domingo, 8 de maio de 2011

Carrego comigo (Drummond)

Carrego comigo
há dezenas de anos
há centenas de anos
o pequeno embrulho
Serão duas cartas?
Será uma flor?
Será um retrato?
Um lenço talvez?
Já não me recordo
onde o encontrei
se foi um presente
ou se foi furtado
Se os anjops desceram
trazendo-o às mãos
se boiava no rio
se pairava no ar
Não ouso entreabrí-lo
que coisa contém
ou se algo contém
nunca saberei
Como poderia
tentar esse gesto?
O embrulho é tão frio
e também tãio quente
Ele arde nas mãos
é doce ao meu tato
pronto me fascina
e me deixa triste
Guarda um segredo
em si e consigo
não querer sabê-lo
ou querer demais
Guarda um segredo
de seus prórpios olhos
por baixo do sono
atrás da lembrança
A boca experiente
saúda os amigos
mão aperta mão
peito se dilata
Vem do mar o apelo
vêm das coisas gritos
o mundo te chama:
Carlos! Não respondes?
Quero responder
a rua infinita
vai além do mar
quero caminhar
Mas o embrulho pesa
vem a tentação
de jogá-lo ao fundo
da primeira vala
Ou talvez queimá-lo.
Cinzas se dispersam
e não fica sombra sequer
nem remorso
Ai fardo sutil
que antes me carregas
do que és carregado
Pra onde me levas?
Por não me dizes
a palavra dura
oculta em teu seio
carga intolerável?
Seguir-te submisso
por tanto caminho
sem saber de tí
senão que te sigo
Se agora te abrisses
e te revelasses
mesmo em forma de erro
Que alívio seria!
Mas ficas fechado.
Carrego-te à noite
se vou para o baile
De manhã te levo
para a escura fábrica
de negro subúrbio
És de fato, amigo
secreto e evidente
Perder-te seria
perder-me a mim próprio
sou um homem  livre
mas levo uma coisa
Não sei o que seja
eu não o escolhi
jamais a fitei
mas levo uma coisa
Não estou vazio
não estou sozinho
pois anda comigo
algo indescritível

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