voltar para minha vida de antes e contar que me tornei mulher para minha mãe e para meus amigos, já pensou?".
Infelizmente, na situação da vítima de Ledgard, ninguém conseguiria fazer prova de tamanho pragmatismo, por uma razão simples: a sensação íntima e profunda de ser homem ou mulher (a identidade de gênero) não é coisa que possa ser mudada.
É possível, isso sim (e acontece no caso dos transexuais), "retificar" o corpo, caso ele não coincida com a identidade de gênero de alguém.
Se você sempre se sentiu homem num corpo de mulher ou mulher num corpo de homem, se você tem a trágica impressão de estar no corpo errado, pois bem, nesse caso, à força de hormônios, operações cirúrgicas e orientações terapêuticas, você talvez possa modificar seu corpo de maneira que ele concorde com seu sentimento de identidade.
Mas não há tratamentos que, ao transformar seu corpo, possam levar você a mudar seu sentimento profundo de ser homem ou mulher.
Conclusão, se um homem fosse transformado em mulher à força, ele não se resignaria (pragmaticamente), mas passaria a vida querendo que seu corpo fosse retificado para ele voltar a ser o homem que ele nunca deixou de ser.
Em 24 de fevereiro de 2000, nesta coluna ("A terapia da faca e do superbonder"), contei a história de David Reimer, cujo pênis foi decepado acidentalmente na circuncisão, em 1966. Por sugestão do psicólogo John Money, Reimer foi castrado e criado como menina, com a ideia de que é melhor ser uma menina fabricada (na faca, com hormônios, roupas e brincadeiras adequadas) do que um menino com uma prótese peniana.
John Money escondeu o desespero de Reimer durante infância e adolescência. Reimer, ao descobrir o engodo do qual tinha sido vítima, parou a palhaçada e voltou a ser homem. Atualizando: em 2004, Reimer se suicidou.
Por qual loucura Money imaginou que, ao transformar o corpo de um menino, ele poderia mudar sua identidade e fazer dele uma mulher?
A resposta está na onipotência das ciências humanas nos anos 60, mas também numa fantasia erótica masculina, que talvez Money compartilhasse e que paira tanto sobre "A Pele que Habito" quanto sobre o livro (imperdível) que inspira o filme: "Tarântula", de Thierry Jonquet (Record).
Há sites (sixpacksite.comtgcomics.comfictionmania.tv) inteiramente dedicados a ficções e quadrinhos que elaboram fantasias de feminização forçada. A clientela desses sites é de homens heterossexuais, que sonham em ser transformados ("contra sua vontade") em mulheres promíscuas e submissas. Dica: os machos que se gabam por levar as mulheres à loucura podem estar com vontade de sentir neles mesmos o efeito de seus próprios (supostos) talentos.
Mais perto do cotidiano, "A Pele que Habito" é também apenas mais uma parábola do amor, pois é banal que o amor nos leve a querer transformar parceiros e parceiras de forma que eles correspondam a nossas expectativas.
O projeto de moldar o outro transforma qualquer convívio numa violência. Mas essa violência não impede nada: no clássico "Post-traumatic Therapy and Victims of Violence" (terapia pós-traumática e vítimas da violência, Routledge, 1988), Frank Ochberg enumerava, entre os sintomas habituais das vítimas, tanto um ódio ressentido e doentio quanto sentimentos positivos -incluindo amor romântico, sujeição e, paradoxalmente, gratidão.
"A Pele que Habito" poderia ser, em suma, a versão trágica e realista de "My Fair Lady". No musical, Eliza Doolittle acaba amando mais que odiando o prof. Higgins, que a transformou numa "lady". No filme de Almodóvar, talvez Vera odeie Ledgard mais do que o ama. Mas o que importa é que os sentimentos da vítima são sempre ambivalentes.
É essa a chave para entender as mil histórias de vítimas que poderiam ou deveriam ter fugido, como a de Natascha Kampusch, abusada por "3096 Dias" (Verus ed.), ou como a da menina que foi escrava sexual de Gaddafi durante cinco anos (

AUTOAJUDA (Martha Medeiros)

Estava lendo o divertido Tudo é Tão Simples, de Danuza Leão, quando uma senhora chegou perto, com ar de desprezo, e disse: “Não te imaginava lendo autoajuda”. Pensei em responder que Kafka e Tchekhov também são autoajuda: dos eruditos aos passatempos, todo livro escrito com honestidade ajuda. Se bobear, até mesmo embustes tipo “Como arranjar marido” ou “Como juntar o primeiro milhão antes dos 30 anos” ajudam – quer ilusão, toma ilusão.

O psicanalista Contardo Calligaris certa vez disse numa entrevista que escreve para estimular o leitor a melhorar a qualidade de sua experiência de vida, intensificando-a. E Calligaris realmente consegue esse feito, por isso o leio. Assim como leio e sublinho inúmeras citações do filósofo romeno Cioran, que me ajuda a identificar a miséria humana sob uma ótica extremamente lúcida.

Muito antes de eu descobrir Calligaris e Cioran, tive que descobrir a mim mesma, e Marina Colasanti foi, nesse sentido, minha guia espiritual. Com suas crônicas, abriu minha cabeça para a sociedade que estava se firmando no início dos anos 80, quando as mulheres assumiram um novo papel. Eu não seria a mesma se não tivesse lido seus livros (muitas garotas talvez citem hoje a autora de Comer, Rezar, Amar como divisora de águas em suas vidas – eu também adorei).

Ainda adolescente, Fausto Wolff me deu consciência política, Millôr Fernandes me ensinou a enxergar o reverso do espelho, Verissimo me incentivou a rir de mim mesma, Paulo Leminsky me fez ver que poesia não precisava ser um troço chato e Caio Fernando Abreu me apresentou um mundo sem preconceitos. Seria uma ingrata se dissesse que eles não fizeram nada além de me entreter.

Além desses autores geniais, passei também por livros maçantes que me serviram como ansiolíticos – me ajudaram a pegar no sono. Hermetismo nem sempre é sinônimo de inteligência, profundidade não é privilégio dos deprimidos e mesmo histórias bem escritas podem naufragar se forem pretensiosas.

Michael Cunnigham ajuda a manter minha humildade (nem que eu vivesse 200 anos conseguiria escrever algo minimamente parecido com Ao Anoitecer, que acaba de ser lançado), Cristovam Tezza ajuda a controlar minha inveja (que técnica!) e Dostoievski me ensina que a fúria é mais produtiva quando transformada em arte.

Qualquer tipo de arte, aliás. Música de Autoajuda? Existe. Cazuza, por exemplo, já estimulou minha indignação com o país, Ney Matogrosso me faz sentir sensual, Jorge Ben sempre me alegra e Chico Buarque diversas vezes me comoveu, e ficar comovido é de primeira necessidade.

Existe autoajuda para todos os gostos. Tendo ou não esse propósito, nenhum livro deve ser diminuído por ter sido útil.