quinta-feira, 31 de maio de 2012

MARTHA MEDEIROS - O que a vida oferece


É preciso dar uma chance à vida, colocando-nos à disposição para que ela nos surpreenda 

Conversando outro dia com um senhor saudosista, ele me contou que quando sua filha tinha uns 10 anos de idade, ele costumava pegá-la pela mão e propunha: Vamos dar uma volta na rua pra ver o que a vida oferece.

Tanta gente aí esperando ansiosamente para ver o que a vida oferece, só que não sai de casa, e quando sai, não tem o olhar curioso nem o espírito aberto para receber o que ela traz.

Infelizmente, já não caminhamos pela rua, a não ser num ritmo acelerado, com trajeto definido e com o intuito de queimar calorias. Marchamos rumo a um melhor condicionamento físico, o que é um belo hábito, mas flanar, não flanamos mais. Não passeamos. As ruas estão esburacadas, há muitas ladeiras, o trânsito é barulhento e selvagem, compreende-se. Mesmo assim, a despeito de todos os inconvenientes, é preciso dar uma chance à vida, colocando-nos à disposição para que ela nos surpreenda.

Ao sair sem pressa, paramos numa banca de revistas e descobrimos uma nova publicação. Dizemos bom dia para o jornaleiro e ele, gentil, nos troca uma nota de valor alto. Na calçada, encontramos um velho amigo. Ou um artista famoso. Ou alguém que sempre nos prejudicou e hoje está mais prejudicado do que nós, bem feito.

Na rua, pegamos sol. Paramos para tomar um suco de maracujá com maçã. Flertamos. Um novo amor pode surgir de uma caminhada tranquila numa rua qualquer. E uma nova proposta de trabalho pode surgir de um esbarrão num ex-colega: estava mesmo pensando em te procurar, cara! Se continuasse apenas pensando, nada aconteceria.

Na rua, o jeito de se vestir de uma moça inspira a gente a resgatar uma jaqueta que não usávamos mais. Bate de novo a vontade de ter um cachorro. Descobrimos que é hora de marcar um exame minucioso no joelho direito, por que ele incomoda tanto?

Encontramos umas amigas num bistrô e paramos um instantinho para conversar, e então ficamos sabendo de uma exposição que não se pode perder. Passamos por uma livraria e damos mais uma namoradinha num livro que nos seduz. Ajudamos uma senhora que está saindo com várias sacolas de um supermercado, não custa dar uma mão. Aceitamos o folheto entregue por um garoto na esquina, anunciando uma cartomante que promete trazer seu amor de volta em 3 dias.

Você joga o folheto no lixo, e não no meio-fio. Você compra flores para sua casa. Você observa a fachada antiga de um prédio e resolve voltar ali com uma máquina fotográfica. Você entra numa igreja, não fazia isso há anos. Reencontra um ex-namorado que passa de carro e lhe oferece uma carona. Você nem tinha percebido como havia caminhado e como estava longe de casa. Aceita a carona. Um novo amor não surgiu, mas seu antigo amor foi resgatado em menos de 3 dias, nem precisou de cartomante.

Pode nada disso acontecer, óbvio. Mas sem dar uma chance à vida é que não acontece mesmo.

domingo, 27 de maio de 2012

Martha Medeiros - O importante é ter charme



Na próxima quinta-feira é o Dia Mundial sem Tabaco, data impensável nos anos 70, quando fumar ainda era uma atitude classuda. Não por acaso, uma das marcas mais vendidas se chamava Charm, que contava com garotas-propaganda do quilate de Danuza Leão, Adalgisa Colombo e Ilka Soares, todas mulheres de personalidade, reconhecidas por sua beleza e sofisticação. Mesmo quem não fumava tinha vontade.

Em 20 anos, todo esse glamour virou fumaça. Acender um cigarro passou a ser uma atitude deselegante, que não agrega nada de bom à imagem daquele que dá suas baforadas. Outro dia, estava parada dentro do meu carro, aguardando o sinal abrir, quando uma senhora chique, com os cabelos brancos bem cortados, de porte monárquico, começou a atravessar pela faixa. Minha admiração murchou quando reparei que a rainha estava dando suas últimas e aflitivas tragadas antes de entrar em um shopping. Fumar caminhando na rua já é feio, e para completar a chinelagem, a madame jogou a bituca no chão. Muita gente já não joga lixo no chão (amém), mas parece que a regra não vale para o cigarro. Largam em qualquer lugar, pisam em cima e vão em frente.

A propaganda tabagista saiu do ar, e o charme também — não o cigarro, mas o atributo. Ninguém mais acha importante ter charme. Lamentável.

Não jogar lixo na rua é uma questão de educação, sei disso, mas ser educado também é uma atitude charmosa. Ainda mais nos dias atuais, em que a grosseria impera, as pessoas são folgadas, os gestos são espalhafatosos, o tom de voz é alto, as cantadas são explícitas, a megalomania é indisfarçada, a falta de cerimônia é geral. Não há mais espaço para a sutileza, para o pedido de licença, para as atitudes suaves, para a discrição. Adeus à vida em slow, a uma presença insinuada e sensual. Agora tudo acontece sob os holofotes, é escancarado, gritado, a atenção é requerida à força.

A distorção de valores chegou a tal pontoque pessoas discretas são consideradas arrogantes, os modestos são vistos como dissimulados e os que não se rendem a modismos são taxados de esnobes. Ser autêntico — requisito número 1 para se ter charme — virou ofensa pessoal. Ou a criatura faz parte do rebanho, ou é um metido a besta.


A cena clássica da mulher fatal segurando uma piteira e a do homem viril com o toco de cigarro no canto da boca ainda povoam o imaginário dos nostálgicos, mas o importanteé ter charme, hoje, sem precisar de acessórios. O modo de mexer no cabelo, uma fala pausada, um olhar direto, um sorriso quase envergonhado, a segurança de não precisar se valer de estereótipos para agradar — charme. Bom gosto nas escolhas, saber a hora de sair de cena, fazer as coisas do seu jeito — charme. Estar confortável no corpo que habita, ter as próprias opiniões, alimentar sua inteligência com livros e pessoas igualmente inteligentes — charme. Não se mumificar, não ser tão inflexível, não virar uma caricatura de si mesmo — charme. Que o mantenhamos, sem precisar voltar a fumar.

terça-feira, 22 de maio de 2012

O inferno nunca sai da alma (Clóvis Rossi)



Impressões sobre uma visita à máquina de matar nazista construída em Auschwitz-Birkenau

CRACÓVIA - Uma placa no Museu Judaico de Cracóvia registra um diálogo imaginário entre mãe e filha em que a menina diz: "Mamãe, quando eles nos matarem, vai doer?". A mãe responde: "Não, queridíssima, não vai doer, vai levar só um minuto".
Comentário abaixo do diálogo: "Pode ter levado só um minuto, mas foi o suficiente para nos manter despertos até o fim dos tempos".
Profético. A dor pelo assassinato de 1,1 milhão de judeus, só no complexo Auschwitz-Birkenau, perto de Cracóvia, perdura até hoje na alma dos judeus, como deveria perdurar na alma da humanidade. Não foi um crime só contra os judeus, o que já seria intolerável, mas contra a condição humana.
Não apenas porque em Auschwitz-Birkenau morreram também entre 140 mil e 150 mil poloneses, 23 mil ciganos, 15 mil prisioneiros de guerra soviéticos e 25 mil pessoas de outras etnias. Mas principalmente porque uma máquina meticulosa de matar despojou da condição humana todas essas pessoas e milhões mais em outros pontos da Europa.
Quando a mãe e a menina do diálogo imaginário foram levadas para a câmara de gás de Birkenau, já estavam mortas. Elas, como todos os judeus trazidos de toda a Europa para os 30 km² que abrigavam o complexo de Auschwitz, já haviam perdido suas casas, seus trabalhos, seus objetos pessoais, suas posses, seus seres queridos, rigorosamente tudo o que possuíam.
"Quem perde tudo muitas vezes perde a si mesmo", escreveu Primo Levi, judeu italiano, prisioneiro de Auschwitz, um sobrevivente que é talvez o mais completo narrador dos horrores do campo.
Levi escreveu também que quem esteve em Auschwitz nunca conseguirá sair e quem não esteve nunca conseguirá entrar.
É tanto verdade que se suicidou em 1987, mais de 40 anos depois de deixar o inferno. Dele diria o Prêmio Nobel da Paz (1986) Elie Wiesel, outro sobrevivente de Auschwitz: "Primo Levi morreu em Auschwitz 40 anos depois".
De fato, eu confesso que, como parte de um grupo de jornalistas que o Congresso Judaico Latino-Americano trouxe para uma visita-aula aos locais emblemáticos do Holocausto na Polônia, saio com mil perguntas e quase nenhuma resposta.
Principal pergunta: por que construir uma indústria da morte se ela não servia para derrotar os Exércitos inimigos, se não servia para ocupar territórios? (a Polônia já fora ocupada no início da guerra, em 1939, antes portanto da entrada em operação da máquina de matar).
O que assusta, entre tantos horrores, é que permanece a tentação em muitas partes do mundo, mesmo na Europa, de eliminar o "outro", o supostamente diferente, seja judeu, cigano, hutu ou tutsi (em Ruanda), muçulmano.
Nada, é claro, teve, antes como depois do Holocausto, a dimensão do que se fez em Auschwitz e outros campos e guetos. Mas direitos humanos, direito à vida, não podem ser medidos por quilo.
Por isso, vale a frase do filósofo espanhol Jorge de Santayana y Borrás (mais conhecido como George Santayana), gravada na entrada do "Bloco 4" de Auschwitz: "Quem não relembra a História está condenado a vivê-la de novo".

sexta-feira, 18 de maio de 2012

Toda forma de amor vale a pena


HÉLIO SCHWARTSMAN

SÃO PAULO - Aceito a provocação de meu colega João Pereira Coutinho e, já que Obama não vai fazê-lo, defendo hoje a poligamia e outras variações mais extravagantes do amor.
Tenho uma proposta que resolve de vez toda a novela em torno do casamento gay e questões correlatas: basta o Estado pular fora do ramo das núpcias e reconhecer apenas uniões civis, sejam elas entre homem e mulher, pares do mesmo sexo e as múltiplas possibilidades combinatórias.
O problema de fundo é que o casamento hoje reúne duas funções totalmente distintas: uma contratual, com consequências jurídicas, e outra de reconhecimento social, com implicações para o status das pessoas. Do ponto de vista do Estado, apenas a primeira, que envolve assuntos como sucessão, guarda de filhos e direitos previdenciários, tem relevância, mas é a segunda que responde pela maior parte das desavenças.
A dupla função tem razões históricas. Antigamente, o casamento funcionava como uma espécie de licença para fazer sexo e ter filhos. Só que, com a ampliação dos direitos individuais, que teve início em fins do século 18, essa função social se tornou anacrônica. Ao menos no Ocidente, o sexo consensual entre adultos é um direito inquestionável que independe de licença prévia. Eliminar a ambiguidade, fazendo com que o poder público se atenha aos aspectos jurídicos das uniões e deixando o casamento para instituições de direito privado, resolveria o "imbróglio".
Todos estariam livres para praticá-lo da forma que quisessem. Os católicos, por exemplo, continuariam a oferecê-lo só a pares heterossexuais e em caráter indissolúvel, enquanto a ABGLT poderia criar os rituais que desejasse para contemplar os homossexuais. Quanto aos polígamos, que mantêm um(a) ou mais amantes (o que não é ilegal, frise-se), desde que inventemos uma fórmula jurídica para não onerar demais a Previdência, também eles poderiam finalmente gozar das delícias do casamento.

terça-feira, 15 de maio de 2012

O casamento é para todos (João Pereira Coutinho)



Espero que Obama continue a "evoluir" no assunto e nos brinde com a defesa apaixonada da poligamia
TENHO PENSADO ultimamente nas vantagens da poligamia. O amor exige fidelidade e exclusividade?
Admito que sim. E também admito que existe uma certa nobreza na velha ideia platônica de que somos seres incompletos, em busca da outra metade que nos falta. Os românticos não inventaram nada. Limitaram-se a ler "O Banquete".
Mas, por outro lado, não é justo, nem fácil, nem humanamente possível exigir de uma mulher que ela seja tudo e o seu contrário. Boa amante. Ótima confidente. Excelente dona de casa. Mãe aprumada. Parceira intelectual distinta. Enfermeira nas horas funestas.
A mulher perfeita não existe. Ou, melhor dizendo, ela existe, sim. Só que é composta por várias mulheres distintas.
Anos atrás, em viagem pelo Marrocos, visitei um amigo que me levou a conhecer as suas duas famílias: uma em Casablanca, a outra em Agadir.
A primeira mulher era a encarnação perfeita da sensualidade magrebina -olhos negros, cabelo idem, lábios generosos e carnudos. Cinco minutos bastaram para perceber a função daquela senhora na vida daquele homem feliz.
A segunda mulher era menos exuberante (digamos assim); mas fazia um cuscuz como só voltei a provar em viagem recente ao Nordeste do Brasil. Tão diferentes, mas tão complementares.
Fiquei convencido sobre as vantagens do arranjo. E antes que a leitora me acuse de machismo obscurantista, esclareço já: quem fala em poligamia fala em poliandria.
Nenhum homem pode ser tudo para uma só mulher. Por isso esperava um pouco mais das declarações de Barack Obama sobre o casamento gay -mais do que apenas "hélas" sobre o casamento gay.
O presidente americano, em gesto inédito para ano eleitoral, disse na televisão que "evoluiu" sobre o assunto. É agora favorável à união matrimonial de lésbicas e homossexuais, embora deixe para os Estados a decisão final sobre o assunto.
O raciocínio de Obama é conhecido: quem somos nós, a maioria heterossexual e opressora, para negar a felicidade a duas pessoas do mesmo sexo que querem se casar?
Eis, em resumo, a essência do pensamento progressista. Um pensamento que os filósofos Sherif
Girgis, Robert P. George e Ryan T. Anderson analisaram no melhor ensaio que conheço sobre o tema: "What is Marriage?".
O casamento, para o pensamento progressista, é uma mera construção social, sem uma história ou um propósito distintos. O casamento deve apenas basear-se no afeto; e basta que exista afeto entre dois seres humanos adultos para que o Estado reconheça o vínculo matrimonial, distribuindo direitos e deveres pelos cônjuges.
O problema, escrevem os autores do ensaio, é que essa definição sentimental de casamento não pode se limitar a lésbicas e homossexuais.
Se o casamento pode ser tudo o que quisermos, não há nenhum motivo para recusar o privilégio a um homem que queira se unir a várias mulheres. Ou a uma mulher que queira se unir a vários homens.
O próprio Obama deveria saber disso: só nos Estados Unidos, é possível que existam mais de 500 mil relações poligâmicas, informava há tempos a revista "Newsweek", citada no ensaio. O número de homossexuais que desejam casar-se é superior a esse número?
Talvez. Mas falamos de um princípio, não de uma questão numérica: se 500 mil relações poligâmicas vivem à margem da lei, não devemos também respeitar a felicidade -no fundo, o "afeto" dessa vasta legião de apaixonados?
Por mim, ficaria encantado. Até porque as relações poligâmicas não vivem apenas à margem da lei. Elas são punidas pela lei. Eu invejo o meu amigo marroquino. Mas, se pretendesse imitar o seu modo de vida, casando-me com duas donzelas da minha preferência, a Justiça não perdoaria o crime.
Moral da história? O mundo não acaba com os direitos dos homossexuais. E não é possível defender o casamento gay sem defender também todas as outras formas de união conjugal. Abrir uma exceção é abrir todas as exceções. Negar isso é perpetuar a intolerância.
Espero que o presidente Obama continue a "evoluir" sobre o assunto e nos brinde em breve com a defesa apaixonada que a poligamia merece.

segunda-feira, 14 de maio de 2012

As filhas da desgraça


LUIZ FELIPE PONDE
A arena do pensamento público cria valores na mesma medida em que enfrenta seus algozes

"Eu sou um ex-covarde", escreveu Nelson Rodrigues, no "Globo", no dia 18/10/1968. E continua: "... o medo começa nos lares, e dos lares passa... para as universidades, e destas para as Redações... Sim, os pais têm medo dos filhos; os mestres, dos alunos".
Sobre Nelson, leia "Inteligência com Dor, Nelson Rodrigues Ensaísta", de Luís Augusto Fischer (ed. Arquipélago). Grande livro, rodriguiano até a medula: a inteligência é mesmo uma ferida aberta.
Paulo Francis dizia que um dia o mundo seria tomado pelos comissários do povo. Chegamos perto disso: os comissários dos ofendidos babam de vontade de tomar conta do pensamento público, esmagando tudo o que não concorda com sua autoestima.
Não conseguirão porque o pensamento público é como uma guerra. A arena do pensamento público cria valores na mesma medida em que enfrenta seus algozes.
Não ter medo é um tema mais filosófico do que parece. O filósofo alemão Nietzsche, crítico feroz do cristianismo e da metafísica, era na realidade um crítico do medo. A chave de sua crítica ao ressentimento é a identificação do medo como morte do Eros. E Eros é tesão pela vida.
Quando ele diz que o homem do futuro não necessitará de artigos de fé, ele não pensa apenas na religião, nível menor da sua crítica e onde muita gente fica, mas sim em artigos de fé menos evidentes como "meu eu", "meus valores", "minha dignidade", "minha concepção de vida" ou "meu direito a autoestima".
Enfim, toda essa parafernália brega em moda hoje em dia entre os puritanos seculares (aqueles que perderam Deus, mas continuam derretendo de medo dos seus demônios). Escondidos atrás de esquemas para garantir que seu "eu" não seja inundado pelo pânico da "hostilidade primitiva do mundo", da qual fala Camus.
Por isso basta falar de figuras malditas que o horror sobe à superfície. Uma das figuras que mais carrega esse halo de mal é a prostituta, essa filha da desgraça, como dizia Nelson. Basta mencioná-la e o atávico horror vem à tona.
E aí..., pânico na bancada da classe média. A classe que se define pelo medo, principalmente quando assume ares de rigor moral: treme em surtos de eterno puritanismo.
O problema com a classe média é seu espírito. Diria um marxista blasé que "espírito" é mero epifenômeno do "bolso", mas, como não sou marxista, dou o benefício da dúvida para classe média. O espírito da classe média é um ressentido, por isso teme qualquer abalo em seu mundo do bem. Para ele, enxergar o mundo de frente é fora do orçamento, como uma BMW para alguém que ganha salário mínimo.
Mas o que é a prostituta e por que ela é eterna? A prostituta não é apenas o sexo fácil, é a mulher fácil. É o "lugar" onde o homem descansa e, por isso, é parte essencial de toda civilização. Por isso é um mito.
Para mim, ver o mito da prostituta nos sonhos femininos mais misteriosos é um elogio ao Eros da mulher. Enfim, talvez nem todos os homens amem as prostitutas, só os normais. O amor à promiscuidade confessa é uma arte rara.
Às vezes, segundo as profissionais do ramo, o consumidor nem quer sexo, quer uma "namorada" que o ouça e que ele saiba exatamente quanto custa. Sem ter que pagar pelo "amor" dela (jantares, joias, discussões sobre a relação, cobranças, desempenho sexual, atenção).
Os homens temem as mulheres, e as prostitutas são aquelas de quem eles podem ter menos medo porque acham que as tem em suas mãos.
Mas é difícil para muitas mulheres entender isso. Quer ver?
Colaborei com um veículo importante da mídia numa pesquisa sobre garotas de programa de luxo. Meninas caras, mas nunca tão "caras" quanto namoradas e esposas de verdade.
O que disse acima aparece na pesquisa: a prostituta é a companheira fácil, por tempo determinado e custo previamente estabelecido.
Mas o incrível é que, mesmo essas profissionais, quando indagadas se achariam que seus futuros maridos precisariam de suas ex-colegas um dia, respondem: "Não, nós seríamos mais do que suficiente para eles".
"Ignorance is bliss." A realidade é mesmo insuportável, e a verdade é uma ferida incurável.

segunda-feira, 7 de maio de 2012

Os benefícios de não ser o melhor - Martha Medeiros



 Prefiro ler livros de quem escreve bem melhor do que eu. De quem tem mais a dizer do que eu. Além do prazer, não vejo outra maneira de aprimorar meu trabalho


Meu pai sempre jogou tênis, desde que me conheço por gente. Lembro uma vez em que ele comentou que o adversário ideal é aquele que tem o mesmo nível, mas que se fosse preciso escolher entre jogar com alguém melhor ou com alguém pior do que ele, preferiria jogar com alguém melhor, porque gratificante não era vencer fácil aquele que sabe menos, e sim aprender com quem te exige algum esforço.

É um verbo em desuso e que merece ser revitalizado: aprender. A verdadeira postura competitiva não é a daquele cara que almeja atingir o topo de qualquer maneira, e sim daquele que extrai de um superior o estímulo para encontrar o próprio caminho para vencer a si mesmo. Porque não são poucos nossos adversários internos: a ignorância, o comodismo, a ferrugem. É preciso treinar bastante para flexibilizar os movimentos, todos: do corpo e da mente. E dessa forma avançar, sempre buscando mais, numa estrada hipoteticamente sem fim.

Prefiro ler livros de quem escreve bem melhor do que eu. De quem tem mais a dizer do que eu. Além do prazer que isso me dá, não vejo outra maneira de aprimorar meu trabalho.

Prefiro conversar com pessoas mais vividas que eu, mais inteligentes, com melhores histórias para contar. Talvez algumas delas sintam o mesmo em relação a mim (pensem que sou eu a mais-mais), porém, o que importa não é essa quantificação, que, aliás, é totalmente subjetiva. O que estimula é ter consciência do quanto a nossa vida se enriquece ouvindo a experiência do outro. Não por acaso, adoro programas de entrevistas, onde posso enxergar a emoção do entrevistado, seu humor, sua ironia, sua indignação — entrevistas por escrito nem sempre destacam essas sutilezas.

Adoro jantar com quem conhece mais gastronomia do que eu, salientando temperos que normalmente eu não perceberia. Gosto de viajar com quem já viajou bastante e desenvolveu um olhar para certos lugares que para mim é novo. Prefiro dançar com quem sabe me conduzir. Mas com a condição de que esses iluminados transmitam sua sabedoria naturalmente, sem querer, sem didatismo — senão vira aula, xaropice, perde a graça. Gosto de aprender sem que o outro perceba que está me ensinando.

Claro que competidores profissionais devem tentar eliminar seu oponente — nhac! Menos um na escalada ao pódio. Nenhum atleta profissional treina tanto, investe tanto, para não se importar em perder em nome do benefício do aprendizado. Que aprendizado, o quê. Rubinho, Neymar, Cielo, não desapontem a torcida. Mas os amadores deveriam perceber que, em vez de se fingirem de campeões duelando com derrotados, mais vale tornarem- se melhores com a passagem do tempo, através de vitórias conquistadas no silêncio da observação. É um troféu oferecido por você a você mesmo — todos os dias.

quinta-feira, 3 de maio de 2012

Faust moderno (Contardo Caligaris)



O sentimento é frequente, em adolescentes e adultos, de ter vendido a alma, de ter traído a si mesmos

Faz tempo que sonho em escrever e montar um "Faust". A peça aproveitaria as ideias das melhores versões do mito, desde as de Christopher Marlowe e de Goethe até a mais recente, que está em cartaz em São Paulo, no Sesc Santana: "Fogo-Fátuo", de Samir Yazbek (coautoria de Helio Cicero e montagem bonita de Antônio Januzelli).
Numa hora intensa, inteligente e, às vezes, francamente engraçada, a peça apresenta o encontro entre um Faust escritor em crise (disposto talvez a vender sua alma) e um Mefisto que se pergunta qual função ainda tem o diabo num mundo em que os homens não precisam dele para fazer o pior. Se você estiver em São Paulo ou passar por aqui até 27 de maio, confira como Faust e Mefisto encontram uma solução original aos males de ambos.
Volto ao meu sonho. Por que a história do homem que vende sua alma ao diabo me parece ser um mito crucial da modernidade?
Só topo vender a alma em troca de sucesso em minhas empreitadas terrenas se meu breve tempo de vida for, para mim, mais importante do que a eternidade no céu. Ou seja, Faust, para assinar o pacto, deve ser, se não ateu, suficientemente agnóstico para se preocupar mais com os homens do que com Deus.
Paradoxo: a aparição de Mefisto, interessado em comprar minha alma, confirma indiretamente a existência de Deus e torna o contrato impossível: eu venderia a alma ao Diabo à condição de não acreditar realmente nem na alma nem no Diabo.
Várias soluções desse paradoxo são possíveis. Será que Mefisto se daria o trabalho de oferecer mares e montes a Faust só pelo prazer de lhe infligir as penas do inferno? Talvez Mefisto compre almas não para aumentar o rebanho dos pecadores (para isso, mal é necessário pagar), mas para alistar novos diabos. E ser diabo, mesmo de segunda linha, pode ser uma séria tentação.
Outra possibilidade é que Faust seja um vigarista, capaz de enganar até Mefisto. Já ao assinar o pacto, ele saberia que Mefisto será privado de sua "justa" recompensa: bastará, para isso, que Faust se arrependa, na última hora.
De qualquer forma (nisto concordo com o Mefisto de Yzbek), o Faust que frequenta hoje os consultórios dos psicoterapeutas não precisa de diabo. Explico.
Hoje (mas a observação já começa a valer na época romântica, quando Goethe escreve seu "Faust"), o sentimento é frequente, em adolescentes e adultos, de ter vendido a alma, sem que por isso Mefisto tenha tentado comprá-la.
Diante de qualquer sucesso (inclusive nosso) agimos como se fosse coisa de empreiteira de obras públicas: levantamos a suspeita de que foi o fruto da venda da alma de quem se deu bem. Se conseguimos algum conforto (mesmo espiritual), é porque a gente se vendeu: traímos a nós mesmos.
Temos um casamento feliz? É porque renunciamos a procurar o amor de nossa vida. Somos prósperos? É porque topamos aquele emprego, em vez de tentar empreender por nossa conta. Temos paz de espírito? É porque desistimos de procurar a pedra filosofal -que era a única coisa que nos importava de verdade.
O Faust de hoje já vendeu sua alma: ele vive com o sentimento de que seu sucesso, por modesto que seja, custou-lhe a renúncia à sua vocação, ao seu desejo, ao seu ser.
As más línguas dirão que preferimos parecer covardes e vendidos a fracassarmos por incompetência na tentativa de realizar "nosso desejo". "Desisto da procura do Santo Graal para que meus filhos possam comer a cada dia" soa muito melhor do que "desisto porque cansei ou não sei procurar direito".
Mas não é só isso: o desejo, na nossa cultura, aparece quase sempre como uma coisa da qual desistimos, que fugimos, que reprimimos, ao menos em parte.
Claro, Freud tem razão: a vida em sociedade exige repressão e renúncias. Mas talvez a sensação constante de ter traído nosso desejo (sabe-se lá qual) expresse sobretudo a nostalgia de um mundo passado, em que era mais fácil saber quem éramos e por que estávamos no mundo.
Cada vez mais, somos livres para inventar nossas vidas. E o preço inevitável dessa liberdade é nossa indefinição. "Quem sou eu? Veremos: o futuro mostrará de que sou capaz." Quando o futuro chegar, a pergunta mudará: "Tudo bem, fiz isso e aquilo, até que me dei bem, mas será que fiz mesmo o que eu queria? Será que preenchi todo meu destino?".
Pois é, amigo, nunca vamos saber. Pois, justamente, o destino estava escrito naquela alma que a gente vendeu.